30/03/2016
Depoimento a Letícia González
A dentista Gina Yara de Sousa Pereira, 57 anos, se encantou com uma menina de 1 ano que sofria de maus-tratos e foi abandonada em um abrigo. Depois de seis meses com a neném em casa, a Justiça tirou sua guarda. Gina teve que lidar com a mágoa da criança, que não entendia o que estava acontecendo, se sentia abandonada e rejeitada pela segunda vez, até conseguir adotá-la definitivamente.
“Minha vida virou do avesso no dia 22 de abril de 2003, quando bati os olhos numa menininha sorridente, deitada no berço de um abrigo público de Brasília, fazendo a única coisa que sabia com 1 ano e 1 semana de vida: chupar o dedo indicador. Era minha primeira vez no orfanato, em que fui trabalhar como voluntária. Lá, não havia ajudantes nem para as tarefas básicas, como trocar as fraldas das crianças, todas em situação de risco. Estávamos ali, eu e meu marido, justamente para auxiliar a equipe e oferecer carinho aos pequenos. Julia* me encarava com seus olhinhos vivos e um sorriso sapeca. Não conseguia desviar minha atenção dela.
Soube na hora que sua saúde era frágil. Ela tinha 4,8 quilos, enquanto o peso normal para uma menina dessa idade são 10 quilos. Era um caso de desnutrição extrema. Ela vomitava tudo que comia, uma tristeza. O pessoal do abrigo estava convencido de que, de tão frágil, ela não sobreviveria. Aquilo me tocou de um jeito que passei a visitar o local com meu marido todos os fins de semana. Assim que chegávamos, corríamos para ver se ela estava viva. Ficávamos aliviados ao encontrá-la no berço e líamos seu relatório semanal para ver como ela tinha evoluído. Comemorávamos toda vez que a encontrávamos bem.
A diretora me contou que Julia, como as outras crianças, vinha de um lar desestruturado. Os pais eram alcoólatras e haviam sido denunciados por maus-tratos por uma vizinha. Percebendo meu interesse, explicou que ela não estava disponível para adoção. A Justiça ainda estava decidindo seu destino, mas o provável era que Julia ficasse com um familiar. ‘Ok’, respondi. Mas não desisti. Já tínhamos uma filha, Luana*, estudante de direito. Engravidei aos 23 anos, dois meses após me casar. Foi um parto difícil e demorado. Depois disso, decidimos que teríamos uma única herdeira biológica. Meu marido fez vasectomia com 26 anos. Sempre falávamos que, se quiséssemos aumentar a família, adotaríamos.
Quando conheci Julia, a vontade veio imediatamente. Quis saber mais sobre ela e a diretora da instituição me deixou dar uma olhada em sua ficha. Normalmente os voluntários não têm acesso a esses detalhes mas, percebendo nossas boas intenções, ela liberou. Assim chegamos, meu marido e eu, até Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, na casa da avó paterna de Julia, dona Aurora*. Era para ela que a Justiça provavelmente reverteria a guarda.
Mas Aurora nos contou que não se sentia apta para criar Julia. Tinha muitos problemas de saúde e poucos recursos financeiros para isso. A essa altura, estávamos apaixonados pela criança, justamente por sua doçura e fragilidade. Tomei fôlego e pedi que ela me deixasse cuidar da neta. Para minha surpresa, Aurora concordou de imediato. Disse que parecíamos pessoas de bem. Então chamou o filho (que vivia na mesma casa) e contou a novidade. Ele não gostou da ideia, disse que a preferia no abrigo. Mas a mãe insistiu que era uma chance de sobrevivência e que Julia estaria em boas mãos. Honestamente, não sei como ela concluiu isso, era a primeira vez que nos via. Mas ficamos radiantes. A mãe da neném estava sumida. Tinha apenas 19 anos e problemas com álcool desde os 11. Tinha desistido de cuidar da pequena havia muito tempo.
Um mês se passou até que a guarda saiu, de fato, para a avó. Na sequência, ela foi até a Vara da Infância para reverter a situação em nosso favor. Por envolver risco de morte da neném, o juiz nos concedeu a guarda rapidamente. A testemunha do processo foi a mesma vizinha que havia feito a denúncia contra a família. Nos primeiros meses de vida, Julia era largada sozinha em casa e berrava de fome por horas seguidas. Essa moça entrava pela janela, dava leite à pequena e saía sem ser vista. O acordo informal com o pai de Julia exigia que a levássemos para vê-lo a cada 15 dias.
