Por Matheus Pichonelli
26/10/2015
Conservadorismo
Destaque da Mostra SP, filme vencedor em Cannes investiga a construção das relações familiares para além de estatutos e definições
26/10/2015
Conservadorismo
Destaque da Mostra SP, filme vencedor em Cannes investiga a construção das relações familiares para além de estatutos e definições
Um dos destaques da 39.ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Dheepan – O Refúgio é o retrato que a bancada fundamentalista do Congresso não gosta de enxergar.
O filme de Jacques Audiard, vencedor da Palma de Ouro em Cannes deste ano, conta a história de três refugiados que fogem da guerra civil no Sri Lanka em direção à Europa. Em um momento em que as vítimas de conflitos se lançam ao mar para fugir do aniquilamento e se deparam com o paredão das nações europeias, Audiard se deteve em narrar não a travessia e seus riscos, mas o acolhimento da chegada.
Num corte seco, os três personagens – uma mulher, uma garota e um ex-combatente – chegam a salvos em Paris, mas descobrem, a duras penas, que a guerra está em toda parte: na memória, nas sequelas, na dificuldade em serem acolhidos, no empurrão em direção à informalidade, nas humilhações dos trabalhos servis, nos conflitos entre os novos vizinhos, etc.
Em um país como o Brasil, onde 60 mil pessoas morrem assassinadas num único ano, a disputa entre gangues rivais no conjunto habitacional onde os personagens buscam refúgio soaria como uma briga de crianças – como chega a definir o protagonista, Dheepan (Antonythasan Jesuthasan), sobrevivente de um massacre em seu país.
Mas é outro o debate que o filme promete despertar. Desde a chegada de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) ao comando da Câmara, deputados de sua turma se sentiram à vontade para tirar da cartola uma série de projetos limitadores de direitos aos grupos marginalizados da sociedade – dos adolescentes pobres às mulheres vítimas de agressão.
Entre tantos pontos, chama a atenção os debates sobre um tal Estatuto da Família, definida, segundo a bancada religiosa, como papai, mamãe e filhinhos. A proposta tem como objetivo dificultar, entre outros direitos, a adoção de crianças por casais gays.
“A família deve ser na versão natural (sic)”, justificou um deputado em reportagem recente do CQC. “Se você chegar agora em uma mangueira e lá você encontrar uma banana, você não acharia estranho porque não é natural?”, respondeu outro parlamentar, tão coerente em sua defesa da biologia quanto sua fé em mulheres nascidas da costelas de outros homens ou na concepção por obra de anjos anunciadores.
No filme de Audiard, a constituição de uma família é quase nada natural: ninguém daquela casa se conhecia até embarcar rumo à Europa. Para fugir da guerra, os personagens se reúnem às pressas e compram documentos pertencentes a uma família vitimada pelo conflito.
Fingem ser uma família para sobreviver e, apesar de não terem qualquer ligação sanguínea, passam a encarar, enquanto se descobrem, questões e responsabilidades típicas das relações entre pais e filhos.
Como quando a criança se tranca no quarto ao ser repreendida e blefa para obter a atenção da mãe postiça: “Eu te odeio”. Ou quando a jovem, desorientada diante do novo papel, entra em pânico por não saber como uma mãe deve agir – são os mesmos desesperos e os mesmos arranca-rabos dos pais de primeira viagem ao descobrir que nesta história ninguém nasce sabendo de nada.
Aos poucos, o desamparo de um mundo que os expulsa de um ponto de origem (a cidade-natal incendiada é, aqui, um ventre rompido antes da hora) é reorganizado a partir de uma convivência diária que requer cuidado e atenção. Essa relação tem uma matéria-prima: a empatia.
Os papeis de pais e mães, parece dizer o diretor, não são uma vocação natural nem estão disponível na natureza. São, em vez disso, uma construção diária. Não começam na concepção, mas quando uma criança, seja ela quem for, bate na porta dos adultos, sejam eles quem forem, para dizer que tem medo e precisa de companhia para encarar seus monstros imaginários.
Ou quando dividimos a mesma mesa. Ou quando perguntamos se a pessoa está bem agasalhada. Ou quando a responsabilidade da tarefa escolar passa a ser também a nossa.
