segunda-feira, 29 de maio de 2017

Jovem viveu a esperança da adoção e a rejeição (Reprodução)

25/05/17

"Eu quase fui adotado quando tinha 8 ou 9 anos, mas a mulher me disse que não poderia criar um filho gay. Depois disso tive certeza que nunca encontraria uma família", relembra A. M., hoje com 20 anos. Negro e homossexual, ele e mais seis irmãos foram abandonados pela mãe em um dia que era para ser festa. A. M. conta que a mulher que o trouxe ao mundo saiu de casa dizendo que iria comprar um bolo para celebrar seu aniversário de cinco anos, mas nunca mais retornou. Ele viveu no abrigo até completar 18 anos e depois disso precisou tirar forças de onde não tinha e com o pequeno salário que ganhava pelo trabalho em um supermercado conseguiu alugar uma casa pequena e se manter. Hoje ele vive em Votorantim, mas sempre se emociona ao falar sobre o período que viveu no abrigo.

A realidade de A. M. não é diferente daquela de mais de 2 mil jovens, que em 2016, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tiveram que sair dos abrigos onde viviam. Hoje no Brasil, de acordo com dados do CNJ, há 7.622 crianças e adolescentes abrigados. Desse total, 4.858 já podem ser adotados, enquanto 2.764 ainda não foram destituídos da família biológica. Em Sorocaba, são 145 acolhidos, sendo que apenas 21 já foram destituídos e estão aptos para adoção. Hoje é o Dia Nacional da Adoção, data criada em 1996 e que visa apoiar a ampliação do número de adotados no Brasil.

Enquanto 84% dos pais estão em busca de filhos até 5 anos, 81% das crianças que aguardam por adoção têm entre 6 e 17. A maioria (65,4%) dos que vivem em abrigos são negros e pardos. O número de pretendentes que somente aceitam crianças brancas tem diminuído -- em 2010, eles representavam 38,7% dos candidatos a pais adotivos, enquanto em 2016 caiu para 22,5% de pretendentes que fazem essa exigência. Paralelamente, o número de candidatos que aceitam crianças negras subiu de 30,59% em 2010 para os atuais 46,7% do total de pretendentes do cadastro.

Os números não fecham, visto que há 37.512 pretendentes habilitados para adoção, ou seja, para cada criança que vive hoje nos abrigos aguardando uma família, há quase oito possíveis adotantes. Além do perfil incompatível montado pelos pretendentes, o advogado Helio Ferraz, que preside da comissão da criança e do adolescente da OAB-Pinheiros, chama atenção para a morosidade nos processos de adoção. Segundo ele, é preciso ampliar os debates com os pretendentes e também é necessário a "quebra de tabus e barreiras adotivas, com adoção interracial, tardia, e de casais homoafetivos".

Ferraz é também graduado em Direito de Família e Sucessões, preside o grupo de apoio à adoção chamado "Casa de Helena" e integra as comissões de Direito de Família e Direito à Adoção da OAB-SP. Aos 29 anos e solteiro, o advogado resolveu adotar duas meninas e um menino que são irmãos, o que é algo raro. De acordo com o CNA, 26.611 (67%) dos pretendentes não aceitaram adotar grupos de irmãos. "Eu tive certeza no momento que os vi." O advogado conheceu os filhos no abrigo que era voluntário e hoje tem a guarda provisória do trio, que já está com ele há cinco anos.

Desesperança

Após ser rejeitado e ver todos os irmãos serem adotados, A. M. relembra que sua esperança ia embora dia após dia. "Depois de um tempo eu me convenci que ninguém se interessaria por mim." Ele viveu parte de sua vida, após os cinco anos, na Casa de Belém, em Votorantim, e depois foi para a Casa de Belém 2, no mesmo município, que era voltada para adolescentes e hoje não existe mais.

A vida de A. M. é digna de um roteiro de novela, com muitas reviravoltas e tristes surpresas. Quando completou 18 anos e saiu do abrigo, ele conta que reencontrou seu suposto pai, que pouco conviveu na infância. O homem vivia na rua e A. M. sempre que podia, levava alimento para ele. "No ano passado me ligaram e falaram que o corpo dele tinha sido encontrado, que eu precisava reconhecer e preparar o funeral e todos esses trâmites." Ele gastou as reservas de dinheiro que tinha e durante o velório do homem que imaginara ser seu pai descobriu que não havia vínculo sanguíneo nenhum com o homem.

