Ontem, 13 de julho, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990 completou 25 anos. Ainda é jovem, por óbvio, mas não é mais uma menina.
Essa jovem já sofreu modificações, como todos, a última
ocorreu em 2011 através da Lei 12.010, intitulada Nova Lei de Adoção que nada
mais foi que alterações no ECA.
2015 tem sido um ano nebuloso, não sei se por influência
astral, confluência de planetas ou por outra razão cabalística.
Em 2015 vimos a Câmara de Deputados lotar em plena
madrugada e aprovar matérias, ou seja, algo de outro planeta: parlamentares
trabalhando, de madrugada e aprovando projetos! Fatos que nossa vã filosofia
não alcançam... mas, voltemos ao foco.
No meio de todas essas confluências paira o
Estatuto da Família, projeto de lei 6583/2013 de autoria do Deputado Federal
por Pernambuco Anderson Ferreira, renascido das cinzas qual Hellraiser pela mão do presidente da Câmara
Federal, Deputado pelo estado do Rio de Janeiro, Eduardo Cunha.
Esse PL, conforme já cantado e
decantado em verso, prosa e cordel, busca reduzir o conceito de família ao
núcleo homem, mulher e descendentes, execrando as demais configurações
familiares.
O Estatuto tem 16 artigos, sendo 15 inócuos e um baseado
no preconceito e na discriminação, tendo como único caminho seu arquivamento de
forma definitiva eis que eivado de inconstitucionalidade. Ou seja, simples de
ser derrubado... mas, cuidado, nossos parlamentares estão em surto de
proatividade! Trabalham de manhã, de tarde, de noite e podem aprovar essa
excrescência enquanto os cidadãos de bem dormem o sono dos justos. E, ainda
pior, podem fazer renascer do inferno outros projetos de lei tão nefastos
quanto, como por exemplo, o PL 4508/2008 de autoria do Deputado Federal por
Alagoas, Olavo Calheiros, que tem como parte da justificação:
A adoção por casais
homossexuais pode expor a criança a sérios constrangimentos. Uma criança, cujos
pais adotivos mantenham um relacionamento homoafetivo, terá grandes
dificuldades em explicar aos seus amigos e colegas de escola, por exemplo,
porque tem dois pais, sem nenhuma mãe, ou duas mães, sem nenhum pai.
A justificação preconceituosa e por óbvio não se fez sob
a ótica da criança e do adolescente alijado da convivência familiar, não olhou
com os olhos de quem se encontra acolhido em uma instituição, sem afeto, sem
amor, sem família. É preciso parar de olhar nossas crianças como seres
invisíveis, como coisas estocadas em um depósito e dar-lhes a necessária
visibilidade. Essas crianças precisam de família e famílias têm diversas
composições. O STF
já equacionou essa dúvida, as famílias homoafetivas existem e têm a proteção do
Estado na forma do julgamento da ADPF nº 132-RJ. O Supremo, também, já definiu
a questão com relação à adoção homoafetiva, conforme decisão recente de lavra
da Ministra Carmem Lúcia no julgamento do RE 846.102.
O que precisamos é que o legislativo pare de propor leis
que contrariam a Constituição Federal, pois, projetos de lei como os acima
citados ferem mortalmente vários artigos de nossa carta magna.
O judiciário, sempre, tem caminhado a favor da
interpretação das leis de conformidade com sua amplitude social, mas não
podemos apenas colocar todas as nossas fichas no judiciário, pois, amanhã, na
calada da noite, em um surto psicótico de workaholicismo da madrugada, as leis
retrógradas e preconceituosas podem ser aprovadas e aí...aí será tarde porque
Inês já estará morta.
Parando um pouco de falar dos Cunhas da vida, vamos
tratar de mais um motivo para não comemorar os 25 anos do ECA: O Cadastro
Nacional de Adoção.
O cadastro, previsto no artigo 50 do ECA, sofreu uma
pseudo modernização em 2015, pois, de fato, suas inovações foram absolutamente
negativas.
O CNA é uma ferramenta de enorme
importância para a consecução e garantia de direitos de crianças e adolescentes
disponíveis para adoção, notadamente para propiciar o direito à convivência
familiar e comunitária.
O “antigo CNA” – apenas para
pontuar a diferença - mesmo apresentando problemas, vem colaborando para
integrar razoavelmente as varas da infância e juventude do país quebrando fronteiras
regionais e permitindo que se possa localizar em todo o território nacional
habilitados para crianças e adolescentes de todos os rincões do país.
O “Novo CNA”, contudo, vem
causando uma série de novos problemas, sem, todavia, resolver aqueles já detectados
pela ferramenta anterior.
