CRIANÇAS NÃO VÊM AO MUNDO PARA SUPRIR EXPECTATIVAS
15 setembro 2013
Por Ivone Zeger
Adoção incondicional
O dia a dia de quem atua no Direito de Família é repleto de episódios
em que as sensações estão à flor da pele, daí quase sempre virem à tona
todos os tipos de sentimentos. Assim, estampam-se histórias de amor e
fúria, de desprezo ou compaixão. Como a lei funciona para as emoções
como um grande balde de água fria, ao advogado resta manter a cabeça no
lugar e orientar o andamento das providências.
Entretanto, certos
casos mexem com a emoção de advogados e magistrados. No campo das
adoções pululam histórias que dariam belos romances e filmes, como o que
relatarei agora, acontecido com uma pedagoga de Itajaí, no estado de
Santa Catarina. Ela foi protagonista do primeiro caso que se tem
notícia, no estado, de pedido de adoção post mortem. A pedagoga estava
com a guarda de uma menina de um ano e meio que fora abandonada pelos
pais. A garota faleceu antes do processo de adoção terminar.
É
importante esclarecer que adoções post-mortem são previstas em lei, mas
quando ocorre o oposto, ou seja, quando o adulto adotante falece em meio
á providência de um processo de adoção. É possível, então, que a
criança seja beneficiada com a adoção e todos os benefícios decorrentes.
No caso de Itajaí, o processo poderia simplesmente ser extinto, mas a
pedagoga fez o pedido para que ele fosse concluído. O juiz Ademir Wolff,
titular da Vara da Infância e Juventude da localidade, entendeu que a
pedagoga queria “continuar sendo mãe e ver o nome pelo qual chamava a
filha gravado em sua lápide, preservando-se inclusive o direito de
cultuar a filha que era sua, e não mais daqueles que renunciaram ao pode
familiar”. Entendendo que a mãe buscou o reconhecimento de uma adoção
que foi vivida na prática, embora por pouco tempo, ressaltou que a
adoção post mortem – nesse caso em particular – não gerou reflexo
prático ou jurídico para terceiros, uma vez que a criança não tinha
patrimônio ou herdeiros, tampouco direitos sucessórios a serem
resguardados.
É bom salientar que, em outras situações, pode
acontecer de a morte de um bebê gerar, sim, reflexos jurídicos e
práticos. O artigo 1.798 do Código Civil diz que: “legitimam-se a
suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da
sucessão”. Assim, uma criança pode ser detentora de uma herança logo ao
nascer; ou porque há um processo de sucessão em curso – por morte de
bisavô ou bisavó, avô ou avó, pai ou mãe – e, nesse caso, ela é
considerada herdeira necessária; ou por estar designada como herdeira em
algum testamento. Se essa criança falece, o destino dos bens que seriam
dela terá seu curso modificado dentro do processo de sucessão.
Voltando ao assunto, o leitor pode achar a história da pedagoga
interessante, mas nem de todo comovente. Ocorre que a bebê, desde o
nascimento e abandono por parte dos pais biológicos, não era saudável.
Portadora de Síndrome de Down leve, a bebê apresentava também hipotonia –
caracterizada por falta de tono muscular –, lesão neurológica,
mosaicismo – que é uma espécie de distúrbio genético –, sucção débil,
cardiopatia congênita e Síndrome de West, que é uma lesão cerebral
grave. Solteira, ao assumir a guarda da criança, a pedagoga se mudou
para a casa dos pais para poder oferecer os cuidados necessários.
Não é tão difícil entender o motivo da mãe adotiva querer concluir o
processo: o exercício do cuidar incessante leva ao desenvolvimento de um
enorme sentimento de afeto. Não por acaso, o juíz concluiu:
“Reconheça-se então este amor da adotante, dando-lhe o alento que lhe
resta, a saudade de uma filha que era, sim, sua, e uma história que deve
ser lembrada como um verdadeiro exemplo de adoção incondicional, nem
que seja nesta sentença”.
Entretanto, não conto esse caso
simplesmente para comover os leitores. Chamou a atenção a frase
“verdadeiro exemplo de adoção incondicional”. Eu explico por quê. Embora
considere a adoção um ato maravilhoso, e também entendo o desejo dos
pais de quererem crianças saudáveis, algumas exigências dos pais
candidatos à adoção me fazem refletir bastante.
De acordo com dados
do Cadastro Nacional de Adoção, no qual já constam informações de 2012,
existem 5.163 crianças e jovens disponíveis para a adoção no Brasil. O
universo de pretendentes é de 27.813. Uma olhada na quantidade de gente
que quer adotar dá até um nó na cabeça, não dá? Muita gente afirma que a
burocracia dos processos de adoção é desanimadora. Porém, ela se faz
necessária. Aliás, mesmo com tanto cuidado por parte do estado, há
inúmeros casos de adoções mal sucedidas e até, pasmem, de “devolução”.
Mas será que é mesmo a burocracia que não faz juntar as pontas?
Vejamos. O mesmo cadastro mostra que 90,9% desse total de pretendentes
querem crianças brancas. Na outra ponta, do total de crianças a serem
adotadas, 2.272, ou o correspondente a 46%, são pardas; outras 916, ou
18,69%, são negras; 35 (0,71%) são amarelas e 29 (0,50%) são indígenas.
Apenas 1.657, ou 33,82 %, são brancas. Ou seja, a conta não bate.
Cerca de 60% dos pais adotantes não têm preferência quanto ao sexo da
criança, mas 33,31% querem meninas. E do outro lado? A maioria se
constitui de meninos: são 2.754 garotos esperando um lar. Além disso,
57,8% destes interessados desejam adotar crianças só até os dois anos de
idade.
Outra questão importante: mais de 80% das crianças que
esperam um lar possuem irmãos. Embora nem todos os irmãos estejam
cadastrados para adoção, há certo esforço dos agentes de adoção no
sentido de que os irmãos cresçam juntos. Difícil tarefa: 82,5% dos
adotantes querem apenas um filho.
Ou seja, a impressão que se tem é a
de que nem todos os casais que se candidatam à adoção estão preocupados
com as necessidades das crianças, mas, sim, são movidos por suas
próprias necessidades. Crianças não estão como que numa vitrine ou
prateleira, disponíveis para contemplação e escolha.
Daí a frase do
juiz acerca da pedagoga reverberar tanto: “uma história que deve ser
lembrada como um verdadeiro exemplo de adoção incondicional”, fato
raríssimo por essas plagas tupiniquins.
Ivone Zeger é advogada
especialista em Direito de Família e Sucessão, integrante da Comissão de
Direito de Família da OAB-SP e autora dos livros Herança: Perguntas e
Respostas e Família: Perguntas e Respostas.
http://www.conjur.com.br/2013-set-15/ivone-zeger-criancas-nao-vem-mundo-suprir-expectativas
Nenhum comentário:
Postar um comentário