12/04/2016
Escrito por Sandra Soares (colaboradora)
Dois pais, duas mães, uma mãe sozinha, um homem e uma mulher sem filhos: os novos arranjos familiares do Brasil mudam leis e até roteiros de novela.
O futuro já chegou – ele apenas não está uniformemente distribuído. A frase é de William Gibson, escritor canadense considerado uma espécie de profeta da era digital, especialista em apontar tendências de comportamento desde muito antes de o termo trendhunter virar moda. Se Gibson está certo, o futuro já chegou na casa do estilista Alexandre Herchcovitch e do designer Fabio Souza. E na da modelo Carol Francischini. Já é futuro também para a stylist Flavia Pommianosky. E para muitas outras pessoas, entre elas talvez até mesmo você, que lê esta reportagem. Nesse futuro que começa a ganhar força, encontrar famílias como os Souza-Herchcovitch e seus dois filhos adotivos, mães solteiras (Carol e a filha, Valentina) e casais sem filhos (Flavia e o marido) não será motivo de espanto ou de curiosidade. Será tão normal quanto, por exemplo, conviver com casais divorciados.
Em pauta
Este mês completam-se dois anos da aprovação da obrigatoriedade, pelos cartórios brasileiros, da celebração de casamentos homoafetivos. Vale lembrar que o divórcio, legalizado em 1977, levou alguns anos para ganhar total aceitação mesmo depois de legitimado pela Justiça. Assim caminha a humanidade, ou pelo menos a fatia brasileira dela: a passos lentos, embora cada vez mais acelerados, em direção a um tempo em que as escolhas pessoais serão mais respeitadas, apesar de toda a gritaria nas redes sociais. Como na web os embates proliferam mais que os debates, pode parecer que apenas a intolerância, mais barulhenta e às vezes até violenta, está conquistando adeptos. Pois a tolerância também está. O problema é que tolerantes e intolerantes compõem dois exércitos – e cada lado segue tentando ampliar seu contingente ao capturar a atenção dos indecisos.
Fabio Souza, marido do estilista Alexandre Herchcovitch, acredita que a internet ajudou os homossexuais a sair do armário (confira a hashtag #familiasouzaherchcovitch). “Hoje tudo é mais claro. A geração gay jovem topou dar a cara a tapa, está militando, diferentemente da minha, que no geral preferiu se esconder”, diz ele. “Ainda que essa geração apanhe, porque afinal a homofobia hoje também é declarada, já existem recursos aos quais recorrer. Ao ganhar voz, a causa conquista simpatizantes. O preconceito se alimenta do medo e do desconhecimento.”
" “Hoje tudo é mais claro. A geração gay jovem topou dar a cara a tapa, está militando, diferentemente da minha, que no geral preferiu se esconder”"
Fabio diz preferir os adversários declarados, como a bancada evangélica do Congresso Nacional, aos opositores disfarçados. Sob a liderança do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), os fundamentalistas religiosos batalham pela criação do Dia do Orgulho Heterossexual (!) e para emplacar um projeto de lei segundo o qual só poderá ser considerado família o formato homem + mulher + descendentes. Batizado de Estatuto da Família, ele pretende dificultar a adoção de crianças por casais homossexuais. Mas esbarra na Constituição brasileira. A lei não deixa dúvida: o Brasil é um país laico. Sendo assim, propostas baseadas em argumentos e motivações religiosos não encontram respaldo jurídico.
A verdade é que essa movimentação vem acumulando vitórias nos tribunais e fora deles. A adoção de crianças por casais do mesmo sexo é uma realidade respaldada até mesmo pela maior instância jurídica brasileira, o Supremo Tribunal Federal (a primeira decisão do STF favorável ao tema saiu em março, em um processo apontado como histórico).
ÀS CLARAS
Nas novelas da Globo, beijos entre personagens do mesmo gênero são cada vez mais frequentes. Babilônia (2015) trouxe em seu capítulo de estreia um explosivo encontro de lábios entre duas grandes damas da dramaturgia, Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, na pele do casal Teresa e Estela. Bem mais duradouro que um selinho, o beijo pegou o país de surpresa. Beijos homossexuais costumavam ser anunciados com antecedência. Os incomodados poderiam deixar preparado um panelaço ou simplesmente desligar a TV na hora H. Bem, já não é mais assim.