Foi essa criança desnutrida que levamos para casa. Luana tinha 20 anos na época. Colocamos o berço em nosso quarto, Julia estava entre a vida e a morte. Começou uma verdadeira maratona de consultas e exames. Foram diagnosticadas surdez bilateral severa, escoliose congênita (curvatura da coluna) e mau funcionamento na válvula cardíaca. Muitos desses problemas eram decorrentes da desnutrição e da gestação desregrada. Em pouco tempo, a menina se tornou a ‘preferida da emergência’, devido a visitas constantes. Chegávamos ao pronto-socorro e as enfermeiras diziam a ela: ‘Você de novo?!’. Nossa empregada não queria ficar sozinha com Julia, morria de medo de a bebê ter um mal súbito. Nós também. Lembro de uma vez que ela convulsionou no meu colo e fomos ao hospital às 4h da manhã. Só depois de longos minutos ela voltou ao normal.
A cada 15 dias, íamos a Ceilândia cumprir o combinado com o pai biológico. Nessas visitas, deixávamos a neném com a avó por duas horas. Nos despedíamos chorando e Julia também, aos berros. Era um alívio pegá-la de volta.
Já em nossa casa, passamos seis meses de muito amor, embora Julia fosse para o hospital toda hora. Quando estava bem de saúde, era nossa princesa. Sorridente e cada dia mais curiosa, andava sem medo, queria mexer em tudo. Tinha a barriga inchada devido aos problemas com a alimentação, mas era muito ativa. E assim nossa vida seguiu até que, num fim de semana, estávamos com parentes em casa e não conseguimos ir ao encontro do pai. Ele telefonou indignado, me xingou de tudo. Foi a gota d’água. Por causa da bebida, seu comportamento oscilava e decidimos pedir ajuda à Vara da Infância para mediar a situação. O promotor foi claro: ‘Está tudo errado. Essa relação cordial não funciona’. Depois, disse que o juiz avaliaria o caso e, enquanto isso, Julia teria de voltar para o abrigo. Nosso chão se abriu.
Depois de começarmos uma vida nova, voltamos para casa com os braços vazios. Foi o pior dia da minha vida. Desmontamos o berço naquela mesma noite, aos prantos. Luana ficou chocada quando chegou do trabalho e recebeu a notícia. Chorávamos o tempo todo. Recolhi os brinquedos, as roupinhas, a banheira. Vivemos um luta. Não tínhamos nenhuma previsão de quando – e se – ela voltaria para nossa casa.
Já no dia seguinte fomos ao abrigo revê-la. Julia nos viu e veio em nossa direção correndo. Achou que a levaríamos embora e dava tchau para todo mundo. Aquilo só me fez chorar mais – até hoje sofro lembrando da cena. Passamos o dia todo com ela e, na hora da despedida, mais e mais pranto. Julia gritava, não entendia o que estava acontecendo. Em casa, a tristeza imperava. Depois de anos longe do vício, eu e meu marido voltamos a fumar. No meio da crise, ele teve a ideia: e se entrássemos na fila de adoção? ‘Se um dia ela estiver disponível, estaremos aptos.’ Era uma estratégia quase sem fundamento, já que Julia não havia sido destituída em definitivo da família biológica.
Na próxima visita ao abrigo, no sábado seguinte, o porteiro nos alertou: ‘Vieram ver a Julia? Ela está internada’. Corremos para o hospital, apavorados. Quando a encontramos, estava sozinha na maca da emergência. Que desespero! Além de ter diarreia e vômito, Julia agora estava magoada e quase não olhava no nosso rosto. À tarde, meu marido ligou para o pai biológico. Quando perguntamos se não iria visitá-la, disse que ia desistir de Julia. Podíamos ficar com ela se quiséssemos. Mas as coisas não eram assim tão simples. Essa decisão não cabia a ele nem a nós, mas à Justiça.
Pedimos sua transferência para o Lar da Criança Padre Cícero, um lugar que abriga crianças em situação de risco. Por causa de seu estado, a transferência saiu rápido. Julia recebia um atendimento ótimo, mas, a cada visita, sua mágoa aumentava. Não conseguia entender por que não a levávamos para casa, se sentia rejeitada. Aceitava ficar no colo, mas não tolerava que encostássemos em seus bracinhos. Quando tentávamos um carinho, reagia como se a estivéssemos queimando com ferro quente. Um beijo e ela escorregava do meu colo direto para o chão.
