domingo, 6 de agosto de 2017

Não pode abortar? Há alternativas para a defesa da vida, com dignidade para a mulher (Reprodução)

04/08/2017

Nos textos anteriores da série Análise da ADPF 442 (leia), o Justiça & Direito procurou enfrentar os argumentos morais e jurídicos das autoras da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que busca descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação no Supremo Tribunal Federal (STF). No curso dos seis textos, também foram analisados dados que contestam a narrativa de que legalizar o aborto é a estratégia mais acertada para proteger a vida das mulheres. Agora, o Justiça & Direito deixa de reagir aos argumentos da ação para mostrar alternativas em matéria de políticas públicas que buscam atender mulheres em situação de gravidez de crise, bem como os seres humanos não nascidos e crianças já nascidas.

Existem muitas iniciativas, no Brasil e no mundo, de programas de acolhimento e acompanhamento de mulheres grávidas em situações dramáticas. Vários são de grupos religiosos, mas há também programas de caráter não confessional e políticas públicas estatais. A atenção à mulher e a valorização da vida desde a concepção não é um assunto necessariamente religioso. Todos esses programas oferecem atendimento médico, psicológico e educação sexual e muitos deles também apoiam financeiramente mulheres pobres, custeando a gravidez e operando para recolocá-las, ou seus parceiros, no mercado de trabalho. Trata-se de assistencialismo onde este é necessário, mas também de criação de autonomia para as mulheres.

Saúde integral 

Mercedes Figueroa, pós-graduada em Educação Integral da Sexualidade, é vice-presidente da Associação Filhos da Luz, que acolhe mulheres em situação de gravidez de crise. São as gestações indesejadas, inesperadas ou até mesmo planejadas, mas que acabaram sendo problemáticas. “Nosso trabalho tenta encontrar a raiz do problema oferecendo atendimento personalizado no marco da saúde integral, para evitar que se repita uma situação semelhante no futuro. As gestantes são encaminhadas para aproveitar os benefícios do sistema público, mas, para poder atender a alta demanda, começamos a fazer parcerias com instituições privadas”, explica.

Mercedes destaca que ações como essas já existem há bastante tempo nos Estados Unidos. Não por acaso. A legislação sobre o aborto começou a ser flexibilizada no estado americano do Colorado em 1967, com base em um modelo de Código Penal elaborado por um grupo de juristas uma década antes. A reação dos grupos pró-vida começou tímida ainda nos anos 1960, mas catalisou-se depois de 1973, quando, no julgamento de Roe. vs. Wade, a Suprema Corte americana liberou o aborto. As duas maiores organizações que apoiam os chamados centros de gravidez no país, a Heartbeat International e a CareNet, surgiram, respectivamente em 1971 e 1973.

De acordo com o último relatório de impacto da CareNet, divulgado em 2015, cerca de 8 em cada 10 mulheres que estão pensando em abortar e procuram um dos mais de 1100 centros da rede desistem do procedimento. Só em 2015, foram 73 mil vidas salvas pela desistência de abortos. A rede oferece acompanhamento de saúde durante a gravidez, educação e capacitação para os pais das crianças, recursos para apoiar as mães e as famílias e o encaminhamento posterior para outros tipos de serviços sociais. A CareNet define sua atuação não só como pró-vida, mas como pró-vida abundante, o que pode ser resumido nas palavras de Roland Warren, CEO da organização:
“Não é só salvar um bebê. É criar uma criança”. 
Há muitos outros programas que podem servir de inspiração para o Brasil. “Na Argentina conheci o Portal de BelémAMBOMerced VidaHaciendo Camino. Na Itália, o Segretariato Sociale per la Vita ONLUS. Os Centros de atendimento às mulheres gestantes na América central e do Sul: Aprovi na Guatemala, Fundação Mami na Colômbia, Instituto Feminino de Saúde Integral na Costa Rica, Fundação por uma Vida na Bolívia. Isso só para nomear alguns. São muitos, muitos mesmo”, destaca Mercedes. Há três coisas em comum ao modelo de todos esses projetos, na visão da vice-presidente:
  1. O objetivo dos programas é a proteção das mulheres; 
  2. As ações visam às mulheres durante a gravidez, e antes depois dela;
  3. Os programas tentam encontrar a raiz do problema da gravidez de crise, tentando evitar situações semelhantes no futuro.
“Nem todas as mulheres [que atendemos] estão solteiras.  Às vezes o casamento está muito ruim, é preciso equilibrar a vida que não está feliz. Não só por estar pobre a mulher está em uma gravidez em crise. Muitas vezes, é solidão mesmo, abandono. E também não são apenas mulheres adolescentes”, diz a vice-presidente da Associação Filhos da Luz.

