terça-feira, 14 de julho de 2015

25 anos do ECA: Críticas a uma lei não cumprida.



Ontem, 13 de julho, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 completou 25 anos. Ainda é jovem, por óbvio, mas não é mais uma menina.
Essa jovem já sofreu modificações, como todos, a última ocorreu em 2011 através da Lei 12.010, intitulada Nova Lei de Adoção que nada mais foi que alterações no ECA.
2015 tem sido um ano nebuloso, não sei se por influência astral, confluência de planetas ou por outra razão cabalística.
Em 2015 vimos a Câmara de Deputados lotar em plena madrugada e aprovar matérias, ou seja, algo de outro planeta: parlamentares trabalhando, de madrugada e aprovando projetos! Fatos que nossa vã filosofia não alcançam... mas, voltemos ao foco.

No meio de todas essas confluências paira o Estatuto da Família, projeto de lei 6583/2013 de autoria do Deputado Federal por Pernambuco Anderson Ferreira, renascido das cinzas qual Hellraiser pela mão do presidente da Câmara Federal, Deputado pelo estado do Rio de Janeiro, Eduardo Cunha.

Esse PL, conforme já cantado e decantado em verso, prosa e cordel, busca reduzir o conceito de família ao núcleo homem, mulher e descendentes, execrando as demais configurações familiares.

O Estatuto tem 16 artigos, sendo 15 inócuos e um baseado no preconceito e na discriminação, tendo como único caminho seu arquivamento de forma definitiva eis que eivado de inconstitucionalidade. Ou seja, simples de ser derrubado... mas, cuidado, nossos parlamentares estão em surto de proatividade! Trabalham de manhã, de tarde, de noite e podem aprovar essa excrescência enquanto os cidadãos de bem dormem o sono dos justos. E, ainda pior, podem fazer renascer do inferno outros projetos de lei tão nefastos quanto, como por exemplo, o PL 4508/2008 de autoria do Deputado Federal por Alagoas, Olavo Calheiros, que tem como parte da justificação:
A adoção por casais homossexuais pode expor a criança a sérios constrangimentos. Uma criança, cujos pais adotivos mantenham um relacionamento homoafetivo, terá grandes dificuldades em explicar aos seus amigos e colegas de escola, por exemplo, porque tem dois pais, sem nenhuma mãe, ou duas mães, sem nenhum pai.