Até que uma assistente da Vara da Infância nos chamou para uma conversa. Havia ficado curiosa com nossa decisão de entrar na fila para adotar alguém que não estava disponível. Depois de visitar a família, havia concluído que Julia não tinha condições de ser criada pelos pais. ‘Ela vai morrer se voltar. Vou indicá-la para adoção’, falou. Era tudo que queríamos ouvir.
Mesmo assim, insistiu, nada garantia que seríamos os escolhidos. ‘O juiz pode preferir seguir a fila de espera.’ Nessa hora, entendi o verdadeiro amor que sentíamos por ela: se alguém a amasse com todos os problemas de saúde que tinha, abriríamos mão dela. Com muita dor, mas cientes de que seria para o seu bem. Assim, entramos em uma fase aflitiva, mas cheia de esperança. A assistente disse que retiraria a sugestão caso soubesse de alguma conversa nossa com a avó de Julia até a sentença sair. Uma semana depois da conversa com a assistente, o juiz acatou sua sugestão. Nossa filha podia ser adotada por nós!
Depois de um mês afastados, buscamos Julia no abrigo e a trouxemos para casa. Ela, então com 1 ano e 10 meses, chorava sem parar. Estava emburrada, não queria saber de nós. Assim que chegamos, fiz uma mamadeira e, quando entreguei a ela, jogou longe. Tentamos de tudo, mas ela virava o rosto e chorava. Meu marido teve a ideia de colocá-la na banheira – antes, ela adorava a hora do banho. Começou devagar, pingando gotinhas em seu braço, e nada. Foi insistindo com paciência até que, duas horas depois, ela pegou um bonequinho na mão e começou a brincar. Depois do banho, com fome, pegou a nova mamadeira que ofereci e subiu no meu colo para tomá-la.
Era março de 2004 quando nossa vida ganhou um novo sentido e eu, aos 44 anos, uma nova experiência de maternidade. Ser mãe da Luana me ensinou que tudo passa muito rápido. Por isso, com a Julia, me via mais paciente, nada me incomodava. Ela passava mal da barriguinha toda noite, mas eu não me importava em acordar para acudi-la. Tinha uma noção muito forte de que a neném estava conosco porque queríamos. Lembro dos seus primeiros passos, já com 2 anos – por causa da saúde frágil, ela demorou para andar, falar, comer sozinha. Era um sábado, tinha dormido a tarde toda e, quando acordou, andou pela primeira vez. Dava gritinhos de felicidade!
Em outubro do mesmo ano, a adoção finalmente foi assinada. Senti um alívio enorme, agora era irreversível. Mas a luta por sua saúde continuou. Julia ainda tinha muita dificuldade para ganhar peso. Com mais de 3 anos, tinha o tamanho de uma criança de 1. Eu batia a comida e dava para ela com uma colherinha e, mesmo assim, muitas vezes ela vomitava. Depois de uma verdadeira saga pelas principais clínicas do país, descobrimos o problema: uma oclusão entre o estômago e o intestino, que impedia a comida de passar. Julia passou por uma cirurgia de alto risco aos 4 anos e começou a engordar.
Apesar de tudo, cresceu alegre, muito apegada a nós e um pouco mimada – meu marido diz que ela já chorou por toda uma vida. Hoje, está com 13 anos e acaba de começar a estudar numa escola dedicada a deficientes auditivos, em São Paulo, para onde nos mudamos em dezembro. É uma adolescente típica. Ora está feliz, ora emburrada. Adora as redes sociais e o celular. Nunca escondemos de Julia seu passado. Vez ou outra, pede para ver fotos antigas e ouvir relatos de quando era bebê. Sabe que nos apaixonamos por ela e quisemos ser seus pais. Meu único desejo é que fique em paz com sua história e seja feliz.”
Original disponível em: http://revistamarieclaire.globo.com/EuLeitora/noticia/2016/03/eu-leitora-justica-tirou-dos-meus-bracos-um-bebe-beira-da-morte-e-consegui-reconquista-lo.html
Reproduzido por: Lucas H.