Mais frequentes, mas ainda polêmicos, esses beijos provavelmente jamais serão uma unanimidade. Porque preconceitos costumam ser resistentes. Quase 130 anos após a abolição da escravatura no Brasil, ainda somos palco de manifestações racistas. As mulheres continuam sendo vítimas de machismo. Carol Francischini que o diga. Ao decidir ter e criar sozinha Valentina, hoje com 2 anos de idade, ela foi alvo de muitas críticas e principalmente de uma curiosidade desrespeitosa e invasiva sobre quem seria o pai da criança. “No Brasil, me deparei com extremos de machismo, mas também de feminismo”, lembra ela. Às provocações, misturavam-se mensagens de mulheres em situação semelhante à sua. Pedidos de conselhos. “Conversei e encorajei muitas grávidas que também haviam sido abandonadas logo após a descoberta da gravidez. Acredito que toda a polêmica em torno do meu caso tenha aberto uma porta por aqui. Nos Estados Unidos e na Europa, quando conto minha história, é comum as pessoas não se surpreenderem. No Brasil, ainda existe preconceito.”
"50,1% dos lares brasileiros abrigam arranjos familiares diferentes do tradicional mamãe, papai e filhos."
A stylist Flavia Pommianosky, que há 15 anos se divide entre duas cidades para ficar com o marido – ela passa a maior parte do tempo em São Paulo e ele no Rio –, descreve que o fato de o casal viver oficialmente em cidades diferentes e de não ter filhos provoca muita curiosidade nas pessoas. Uma curiosidade que nasce do confronto da realidade dela (46 anos, sem filhos) com os preconceitos alheios. “Tenho uma vida ótima, amo meu trabalho, viajo muito, minha relação com meu marido é de muito amor e tenho amigos íntimos e queridos, que acabam sendo, para mim, a família”, conta ela. “No Brasil, no entanto, convencionou-se que família é pai, mãe, filho, cachorro e planta no vaso. Determinou-se que mulher precisa ser tudo ao mesmo tempo: profissional, esposa, mãe e, claro, magra. Gente, não existe apenas um modelo de felicidade!”
Não existe mesmo. O último censo do IBGE comprova a variedade de modelos. O levantamento de 2010 mostrou que 50,1% dos lares brasileiros abrigam arranjos familiares diferentes do tradicional mamãe, papai e filhos. Pelas casas do país afora, moram pais e mães solteiros, casais sem filhos, casais gays, “famílias mosaico” (aquelas que combinam filhos de diferentes relações) e toda uma série de outras configurações. O futuro já chegou – ele apenas não está uniformemente distribuído.
Foto: família Souza-Herchcovitch
Original disponível em: http://mdemulher.abril.com.br/familia/elle/e-tudo-familia
Reproduzido por: Lucas H.
Escrito por Sandra Soares (colaboradora)
Dois pais, duas mães, uma mãe sozinha, um homem e uma mulher sem filhos: os novos arranjos familiares do Brasil mudam leis e até roteiros de novela.
O futuro já chegou – ele apenas não está uniformemente distribuído. A frase é de William Gibson, escritor canadense considerado uma espécie de profeta da era digital, especialista em apontar tendências de comportamento desde muito antes de o termo trendhunter virar moda. Se Gibson está certo, o futuro já chegou na casa do estilista Alexandre Herchcovitch e do designer Fabio Souza. E na da modelo Carol Francischini. Já é futuro também para a stylist Flavia Pommianosky. E para muitas outras pessoas, entre elas talvez até mesmo você, que lê esta reportagem. Nesse futuro que começa a ganhar força, encontrar famílias como os Souza-Herchcovitch e seus dois filhos adotivos, mães solteiras (Carol e a filha, Valentina) e casais sem filhos (Flavia e o marido) não será motivo de espanto ou de curiosidade. Será tão normal quanto, por exemplo, conviver com casais divorciados.
Em pauta
Este mês completam-se dois anos da aprovação da obrigatoriedade, pelos cartórios brasileiros, da celebração de casamentos homoafetivos. Vale lembrar que o divórcio, legalizado em 1977, levou alguns anos para ganhar total aceitação mesmo depois de legitimado pela Justiça. Assim caminha a humanidade, ou pelo menos a fatia brasileira dela: a passos lentos, embora cada vez mais acelerados, em direção a um tempo em que as escolhas pessoais serão mais respeitadas, apesar de toda a gritaria nas redes sociais. Como na web os embates proliferam mais que os debates, pode parecer que apenas a intolerância, mais barulhenta e às vezes até violenta, está conquistando adeptos. Pois a tolerância também está. O problema é que tolerantes e intolerantes compõem dois exércitos – e cada lado segue tentando ampliar seu contingente ao capturar a atenção dos indecisos.
Fabio Souza, marido do estilista Alexandre Herchcovitch, acredita que a internet ajudou os homossexuais a sair do armário (confira a hashtag #familiasouzaherchcovitch). “Hoje tudo é mais claro. A geração gay jovem topou dar a cara a tapa, está militando, diferentemente da minha, que no geral preferiu se esconder”, diz ele. “Ainda que essa geração apanhe, porque afinal a homofobia hoje também é declarada, já existem recursos aos quais recorrer. Ao ganhar voz, a causa conquista simpatizantes. O preconceito se alimenta do medo e do desconhecimento.”