A justificação preconceituosa e por óbvio não se fez sob a ótica da criança e do adolescente alijado da convivência familiar, não olhou com os olhos de quem se encontra acolhido em uma instituição, sem afeto, sem amor, sem família. É preciso parar de olhar nossas crianças como seres invisíveis, como coisas estocadas em um depósito e dar-lhes a necessária visibilidade. Essas crianças precisam de família e famílias têm diversas composições. O STF[1] já equacionou essa dúvida, as famílias homoafetivas existem e têm a proteção do Estado na forma do julgamento da ADPF nº 132-RJ. O Supremo, também, já definiu a questão com relação à adoção homoafetiva, conforme decisão recente de lavra da Ministra Carmem Lúcia no julgamento do RE 846.102[2].
O que precisamos é que o legislativo pare de propor leis que contrariam a Constituição Federal, pois, projetos de lei como os acima citados ferem mortalmente vários artigos de nossa carta magna.
O judiciário, sempre, tem caminhado a favor da interpretação das leis de conformidade com sua amplitude social, mas não podemos apenas colocar todas as nossas fichas no judiciário, pois, amanhã, na calada da noite, em um surto psicótico de workaholicismo da madrugada, as leis retrógradas e preconceituosas podem ser aprovadas e aí...aí será tarde porque Inês já estará morta.
Parando um pouco de falar dos Cunhas da vida, vamos tratar de mais um motivo para não comemorar os 25 anos do ECA: O Cadastro Nacional de Adoção.
O cadastro, previsto no artigo 50 do ECA, sofreu uma pseudo modernização em 2015, pois, de fato, suas inovações foram absolutamente negativas.
O CNA é uma ferramenta de enorme importância para a consecução e garantia de direitos de crianças e adolescentes disponíveis para adoção, notadamente para propiciar o direito à convivência familiar e comunitária.
O “antigo CNA” – apenas para pontuar a diferença - mesmo apresentando problemas, vem colaborando para integrar razoavelmente as varas da infância e juventude do país quebrando fronteiras regionais e permitindo que se possa localizar em todo o território nacional habilitados para crianças e adolescentes de todos os rincões do país.
O “Novo CNA”, contudo, vem causando uma série de novos problemas, sem, todavia, resolver aqueles já detectados pela ferramenta anterior.
Dentre os aspectos negativos do “novo CNA”, elencamos:
·     Inexistência de inserção dos habilitados pelo CPF: antes existente no “antigo CNA”, é profundamente prejudicial a sua retirada, um verdadeiro retrocesso, contrários às tendências atuais, já que é a referência básica para “login” nas principais bases de dados utilizadas em nosso país, notadamente Receita, Justiça Federal, dentre outros. De suma importância a volta da sua utilização como dado básico para localização dos habilitados no sistema do CNA;
·     Falta de inserção dos habilitados estrangeiros no CNA[3] aos quais possam ser vinculadas crianças disponibilizadas para adoção internacional: as principais consequências para esta falta de vinculação dos habilitados internacionais na base de dados são as seguintes:
- Crianças vinculadas a habilitados estrangeiros, com processos já autorizados pelas respectivas CEJAIs – por não haver vinculação dada à inexistência de estrangeiros no CNA – aparecem como ainda liberadas para adoção e, ainda pior, aparecem sucessivamente vinculadas a habilitados nacionais com aquele perfil criando milhares de alertas falsos;
- Grupos de irmãos não são considerados como um todo, ou seja, no caso de um grupo de 6 irmãos com idades de 4 a 12 anos, as crianças foram vinculadas pelo novo CNA a habilitados sendo que a criança de 4 anos – individualmente – teve mais de 1.500 pretendentes. Como expressamente determina o Estatuto da Criança e do Adolescentes, irmãos devem ser adotados juntos, permitindo-se a divisão apenas e tão somente quando inviável ou prejudicial sua colocação conjunta. Sem prever o sistema esta obrigatoriedade, haverá falsos alertas para membros de grupos indivisos de irmãos. Tal falha gera inclusive enormes problemas de ordem legal, pois, para que seja possível a elaboração de relatórios para apreciação das CEJAIs é necessário comprovar que não existem habilitados nacionais para o perfil em adoção nacional;
·     Os habilitados estão vinculados no sistema pelos números dos processos, assim como as crianças, gerando uma burocratização desnecessária e até então inexistente de todo o relacionamento, não mais permitindo o contato dantes feito por email pela vara que faria a vinculação. Pelo novo CNA a vara que tem o habilitado tem que ligar para a vara que tem a criança e contatar através do número do processo gerando um retrabalho e burocratização desnecessários e prejudiciais à agilidade necessária aos assuntos afetos à infância e juventude. Permitir que esta nova sistemática seja mantida aumentará desnecessariamente o trabalho das varas, já estão assoberbadas de trabalho, tendo de realocar profissional para a tarefa de ligar para comarcas nos locais mais longínquos do pais, aumentando desnecessariamente os gastos do judiciário que sequer tem orçamento para contratar equipes técnicas;
·     Supressão do campo anotações: este campo era espaço precioso que permitia aos juízes de todo o território nacional conhecerem os habilitados que em tese seriam compatíveis com suas crianças. No novo CNA os Juízos não têm mais como terem conhecimento de quantas anotações constam para aquele respectivo habilitado. Recusas reiteradas de vinculações a criança no seu perfil, ou os motivos pelos quais não se pôde dar prosseguimento a vinculações feitas, dados utilíssimos para um melhor cruzamento de dados, não mais existe para orientar o usuário do CNA. Ou seja, retira a garantia de uma colocação mais segura para a criança ou adolescente;