Depoimento a Letícia González
A dentista Gina Yara de Sousa Pereira, 57 anos, se encantou com uma menina de 1 ano que sofria de maus-tratos e foi abandonada em um abrigo. Depois de seis meses com a neném em casa, a Justiça tirou sua guarda. Gina teve que lidar com a mágoa da criança, que não entendia o que estava acontecendo, se sentia abandonada e rejeitada pela segunda vez, até conseguir adotá-la definitivamente.
“Minha vida virou do avesso no dia 22 de abril de 2003, quando bati os olhos numa menininha sorridente, deitada no berço de um abrigo público de Brasília, fazendo a única coisa que sabia com 1 ano e 1 semana de vida: chupar o dedo indicador. Era minha primeira vez no orfanato, em que fui trabalhar como voluntária. Lá, não havia ajudantes nem para as tarefas básicas, como trocar as fraldas das crianças, todas em situação de risco. Estávamos ali, eu e meu marido, justamente para auxiliar a equipe e oferecer carinho aos pequenos. Julia* me encarava com seus olhinhos vivos e um sorriso sapeca. Não conseguia desviar minha atenção dela.
Soube na hora que sua saúde era frágil. Ela tinha 4,8 quilos, enquanto o peso normal para uma menina dessa idade são 10 quilos. Era um caso de desnutrição extrema. Ela vomitava tudo que comia, uma tristeza. O pessoal do abrigo estava convencido de que, de tão frágil, ela não sobreviveria. Aquilo me tocou de um jeito que passei a visitar o local com meu marido todos os fins de semana. Assim que chegávamos, corríamos para ver se ela estava viva. Ficávamos aliviados ao encontrá-la no berço e líamos seu relatório semanal para ver como ela tinha evoluído. Comemorávamos toda vez que a encontrávamos bem.
A diretora me contou que Julia, como as outras crianças, vinha de um lar desestruturado. Os pais eram alcoólatras e haviam sido denunciados por maus-tratos por uma vizinha. Percebendo meu interesse, explicou que ela não estava disponível para adoção. A Justiça ainda estava decidindo seu destino, mas o provável era que Julia ficasse com um familiar. ‘Ok’, respondi. Mas não desisti. Já tínhamos uma filha, Luana*, estudante de direito. Engravidei aos 23 anos, dois meses após me casar. Foi um parto difícil e demorado. Depois disso, decidimos que teríamos uma única herdeira biológica. Meu marido fez vasectomia com 26 anos. Sempre falávamos que, se quiséssemos aumentar a família, adotaríamos.
Quando conheci Julia, a vontade veio imediatamente. Quis saber mais sobre ela e a diretora da instituição me deixou dar uma olhada em sua ficha. Normalmente os voluntários não têm acesso a esses detalhes mas, percebendo nossas boas intenções, ela liberou. Assim chegamos, meu marido e eu, até Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, na casa da avó paterna de Julia, dona Aurora*. Era para ela que a Justiça provavelmente reverteria a guarda.
Mas Aurora nos contou que não se sentia apta para criar Julia. Tinha muitos problemas de saúde e poucos recursos financeiros para isso. A essa altura, estávamos apaixonados pela criança, justamente por sua doçura e fragilidade. Tomei fôlego e pedi que ela me deixasse cuidar da neta. Para minha surpresa, Aurora concordou de imediato. Disse que parecíamos pessoas de bem. Então chamou o filho (que vivia na mesma casa) e contou a novidade. Ele não gostou da ideia, disse que a preferia no abrigo. Mas a mãe insistiu que era uma chance de sobrevivência e que Julia estaria em boas mãos. Honestamente, não sei como ela concluiu isso, era a primeira vez que nos via. Mas ficamos radiantes. A mãe da neném estava sumida. Tinha apenas 19 anos e problemas com álcool desde os 11. Tinha desistido de cuidar da pequena havia muito tempo.
Um mês se passou até que a guarda saiu, de fato, para a avó. Na sequência, ela foi até a Vara da Infância para reverter a situação em nosso favor. Por envolver risco de morte da neném, o juiz nos concedeu a guarda rapidamente. A testemunha do processo foi a mesma vizinha que havia feito a denúncia contra a família. Nos primeiros meses de vida, Julia era largada sozinha em casa e berrava de fome por horas seguidas. Essa moça entrava pela janela, dava leite à pequena e saía sem ser vista. O acordo informal com o pai de Julia exigia que a levássemos para vê-lo a cada 15 dias.