" “Hoje tudo é mais claro. A geração gay jovem topou dar a cara a tapa, está militando, diferentemente da minha, que no geral preferiu se esconder”"
Fabio diz preferir os adversários declarados, como a bancada evangélica do Congresso Nacional, aos opositores disfarçados. Sob a liderança do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), os fundamentalistas religiosos batalham pela criação do Dia do Orgulho Heterossexual (!) e para emplacar um projeto de lei segundo o qual só poderá ser considerado família o formato homem + mulher + descendentes. Batizado de Estatuto da Família, ele pretende dificultar a adoção de crianças por casais homossexuais. Mas esbarra na Constituição brasileira. A lei não deixa dúvida: o Brasil é um país laico. Sendo assim, propostas baseadas em argumentos e motivações religiosos não encontram respaldo jurídico.
A verdade é que essa movimentação vem acumulando vitórias nos tribunais e fora deles. A adoção de crianças por casais do mesmo sexo é uma realidade respaldada até mesmo pela maior instância jurídica brasileira, o Supremo Tribunal Federal (a primeira decisão do STF favorável ao tema saiu em março, em um processo apontado como histórico).
ÀS CLARAS
Nas novelas da Globo, beijos entre personagens do mesmo gênero são cada vez mais frequentes. Babilônia (2015) trouxe em seu capítulo de estreia um explosivo encontro de lábios entre duas grandes damas da dramaturgia, Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, na pele do casal Teresa e Estela. Bem mais duradouro que um selinho, o beijo pegou o país de surpresa. Beijos homossexuais costumavam ser anunciados com antecedência. Os incomodados poderiam deixar preparado um panelaço ou simplesmente desligar a TV na hora H. Bem, já não é mais assim.
Mais frequentes, mas ainda polêmicos, esses beijos provavelmente jamais serão uma unanimidade. Porque preconceitos costumam ser resistentes. Quase 130 anos após a abolição da escravatura no Brasil, ainda somos palco de manifestações racistas. As mulheres continuam sendo vítimas de machismo. Carol Francischini que o diga. Ao decidir ter e criar sozinha Valentina, hoje com 2 anos de idade, ela foi alvo de muitas críticas e principalmente de uma curiosidade desrespeitosa e invasiva sobre quem seria o pai da criança. “No Brasil, me deparei com extremos de machismo, mas também de feminismo”, lembra ela. Às provocações, misturavam-se mensagens de mulheres em situação semelhante à sua. Pedidos de conselhos. “Conversei e encorajei muitas grávidas que também haviam sido abandonadas logo após a descoberta da gravidez. Acredito que toda a polêmica em torno do meu caso tenha aberto uma porta por aqui. Nos Estados Unidos e na Europa, quando conto minha história, é comum as pessoas não se surpreenderem. No Brasil, ainda existe preconceito.”
"50,1% dos lares brasileiros abrigam arranjos familiares diferentes do tradicional mamãe, papai e filhos."
A stylist Flavia Pommianosky, que há 15 anos se divide entre duas cidades para ficar com o marido – ela passa a maior parte do tempo em São Paulo e ele no Rio –, descreve que o fato de o casal viver oficialmente em cidades diferentes e de não ter filhos provoca muita curiosidade nas pessoas. Uma curiosidade que nasce do confronto da realidade dela (46 anos, sem filhos) com os preconceitos alheios. “Tenho uma vida ótima, amo meu trabalho, viajo muito, minha relação com meu marido é de muito amor e tenho amigos íntimos e queridos, que acabam sendo, para mim, a família”, conta ela. “No Brasil, no entanto, convencionou-se que família é pai, mãe, filho, cachorro e planta no vaso. Determinou-se que mulher precisa ser tudo ao mesmo tempo: profissional, esposa, mãe e, claro, magra. Gente, não existe apenas um modelo de felicidade!”
Não existe mesmo. O último censo do IBGE comprova a variedade de modelos. O levantamento de 2010 mostrou que 50,1% dos lares brasileiros abrigam arranjos familiares diferentes do tradicional mamãe, papai e filhos. Pelas casas do país afora, moram pais e mães solteiros, casais sem filhos, casais gays, “famílias mosaico” (aquelas que combinam filhos de diferentes relações) e toda uma série de outras configurações. O futuro já chegou – ele apenas não está uniformemente distribuído.
Foto: família Souza-Herchcovitch
Original disponível em: http://mdemulher.abril.com.br/familia/elle/e-tudo-familia
Reproduzido por: Lucas H.
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