Mercedes também ressalta uma realidade triste por trás dos casos de mulheres que, mesmo com apoio, insistiram em abortar: “A mulher que tem orientação, apoio e informação e mesmo assim quer abortar em geral tem um parceiro, um pai ou um chefe pressionando fortemente pelo aborto”, diz. “Falam que o aborto é uma questão de liberdade, mas escuto de todas as mulheres que abortam que era a única opção que tinham. Se era a única opção, que liberdade é esta?”, questiona.

Adoção


Abandonar um filho é crime, mas sua entrega legal é um direito da mulher. Todos os profissionais e especialistas que trabalham com o acolhimento de mulheres reconhecem que, apesar de o número ser pequeno, existem aquelas que, mesmo depois do nascimento da criança, desejam entregá-la para a adoção. Garantir um bom funcionamento da rede de adoção de crianças é uma parte importante de uma política integral de valorização da vida.

Sara Vargas, presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD), destaca os principais desafios da adoção no Brasil: a conscientização sobre a entrega legal de crianças e a sintonia da rede de proteção à infância, que envolve desde as Varas de Infância, passando pelo Ministério Público e a Defensoria Pública, pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Conselhos Tutelares, até os grupos de apoio da sociedade civil. “Nos lugares onde as redes trabalham em sintonia, com um bom acompanhamento pré e pós-adoção, o índice de devolução [de crianças adotadas] é praticamente nulo”, diz Sara.

“Nós até iniciamos uma política de conscientização sobre a entrega legal das crianças. Ainda há uma marginalização muito grande das mulheres que desejam entregar, elas imaginam que entregar legalmente o filho seja um crime”, diz Sara. “E as mulheres são desencorajadas a entregar, muitas vezes pelos próprios profissionais de saúde. As gestantes que, no momento de desespero, procuram ajuda, se elas forem acolhidas, elas podem até resolver ficar com os filhos. Mas, de forma geral, ainda faltam informações e profissionais qualificados para lidar com isso”, afirma.

Segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 40.500 pretendentes e 7.801 crianças cadastradas. Para a presidente da ANGAAD, isso se deve ao fato de a maior parte das crianças e adolescentes disponíveis para a adoção ter mais de sete anos, irmãos, ou algum problema de saúde, enquanto os pretendentes desejam filhos menores, saudáveis e sem irmãos.

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Sara destaca que é preciso fugir dos extremos: não se pode querer tirar a criança da família e entregar para adoção só porque os familiares são pobres, nem insistir demais que ela fique com a família biológica. “Pela normativa internacional, a criança é prioridade absoluta. Caso não haja possibilidade de a família biológica dar um ambiente seguro para a criança, é preciso pensar na criança em primeiro lugar e encaminhar para a adoção. Não dá para esperar a criança completar 10 anos para mandar definitivamente um abrigo. Fica nesse vai e volta e a criança vai acumulando traumas”, avalia Sara.

Congresso Nacional 


Colaborar com o Congresso Nacional para a elaboração de políticas públicas que reconheçam o drama das mulheres grávidas, muitas vezes pobres, abandonadas pelos parceiros e sem o apoio da família, é uma velha ocupação de Cláudio Fonteles, que foi procurador-geral da República (PGR) entre 2003 e 2005. Fonteles notabilizou-se pela atuação na ADI 3.510, que questionava as pesquisas de células tronco que destruíssem os embriões congelados. A defesa da vida desde a concepção nunca impediu Fonteles de lutar pela vida das mulheres.

“O Estado fez a Lei Maria da Penha, que é maravilhosa. É perfeito defender a mulher e impor restrições aos homens. Nesse marco legal, o Estado acolhe a mulher e as filhas e provê uma visão multidisciplinar em torno dessa mulher para ela se desenvolver e ganhar autonomia”, explica Fonteles. “Por que o Estado não dá o passo seguinte e acolhe a mulher abandonada? Precisamos de uma ‘Lei Maria do Abandono’. É possível criar Unidades de Acolhida da Mulher. Ali, se as mulheres são pobres, vão ter estudo, alguma tentativa de profissão. Podemos fazer parcerias entre União, estados e municípios. É preciso constituir uma rede protetiva da mulher e do feto em gestação”, opina o ex-PGR.