·     Facilmente realizada pelo antigo CNA, tornada agora impossível de ser realizada pelo novo CNA, não mais se pode fazer busca de famílias para crianças, permitindo o sistema hoje apenas a busca de filhos para habilitados, violando de morte a principiologia contida no ECA;
·     Manteve-se a falta de transparência que impedia e ainda impede que habilitados e sociedade civil tenha acesso a dados básicos contidos no CNA. Hoje, assim como já era antes, os habilitados não conseguem sequer ter a garantia de que estão efetivamente incluídos no sistema após o trânsito em julgado de suas sentenças de habilitação. Todas as sugestões de transparência do CNA foram desconsideradas na construção do novo;
·     O novo CNA envie diariamente indicações equivocadas e falsas, pelas razões acima apontadas, inviabilizando verificações diárias pela equipe técnica responsável, sabidamente em número suficiente, em desacordo com as determinações contidas no Provimento 36 do CNJ[4];
·     O novo CNA não informa o nome, telefones e emails dos habilitados, dificultando incompreensível e desnecessariamente, o trabalho das equipes interprofissionais. Todas as vezes que o sistema informa que há um pretendente para uma criança/adolescente, o técnico não tem mais como contatá-lo imediatamente, pois não dispõem dos seus dados telefônicos. Esse campo agilizava esse primeiro contato. Importante se ressaltar ainda que as equipes interprofissionais normalmente não trabalham com processos, que permanecem nos cartórios para as devidas movimentações, o que dificultará imensamente o trabalho das equipes das comarcas dos habilitados apontados pelo sistema.
·     O novo CNA não está, como manda o ECA, priorizando na listagem gerada os habilitados mais próximos da comarca da criança cadastrada, desconsiderando os Estados e regiões na sua elaboração.
·     Inexiste no novo CNA campo específico para ser anexado o relatório da criança, dificultando a aferição da compatibilidade do perfil dos habilitados listados pelo sistema com o da criança, aumentando os riscos de aproximações frustradas e devoluções.
·     O novo CNA não permite constar do cadastro dos habilitados a opção por adoção de mais de uma criança, salvo se forem irmãos. Ou constam como habilitados para grupos de irmãos ou para apenas uma criança, o que sabidamente não corresponde às habilitações hoje existentes. Há inúmeros habilitados que pretendem adotar duas ou três crianças, não necessariamente no mesmo momento, que não poderão permanecer no CNA para outras futuras adoções após a primeira.
·     O novo CNA é pródigo em promover indicações diárias, todavia estas são em sua maioria falsas vinculações, pois desconsidera os dados acima indicados, gerando falsos alertas que as equipes técnicas, de regra em número suficiente, não serão capazes de verificar cuidadosamente, como é necessário.
Catástrofe geral nesse aniversário. Não! Tem mais. No Brasil estamos institucionalizando a cultura da “devolução”. Adotei, não gostei, adolesceu, devolvi e ponto.
Uma criança depois de passar 5 anos como filha foi devolvida à entidade de acolhimento onde foi buscada por essa “mãe”[5]. Esse não é o primeiro caso e nem será o último. É preciso que os estudos técnicos para a habilitação sejam mais efetivos e consistentes. Para isso o Provimento 36 tem que ser cumprido. Equipes técnicas devem ser imediatamente contratadas pelos Tribunais de Justiça dos estados, pois, não se pode reputar como falha a habilitação de uma pessoa incapaz de exercer a parentalidade responsável dado o assoberbamento de trabalho de psicólogos e assistentes sociais.
Não se trata de isentar a responsabilidade da equipe interprofissional, mas de colocar o devido peso na atuação dessa equipe: imenso! Peso pelo futuro, peso pela perda do futuro. Não é uma área fácil ou agradável, pois se lida com toda uma gama de mazelas humanas que vão do abandono, à drogadição, ao abuso sexual, à negligência, ao descaso, ao desamor, dentre outras questões.
Adoção não é experimentação, adoção é parentar: maternar, paternar, filiar – PARA SEMPRE. Alguns adotantes estão desconsiderando suas responsabilidades que não se cingem apenas a uma indenização de 100 mil reais, pois a perda de uma oportunidade de se constituir em filha não vale apenas 100 mil, ou 1 milhão, não tem valor e sequer parâmetros de mensuração.
A garota, hoje adolescente, que foi devolvida ao “abrigo” perdeu a chance de ser filha de uma família que a acolhesse, que entendesse as variações decorrentes da idade. Essa família poderia ser hetero, homo, monoparental, o importante é que fosse realmente uma família. Pobre dela, lamentavelmente sua “quase mãe” foi sua algoz e furtou-lhe a possibilidade de ser filha.
Então... o ECA fez 25 anos sendo, ainda, um desconhecido da grande maioria dos estudantes de direito, sendo tratado como uma lei menor, para uma justiça menor, para um cuidado menor mesmo tendo com sujeito de direito aquele único que goza de prioridade absoluta.
De menor em menor as lacunas continuam e a criança, filha bastarda da pátria educadora, continua esquecida – propositalmente – pelo Estado: pai ingrato.
E para não morrer de tristeza...
Esses homens vão ter que entender
Que isto aqui é o nosso Brasil
Nosso chão, nossa vida, nossa pátria mãe gentil
Isso um dia vai ter que mudar
A justiça vai ter que acordar
E a igualdade um dia vai raiar[6]
E que assim seja!
Silvana do Monte Moreira


[2] http://s.conjur.com.br/dl/stf-reconhece-adocao-restricao-idade.pdf
[3] Foi anunciado pela mídia que já existem 16 casais estrangeiros inseridos no CNA.
[4] http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/4/art20140430-10.pdf
[5] http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/07/tj-manda-mae-adotiva-pagar-r-100-mil-menina-devolvida-abrigo-no-df.html

[6] Nossa Pátria Mãe Gentil, Beth Carvalho


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