segunda-feira, 5 de março de 2018

A ADOÇÃO DE UMA CRIANÇA COM MICROCEFALIA NO DF (Reprodução)

Walter Gomes de Sousa

Psicólogo judiciário e supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta  da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal


A menina que hoje está com 1 ano de vida foi entregue para adoção pela mãe biológica ainda no hospital. Já nos primeiros minutos após o nascimento, foi encaminhada para a unidade de terapia intensiva em razão da suspeita de ter microcefalia. Após três meses de muitos exames e meticulosas avaliações médicas, saiu o diagnóstico: confirmada sorologia IGM (método Eliza) positiva para Zika Vírus, ratificando a causa etiológica da microcefalia. O controvertido diagnóstico com suas imprevisíveis sequelas somado ao fato de não poder usufruir dos laços afetivos ao lado de sua família natural moldaram inicialmente um cenário bastante pessimista em relação ao futuro dessa tão delicada e sofrida bebezinha. 

As razões invocadas pela mãe biológica dessa recém-nascida para entregá-la em adoção foram desde as precárias condições socioeconômicas até a falta de recursos emocionais para lidar com o diagnóstico de microcefalia. O citado ato de entrega em adoção foi respaldado pelos demais parentes de sua ampla rede familiar; e, diante disso, a autoridade judiciária determinou o cadastramento da infante para adoção.

          Após a inserção da criança no cadastro de disponibilizados para adoção, compete à equipe técnica da Justiça Infantojuvenil iniciar o processo de consulta às famílias habilitadas que tenham estabelecido um perfil desejado compatível com o da criança. Essa tarefa é uma das mais delicadas e especiais dentre tantas outras que integram o protocolo psicossocial da busca de famílias habilitadas para adoção de uma criança ou de um adolescente. Destaco que há um esforço desmesurado por parte da equipe técnica da Justiça Infantojuvenil na tentativa de localizar uma família adequada para esses perfis complexos. E o reduzido número ou mesmo ausência de postulantes compatíveis não diminui a motivação e o compromisso com a tentativa de se reescrever a história dessas crianças e adolescentes.
O procedimento técnico de buscar uma família habilitada para adoção de crianças e adolescentes implica invariavelmente verificar previamente alguns aspectos dos candidatos postulantes, tais como o potencial de afetividade, a presença de indicadores de proteção, o nível de motivação e a predisposição para o enfrentamento dos riscos e dos desafios inerentes ao processo de construção dos vínculos parentais adotivos. Em se tratando de buscar famílias para crianças com deficiência, com doença crônica ou com necessidades específicas de saúde, os cuidados e cautelas devem ser redobrados.

          As recentes mudanças implementadas na área de adoção por meio da Lei 13.509/2017 garantem a tramitação prioritária e célere de processos de habilitação em que os postulantes demonstram interesse na adoção de crianças com deficiência, doença crônica ou necessidades específicas de saúde. Embora a maioria das pessoas desconheçam, é cada vez menor o quantitativo de candidatos à adoção que apresentam flexibilidade e interesse em acolher crianças ou adolescentes com tais características. A preferência das famílias habilitadas continua sendo na maioria dos casos por crianças de tenra idade e saudáveis. 

         Diante desse cenário, as equipes técnicas da Justiça Infantojuvenil em parceria com os grupos de apoio à adoção de todo o Brasil têm deflagrado campanhas por meio de redes sociais objetivando a localização de famílias habilitadas que se predisponham a rever o perfil da criança pretendida para adoção e se permitam refletir sobre a possibilidade de investir na construção de laços filiais e paterno-maternais com crianças de perfis adversos daquele alcunhado como clássico (recém-nascido, saudável, branco e sem irmãos) e ainda perseguido por número expressivo de postulantes habilitados. Poucas são as famílias que se apresentam flexibilizadas e sensibilizadas para operacionalizar uma adoção diferenciada envolvendo as crianças ou adolescentes com perfis complexos e desafiadores. A maioria das famílias habilitadas para adoção, não apenas no Distrito Federal mas também nas demais comarcas brasileiras, continuam informando ao Sistema de Justiça Infantojuvenil um perfil de preferência ainda cercado de restrições e exigências. Via de regra, tais famílias almejam adotar crianças de tenra idade, saudáveis e sem irmãos, o que impossibilita que a maioria dos disponibilizados nos cadastros
estaduais e nacional de adoção desejosos de encontrarem um lar protetivo e afetivo de fato concretizem seus sonhos. 