Dentre os aspectos negativos
do “novo CNA”, elencamos:
·
Inexistência de inserção dos
habilitados pelo CPF: antes existente no “antigo CNA”, é profundamente
prejudicial a sua retirada, um verdadeiro retrocesso, contrários às tendências
atuais, já que é a referência básica para “login” nas principais bases de dados
utilizadas em nosso país, notadamente Receita, Justiça Federal, dentre outros.
De suma importância a volta da sua utilização como dado básico para localização
dos habilitados no sistema do CNA;
·
Falta de inserção dos
habilitados estrangeiros no CNA
aos quais possam ser vinculadas crianças disponibilizadas para adoção
internacional: as principais consequências para esta falta de vinculação dos
habilitados internacionais na base de dados são as seguintes:
- Crianças vinculadas a
habilitados estrangeiros, com processos já autorizados pelas respectivas CEJAIs
– por não haver vinculação dada à inexistência de estrangeiros no CNA –
aparecem como ainda liberadas para adoção e, ainda pior, aparecem
sucessivamente vinculadas a habilitados nacionais com aquele perfil criando
milhares de alertas falsos;
- Grupos de irmãos não
são considerados como um todo, ou seja, no caso de um grupo de 6 irmãos com
idades de 4 a 12 anos, as crianças foram vinculadas pelo novo CNA a habilitados
sendo que a criança de 4 anos – individualmente – teve mais de 1.500
pretendentes. Como expressamente determina o Estatuto da Criança e do
Adolescentes, irmãos devem ser adotados juntos, permitindo-se a divisão apenas
e tão somente quando inviável ou prejudicial sua colocação conjunta. Sem prever
o sistema esta obrigatoriedade, haverá falsos alertas para membros de grupos
indivisos de irmãos. Tal falha gera inclusive enormes problemas de ordem legal,
pois, para que seja possível a elaboração de relatórios para apreciação das
CEJAIs é necessário comprovar que não existem habilitados nacionais para o
perfil em adoção nacional;
·
Os habilitados estão
vinculados no sistema pelos números dos processos, assim como as crianças, gerando
uma burocratização desnecessária e até então inexistente de todo o
relacionamento, não mais permitindo o contato dantes feito por email pela vara
que faria a vinculação. Pelo novo CNA a vara que tem o habilitado tem que ligar
para a vara que tem a criança e contatar através do número do processo gerando
um retrabalho e burocratização desnecessários e prejudiciais à agilidade
necessária aos assuntos afetos à infância e juventude. Permitir que esta nova
sistemática seja mantida aumentará desnecessariamente o trabalho das varas, já
estão assoberbadas de trabalho, tendo de realocar profissional para a tarefa de
ligar para comarcas nos locais mais longínquos do pais, aumentando
desnecessariamente os gastos do judiciário que sequer tem orçamento para
contratar equipes técnicas;
·
Supressão do campo anotações:
este campo era espaço precioso que permitia aos juízes de todo o território
nacional conhecerem os habilitados que em tese seriam compatíveis com suas
crianças. No novo CNA os Juízos não têm mais como terem conhecimento de quantas
anotações constam para aquele respectivo habilitado. Recusas reiteradas de
vinculações a criança no seu perfil, ou os motivos pelos quais não se pôde dar
prosseguimento a vinculações feitas, dados utilíssimos para um melhor
cruzamento de dados, não mais existe para orientar o usuário do CNA. Ou seja,
retira a garantia de uma colocação mais segura para a criança ou adolescente;
·
Facilmente realizada pelo
antigo CNA, tornada agora impossível de ser realizada pelo novo CNA, não mais
se pode fazer busca de famílias para crianças, permitindo o sistema hoje apenas
a busca de filhos para habilitados, violando de morte a principiologia contida
no ECA;
·
Manteve-se a falta de
transparência que impedia e ainda impede que habilitados e sociedade civil
tenha acesso a dados básicos contidos no CNA. Hoje, assim como já era antes, os
habilitados não conseguem sequer ter a garantia de que estão efetivamente
incluídos no sistema após o trânsito em julgado de suas sentenças de
habilitação. Todas as sugestões de transparência do CNA foram desconsideradas
na construção do novo;
·
O novo CNA envie diariamente indicações
equivocadas e falsas, pelas razões acima apontadas, inviabilizando verificações
diárias pela equipe técnica responsável, sabidamente em número suficiente, em
desacordo com as determinações contidas no Provimento 36 do CNJ;
·
O novo CNA não informa o nome,
telefones e emails dos habilitados, dificultando incompreensível e
desnecessariamente, o trabalho das equipes interprofissionais. Todas as vezes
que o sistema informa que há um pretendente para uma criança/adolescente, o
técnico não tem mais como contatá-lo imediatamente, pois não dispõem dos seus
dados telefônicos. Esse campo agilizava esse primeiro contato. Importante se
ressaltar ainda que as equipes interprofissionais normalmente não trabalham com
processos, que permanecem nos cartórios para as devidas movimentações, o que
dificultará imensamente o trabalho das equipes das comarcas dos habilitados
apontados pelo sistema.