É na capacidade de acolher e oferecer refúgio que nos descobrimos responsáveis por alguém. Trancar tantas possibilidades em um único estatuto é o contrassenso de uma vocação humana: a generosidade.
Original disponível em: http://www.cartacapital.com.br/cultura/parece-uma-familia-e-e-7245.html
O filme de Jacques Audiard, vencedor da Palma de Ouro em Cannes deste ano, conta a história de três refugiados que fogem da guerra civil no Sri Lanka em direção à Europa. Em um momento em que as vítimas de conflitos se lançam ao mar para fugir do aniquilamento e se deparam com o paredão das nações europeias, Audiard se deteve em narrar não a travessia e seus riscos, mas o acolhimento da chegada.
Num corte seco, os três personagens – uma mulher, uma garota e um ex-combatente – chegam a salvos em Paris, mas descobrem, a duras penas, que a guerra está em toda parte: na memória, nas sequelas, na dificuldade em serem acolhidos, no empurrão em direção à informalidade, nas humilhações dos trabalhos servis, nos conflitos entre os novos vizinhos, etc.
Em um país como o Brasil, onde 60 mil pessoas morrem assassinadas num único ano, a disputa entre gangues rivais no conjunto habitacional onde os personagens buscam refúgio soaria como uma briga de crianças – como chega a definir o protagonista, Dheepan (Antonythasan Jesuthasan), sobrevivente de um massacre em seu país.
Mas é outro o debate que o filme promete despertar. Desde a chegada de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) ao comando da Câmara, deputados de sua turma se sentiram à vontade para tirar da cartola uma série de projetos limitadores de direitos aos grupos marginalizados da sociedade – dos adolescentes pobres às mulheres vítimas de agressão.
Entre tantos pontos, chama a atenção os debates sobre um tal Estatuto da Família, definida, segundo a bancada religiosa, como papai, mamãe e filhinhos. A proposta tem como objetivo dificultar, entre outros direitos, a adoção de crianças por casais gays.
“A família deve ser na versão natural (sic)”, justificou um deputado em reportagem recente do CQC. “Se você chegar agora em uma mangueira e lá você encontrar uma banana, você não acharia estranho porque não é natural?”, respondeu outro parlamentar, tão coerente em sua defesa da biologia quanto sua fé em mulheres nascidas da costelas de outros homens ou na concepção por obra de anjos anunciadores.
No filme de Audiard, a constituição de uma família é quase nada natural: ninguém daquela casa se conhecia até embarcar rumo à Europa. Para fugir da guerra, os personagens se reúnem às pressas e compram documentos pertencentes a uma família vitimada pelo conflito.
Fingem ser uma família para sobreviver e, apesar de não terem qualquer ligação sanguínea, passam a encarar, enquanto se descobrem, questões e responsabilidades típicas das relações entre pais e filhos.
Como quando a criança se tranca no quarto ao ser repreendida e blefa para obter a atenção da mãe postiça: “Eu te odeio”. Ou quando a jovem, desorientada diante do novo papel, entra em pânico por não saber como uma mãe deve agir – são os mesmos desesperos e os mesmos arranca-rabos dos pais de primeira viagem ao descobrir que nesta história ninguém nasce sabendo de nada.
Aos poucos, o desamparo de um mundo que os expulsa de um ponto de origem (a cidade-natal incendiada é, aqui, um ventre rompido antes da hora) é reorganizado a partir de uma convivência diária que requer cuidado e atenção. Essa relação tem uma matéria-prima: a empatia.
Os papeis de pais e mães, parece dizer o diretor, não são uma vocação natural nem estão disponível na natureza. São, em vez disso, uma construção diária. Não começam na concepção, mas quando uma criança, seja ela quem for, bate na porta dos adultos, sejam eles quem forem, para dizer que tem medo e precisa de companhia para encarar seus monstros imaginários.
Ou quando dividimos a mesma mesa. Ou quando perguntamos se a pessoa está bem agasalhada. Ou quando a responsabilidade da tarefa escolar passa a ser também a nossa.
É na capacidade de acolher e oferecer refúgio que nos descobrimos responsáveis por alguém. Trancar tantas possibilidades em um único estatuto é o contrassenso de uma vocação humana: a generosidade.
Original disponível em: http://www.cartacapital.com.br/cultura/parece-uma-familia-e-e-7245.html
Reproduzido por: Lucas H.
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