Foi essa criança desnutrida que levamos para casa. Luana tinha 20 anos na época. Colocamos o berço em nosso quarto, Julia estava entre a vida e a morte. Começou uma verdadeira maratona de consultas e exames. Foram diagnosticadas surdez bilateral severa, escoliose congênita (curvatura da coluna) e mau funcionamento na válvula cardíaca. Muitos desses problemas eram decorrentes da desnutrição e da gestação desregrada. Em pouco tempo, a menina se tornou a ‘preferida da emergência’, devido a visitas constantes. Chegávamos ao pronto-socorro e as enfermeiras diziam a ela: ‘Você de novo?!’. Nossa empregada não queria ficar sozinha com Julia, morria de medo de a bebê ter um mal súbito. Nós também. Lembro de uma vez que ela convulsionou no meu colo e fomos ao hospital às 4h da manhã. Só depois de longos minutos ela voltou ao normal.
A cada 15 dias, íamos a Ceilândia cumprir o combinado com o pai biológico. Nessas visitas, deixávamos a neném com a avó por duas horas. Nos despedíamos chorando e Julia também, aos berros. Era um alívio pegá-la de volta.
Já em nossa casa, passamos seis meses de muito amor, embora Julia fosse para o hospital toda hora. Quando estava bem de saúde, era nossa princesa. Sorridente e cada dia mais curiosa, andava sem medo, queria mexer em tudo. Tinha a barriga inchada devido aos problemas com a alimentação, mas era muito ativa. E assim nossa vida seguiu até que, num fim de semana, estávamos com parentes em casa e não conseguimos ir ao encontro do pai. Ele telefonou indignado, me xingou de tudo. Foi a gota d’água. Por causa da bebida, seu comportamento oscilava e decidimos pedir ajuda à Vara da Infância para mediar a situação. O promotor foi claro: ‘Está tudo errado. Essa relação cordial não funciona’. Depois, disse que o juiz avaliaria o caso e, enquanto isso, Julia teria de voltar para o abrigo. Nosso chão se abriu.
Depois de começarmos uma vida nova, voltamos para casa com os braços vazios. Foi o pior dia da minha vida. Desmontamos o berço naquela mesma noite, aos prantos. Luana ficou chocada quando chegou do trabalho e recebeu a notícia. Chorávamos o tempo todo. Recolhi os brinquedos, as roupinhas, a banheira. Vivemos um luta. Não tínhamos nenhuma previsão de quando – e se – ela voltaria para nossa casa.
Já no dia seguinte fomos ao abrigo revê-la. Julia nos viu e veio em nossa direção correndo. Achou que a levaríamos embora e dava tchau para todo mundo. Aquilo só me fez chorar mais – até hoje sofro lembrando da cena. Passamos o dia todo com ela e, na hora da despedida, mais e mais pranto. Julia gritava, não entendia o que estava acontecendo. Em casa, a tristeza imperava. Depois de anos longe do vício, eu e meu marido voltamos a fumar. No meio da crise, ele teve a ideia: e se entrássemos na fila de adoção? ‘Se um dia ela estiver disponível, estaremos aptos.’ Era uma estratégia quase sem fundamento, já que Julia não havia sido destituída em definitivo da família biológica.
Na próxima visita ao abrigo, no sábado seguinte, o porteiro nos alertou: ‘Vieram ver a Julia? Ela está internada’. Corremos para o hospital, apavorados. Quando a encontramos, estava sozinha na maca da emergência. Que desespero! Além de ter diarreia e vômito, Julia agora estava magoada e quase não olhava no nosso rosto. À tarde, meu marido ligou para o pai biológico. Quando perguntamos se não iria visitá-la, disse que ia desistir de Julia. Podíamos ficar com ela se quiséssemos. Mas as coisas não eram assim tão simples. Essa decisão não cabia a ele nem a nós, mas à Justiça.
Pedimos sua transferência para o Lar da Criança Padre Cícero, um lugar que abriga crianças em situação de risco. Por causa de seu estado, a transferência saiu rápido. Julia recebia um atendimento ótimo, mas, a cada visita, sua mágoa aumentava. Não conseguia entender por que não a levávamos para casa, se sentia rejeitada. Aceitava ficar no colo, mas não tolerava que encostássemos em seus bracinhos. Quando tentávamos um carinho, reagia como se a estivéssemos queimando com ferro quente. Um beijo e ela escorregava do meu colo direto para o chão.