·
O novo CNA não está, como
manda o ECA, priorizando na listagem gerada os habilitados mais próximos da
comarca da criança cadastrada, desconsiderando os Estados e regiões na sua
elaboração.
·
Inexiste no novo CNA campo
específico para ser anexado o relatório da criança, dificultando a aferição da
compatibilidade do perfil dos habilitados listados pelo sistema com o da
criança, aumentando os riscos de aproximações frustradas e devoluções.
·
O novo CNA não permite
constar do cadastro dos habilitados a opção por adoção de mais de uma criança,
salvo se forem irmãos. Ou constam como habilitados para grupos de irmãos ou
para apenas uma criança, o que sabidamente não corresponde às habilitações hoje
existentes. Há inúmeros habilitados que pretendem adotar duas ou três crianças,
não necessariamente no mesmo momento, que não poderão permanecer no CNA para
outras futuras adoções após a primeira.
· O novo CNA é pródigo em promover indicações
diárias, todavia estas são em sua maioria falsas vinculações, pois desconsidera
os dados acima indicados, gerando falsos alertas que as equipes técnicas, de
regra em número suficiente, não serão capazes de verificar cuidadosamente, como
é necessário.
Catástrofe geral nesse aniversário. Não!
Tem mais. No Brasil estamos institucionalizando a cultura da “devolução”.
Adotei, não gostei, adolesceu, devolvi e ponto.
Uma criança depois de passar 5 anos como
filha foi devolvida à entidade de acolhimento onde foi buscada por essa “mãe”.
Esse não é o primeiro caso e nem será o último. É preciso que os estudos
técnicos para a habilitação sejam mais efetivos e consistentes. Para isso o
Provimento 36 tem que ser cumprido. Equipes técnicas devem ser imediatamente
contratadas pelos Tribunais de Justiça dos estados, pois, não se pode reputar
como falha a habilitação de uma pessoa incapaz de exercer a parentalidade
responsável dado o assoberbamento de trabalho de psicólogos e assistentes
sociais.
Não se trata de isentar a responsabilidade
da equipe interprofissional, mas de colocar o devido peso na atuação dessa equipe:
imenso! Peso pelo futuro, peso pela perda do futuro. Não é uma área fácil ou
agradável, pois se lida com toda uma gama de mazelas humanas que vão do
abandono, à drogadição, ao abuso sexual, à negligência, ao descaso, ao desamor,
dentre outras questões.
Adoção não é experimentação, adoção é parentar: maternar,
paternar, filiar – PARA SEMPRE. Alguns adotantes estão desconsiderando suas
responsabilidades que não se cingem apenas a uma indenização de 100 mil reais,
pois a perda de uma oportunidade de se constituir em filha não vale apenas 100
mil, ou 1 milhão, não tem valor e sequer parâmetros de mensuração.
A garota, hoje adolescente, que foi devolvida ao “abrigo”
perdeu a chance de ser filha de uma família que a acolhesse, que entendesse as
variações decorrentes da idade. Essa família poderia ser hetero, homo,
monoparental, o importante é que fosse realmente uma família. Pobre dela,
lamentavelmente sua “quase mãe” foi sua algoz e furtou-lhe a possibilidade de
ser filha.
Então... o ECA fez 25 anos sendo, ainda, um desconhecido
da grande maioria dos estudantes de direito, sendo tratado como uma lei menor,
para uma justiça menor, para um cuidado menor mesmo tendo com sujeito de
direito aquele único que goza de prioridade absoluta.
De menor em menor as lacunas continuam e a criança, filha
bastarda da pátria educadora, continua esquecida – propositalmente – pelo Estado:
pai ingrato.
E para não morrer de tristeza...
Esses homens vão ter que entender
Que isto aqui é o nosso Brasil
Nosso chão, nossa vida, nossa pátria mãe gentil
Isso um dia vai ter que mudar
A justiça vai ter que acordar
E a igualdade um dia vai raiar
E que assim seja!
Silvana do Monte Moreira