Embora em número bastante reduzido, o Sistema de Justiça Infantojuvenil, em parceria com os grupos de apoio à adoção, tem conseguido localizar algumas dessas famílias que se predispõem a conhecer e a acolher crianças ou adolescentes com perfis diferenciados. Essas famílias, na maioria das vezes, mostram-se com características bastante peculiares: são discretas, não afeitas à publicidade, determinadas quanto à decisão em prol da adoção, focadas na entrega afetiva e na construção dos laços parentais e com uma inesgotável capacidade de resiliência e superação de limites.

Esse tão raro perfil de família para adoção foi localizado pela equipe técnica da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal neste início de 2018 através dos sites de Busca Ativa. A referida família aceitou conhecer a história de vida da primeira criança com microcefalia derivada do Zika Vírus cadastrada para adoção na Capital do País e conhecê-la pessoalmente na instituição de acolhimento. O primeiro e determinante contato foi cercado de muita expectativa e incontida emoção. Após se inteirar de todas as informações e conhecer pessoalmente a infante, a resposta da família foi surpreendente: “Queremos acolher essa linda menina de forma plena e independentemente de diagnóstico, das demandas que vierem ou das incertezas futuras. Só temos uma certeza: ela já é nossa filha através do amor!”. Testemunhamos assim a primeira adoção no Distrito Federal de uma criança cadastrada para adoção com o diagnóstico de microcefalia derivada do Zika Vírus.

A referida família compartilhou com a equipe técnica as primeiras impressões a respeito dessa experiência adotiva. Segundo eles, a família extensa demonstrou muita preocupação e receio no início em razão da complexidade do diagnóstico e dos desafios impostos. Entretanto, quando todos perceberam a intensidade do amor dos postulantes e o poder de cativação da criança, a resistência inicial deu lugar à entrega e à celebração.

           Relataram que vão se esmerar ao máximo para garantir os cuidados necessários ao bem-estar da criança. Estão operando uma ampla reorganização

na agenda de vida da família de maneira que a realidade da criança seja prioridade absoluta. Sabem que uma das lutas será contra o preconceito social e que em relação a isso estão decididos a lutar pela criança em todos os aspectos e vocalizar seus desejos, necessidades e direitos. Concluíram afirmando que o amor que passaram a nutrir pela adotanda é de tal ordem que estão dispostos a acionar todos os recursos clínicos e psicossociais disponíveis para que ela possa desenvolver plenamente o potencial que carrega. 

As reações e palavras dessa família adotiva conduzem à indubitável conclusão de que adoção é entrega total e sem limites e que a prioridade deve ser não a satisfação primeira do adulto, mas a promoção da alegria, do bemestar e da proteção integral do adotando. Quando existe o potencial e a incondicionalidade do amor acolhedor em uma família pleiteante, os traços, características, histórico genético ou familiar de uma criança ou adolescente apto para adoção se tornam secundários. 

          Adoção é se entregar sem limites e com a determinação afetiva de transformar uma criança ou adolescente em filho, dando-lhe um lar cercado de proteção, carinho, segurança e muito amor. Alguém conseguiu de forma simples e objetiva retratar a adoção nos seguintes termos: “Filho biológico se ama porque é filho. E filho adotivo é filho porque se ama”.

          A história de adoção da primeira criança cadastrada no DF com microcefalia derivada do Zika Vírus representa uma lufada de esperança em relação à possibilidade de a Justiça Infantojuvenil, em parceria estratégica com os grupos de apoio à adoção de todo o Brasil, aumentar o número de famílias habilitadas predispostas a realizarem adoções tardias envolvendo préadolescentes e adolescentes, grupos de irmãos e em especial aqueles com deficiência, doença crônica ou necessidades específicas de saúde.


Reproduzido por: Lucas H.

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