Fonteles destaca também o Projeto de Lei (PL) 478/2007, o chamado Estatuto do Nascituro, que está em tramitação no Congresso Nacional. O projeto é uma reação à decisão do STF na ADI 3.510, em 2005, que ensaiou relativizar a proteção jurídica à vida dos seres humanos não nascidos. A atual versão do texto define nascituro como o ser humano concebido, mas ainda não nascido e prevê que “desde a concepção são reconhecidos todos os direitos do nascituro, em especial o direito à vida, à saúde, ao desenvolvimento e à integridade física e os demais direitos da personalidade”.

O texto propõe que é “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, ao desenvolvimento, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à família, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Nessa linha, o projeto cria a obrigação para o Estado de arcar com os custos para cuidar da vida, da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança, até que o pai estuprador seja responsabilizado pelo pagamento da pensão ou a criança seja adotada, se for a vontade da mãe.

“Tudo isso se insere em uma proposta de visão de condução do Estado. Estamos diante de um estado humanista ou funcionalista? Num Estado funcionalista, a pessoa humana vale pela relação de custo-benefício. Na filosofia funcionalista, no mundo tecnocrata, não há espaço para a consideração da integralidade da pessoa humana”, diz Fonteles. “Já defesa da vida se insere em uma tradição humanista. Você vê a pessoa humana na sua integralidade. Daí se parte para uma forte visão de solidariedade humana”, afirma.

Dificuldades


O Estatuto do Nascituro tramita no Congresso já há 10 anos. Apesar de o Brasil ter derrubado os índices de mortalidade materna nas últimas décadas, a saúde pública ainda patina e poucas iniciativas têm enfrentado o drama das gravidezes indesejadas, da falta de planejamento familiar e educação sexual e da crise de valores que assola a juventude. Isso abre o flanco, na inflamação do debate público, para que a retórica pró-aborto possa acusar aqueles que defendem a vida desde a concepção de só defenderem essa vida, e não a das mulheres ou a das crianças já nascidas.

Este texto da série Análise da ADPF 442 buscou mostrar que isso não é verdade. Brasil afora, como Mercedes, há milhares de outros voluntários, em dezenas de pontos de apoio a mulheres em situação de gravidez de crises , funcionando sem financiamento do poder público, bancados apenas por doações e benfeitorias. “A problemática da gestante em crise é um assunto relativamente novo, no sentido de que existe desde sempre, mas nos últimos anos a sociedade está abrindo os olhos para identificá-lo”, diz Mercedes. “Existem projetos de lei, mas geralmente são abafados com a discussão de legalizar o aborto e com isso o problema é calado, mas não solucionado”, alerta.

A longa experiência do ex-PGR Cláudio Fonteles com o Congresso Nacional também lhe ensinou algumas coisas. “A Lei Maria da Penha surgiu a partir de uma vítima de uma agressão brutal e isso chocou a sociedade. Os políticos, motivados pelo estardalhaço, diante de fatos objetivamente postos, vão tentar providenciar uma solução para satisfazer a opinião pública”, diz.

“Esse fato do aborto não se vê. Não tem o choque midiático. O estardalhaço da mídia não trabalha com as questões de fundo, a mídia quer a análise superficial, que é o visual. É difícil tratar de matérias que não são perceptíveis a olho nu: por que o político não quer fazer saneamento básico? Porque está embaixo da terra e ninguém vê – a mentalidade funcionalista aparece outra vez. O Estado que não persegue valores está falido”, conclui.

Embora a eventual aprovação do Estatuto do Nascituro afaste o Estado da mentalidade funcionalista, isso não esgota as necessidades de políticas públicas para a mulher. De qualquer maneira, seria uma baliza importante para que essas políticas sejam pensadas a partir do marco da dignidade da vida em todos os seus estágios, sem que o fantasma da legalização do aborto paire sobre o Brasil.

Diálogo


Não só a convicção de que vida deve ser protegida desde a concepção motiva essa série de análises sobre a ADPF 442, mas também nossa crença no poder da razão e do diálogo. O filósofo Christopher Kaczor, que se posiciona a favor da proteção da vida desde a concepção, faz um agradecimento especial, no primeiro parágrafo de seu livro, ao também filósofo David Boonin, que defende a posição contrária: “David Boonin, autor de Uma Defesa do Aborto, merece especial reconhecimento e gratidão. David leu meu manuscrito inteiro duas vezes e, na segunda vez, me mandou 23 páginas, em espaçamento simples, de comentários, questões, objeções e desafios. Estou especialmente em débito para com ele por este trabalho”.

Original disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/justica/nao-pode-abortar-ha-alternativas-para-a-defesa-da-vida-com-dignidade-para-a-mulher-64ajtvfkhwbw5c5uz9n1ov2uh

Reproduzido por: Lucas H.

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