Até que uma assistente da Vara da Infância nos chamou para uma conversa. Havia ficado curiosa com nossa decisão de entrar na fila para adotar alguém que não estava disponível. Depois de visitar a família, havia concluído que Julia não tinha condições de ser criada pelos pais. ‘Ela vai morrer se voltar. Vou indicá-la para adoção’, falou. Era tudo que queríamos ouvir.
Mesmo assim, insistiu, nada garantia que seríamos os escolhidos. ‘O juiz pode preferir seguir a fila de espera.’ Nessa hora, entendi o verdadeiro amor que sentíamos por ela: se alguém a amasse com todos os problemas de saúde que tinha, abriríamos mão dela. Com muita dor, mas cientes de que seria para o seu bem. Assim, entramos em uma fase aflitiva, mas cheia de esperança. A assistente disse que retiraria a sugestão caso soubesse de alguma conversa nossa com a avó de Julia até a sentença sair. Uma semana depois da conversa com a assistente, o juiz acatou sua sugestão. Nossa filha podia ser adotada por nós!
Depois de um mês afastados, buscamos Julia no abrigo e a trouxemos para casa. Ela, então com 1 ano e 10 meses, chorava sem parar. Estava emburrada, não queria saber de nós. Assim que chegamos, fiz uma mamadeira e, quando entreguei a ela, jogou longe. Tentamos de tudo, mas ela virava o rosto e chorava. Meu marido teve a ideia de colocá-la na banheira – antes, ela adorava a hora do banho. Começou devagar, pingando gotinhas em seu braço, e nada. Foi insistindo com paciência até que, duas horas depois, ela pegou um bonequinho na mão e começou a brincar. Depois do banho, com fome, pegou a nova mamadeira que ofereci e subiu no meu colo para tomá-la.
Era março de 2004 quando nossa vida ganhou um novo sentido e eu, aos 44 anos, uma nova experiência de maternidade. Ser mãe da Luana me ensinou que tudo passa muito rápido. Por isso, com a Julia, me via mais paciente, nada me incomodava. Ela passava mal da barriguinha toda noite, mas eu não me importava em acordar para acudi-la. Tinha uma noção muito forte de que a neném estava conosco porque queríamos. Lembro dos seus primeiros passos, já com 2 anos – por causa da saúde frágil, ela demorou para andar, falar, comer sozinha. Era um sábado, tinha dormido a tarde toda e, quando acordou, andou pela primeira vez. Dava gritinhos de felicidade!
Em outubro do mesmo ano, a adoção finalmente foi assinada. Senti um alívio enorme, agora era irreversível. Mas a luta por sua saúde continuou. Julia ainda tinha muita dificuldade para ganhar peso. Com mais de 3 anos, tinha o tamanho de uma criança de 1. Eu batia a comida e dava para ela com uma colherinha e, mesmo assim, muitas vezes ela vomitava. Depois de uma verdadeira saga pelas principais clínicas do país, descobrimos o problema: uma oclusão entre o estômago e o intestino, que impedia a comida de passar. Julia passou por uma cirurgia de alto risco aos 4 anos e começou a engordar.
Apesar de tudo, cresceu alegre, muito apegada a nós e um pouco mimada – meu marido diz que ela já chorou por toda uma vida. Hoje, está com 13 anos e acaba de começar a estudar numa escola dedicada a deficientes auditivos, em São Paulo, para onde nos mudamos em dezembro. É uma adolescente típica. Ora está feliz, ora emburrada. Adora as redes sociais e o celular. Nunca escondemos de Julia seu passado. Vez ou outra, pede para ver fotos antigas e ouvir relatos de quando era bebê. Sabe que nos apaixonamos por ela e quisemos ser seus pais. Meu único desejo é que fique em paz com sua história e seja feliz.”
Original disponível em: http://revistamarieclaire.globo.com/EuLeitora/noticia/2016/03/eu-leitora-justica-tirou-dos-meus-bracos-um-bebe-beira-da-morte-e-consegui-reconquista-lo.html
Reproduzido por: Lucas H.
Nenhum comentário:
Postar um comentário