A irmã mais nova do rapaz acabou ficando sob a guarda da avó materna e ele mantém pouco contato com os familiares. Ele e o irmão mais velho -- que conseguiu ser adotado mas não se adaptou à família -- moraram juntos por um tempo e nesse período encontraram a própria mãe vivendo na rua. "Meu irmão quis levá-la para a casa que a gente alugava junto. Eu mal conseguia olhar para a cara dela. É muito rancor." Após dois dias na casa dos filhos, a mulher esperou que todos saíssem, furtou móveis e eletrodomésticos dos próprios filhos e fugiu. "Depois descobri que ela era usuária de drogas e nunca mais vi."

Hoje ele mora na casa de um amigo e também está desempregado. Embora conte sobre sua vida de forma descontraída, admite que o jeito divertido é uma arma contra o sofrimento que a rejeição lhe causa. "Tem dias que eu choro muito e ser preto e gay torna tudo ainda mais difícil", finaliza.


Segundo "abandono" é traumático

Crianças que aguardam pela adoção já têm uma carga emocional muito pesada. Estão em abrigos, em geral, porque viveram tragédias pessoais -- foram abandonadas, vítimas de maus-tratos ou da miséria ou porque os pais biológicos morreram. Muitas têm a sorte de encontrar lares afetivos e formar laços sólidos. Uma parcela dessas crianças, porém, passa por outras experiências avassaladoras: o segundo abandono. São "devolvidas" à Justiça pelos pais adotivos ou guardiões e acabam retornando para os abrigos. Em termos legais, a adoção, depois de concluída, é irreversível, mas segundo Rosemeire Xavier Cardoso, diretora do Cartório da Infância e Juventude da Comarca de Sorocaba, casos de devolução têm aumentado nos últimos anos.

Embora não existam estatísticas oficiais por município, desde 2008, quando foi criado o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), mais de 150 crianças em todo o Brasil já foram devolvidas por pais adotivos. Devoluções ocorrem em duas situações, conta Rosemeire. Uma delas, a mais comum, é durante o estágio de convivência, em que a adoção definitiva ainda não foi efetivada. Porém, conta, também há casos que a devolução ocorre após a adoção formalizada, quando já se passaram anos de convivência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê um período de adaptação justamente para que, estabelecido o contato entre as partes, seja avaliada a compatibilidade, prevenindo-se um futuro arrependimento, tanto por parte dos pais adotivos quanto da criança. Se acontecer a devolução, cabe à Justiça buscar parentes da família adotiva que possam estar interessados em ter a guarda provisória da criança. Outra alternativa é o traumático retorno da criança a um abrigo.

O advogado Hélio Ferraz, porém, conta que cada vez mais o Ministério Público tem ajuizado demandas de indenização contra os familiares quando ocorre uma devolução e o até então pai ou mãe adotivo pode ficar impedido de retornar ao CNA. "Os traumas que se criam numa criança que enfrenta o abandono pela segunda vez são muito profundos e nada mais justo que esse responsável que não quer mais a criança pague uma pensão e arque com tratamentos psicológicos", afirma Rosemeire.

Em Sorocaba, conta a diretora local do Cartório da Infância e Juventude, entre junho e dezembro do ano passado, ocorreram cinco devoluções de meninas. "Foram duas meninas crianças e outras três adolescentes. Todos casos separados", relembra. A situação, afirma, causou comoção, mas infelizmente vem se tornando comum. "As famílias devolvem dizendo que a criança não atendeu às expectativas, como se fosse um produto", lamenta. De acordo com ela, a ansiedade em adotar e assim ampliar o perfil pode ser um causador dessa situação, pois os pretendentes se prontificam a adotar crianças que na verdade não são capazes de receber.

Mestre em psicologia escolar e do desenvolvimento humano, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Maria Luiza Ghirardi escreveu uma dissertação exatamente sobre a questão, chamada "A devolução de crianças e adolescentes adotivos sob a ótica psicanalítica", de 2008. No estudo, explicou que, muitas vezes, a criança adotada e a relação com ela são "supervalorizadas" pelos novos pais. Não se admite o surgimento de dificuldades, tão comuns em qualquer relação do gênero, o que leva a uma "decepção". "A devolução chama muito mais nossa atenção porque se constitui como uma experiência que reedita o abandono. É desse ângulo que se enfatiza que as consequências para a criança podem ser intensificadas em relação aos seus sentimentos de rejeição, abandono e desamparo", escreveu a psicóloga na dissertação.

Original disponível: http://www.jornalcruzeiro.com.br/materia/790274/jovem-viveu-a-esperanca-da-adocao-e-a-rejeicao

Reproduzido por: Lucas H.

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