Sávio Bittencourt
Chegou naquela repartição preocupado. Houvera sido intimado pela Receita Federal para levar seus documentos comprobatórios de rendimentos, despesas médicas e de seus dependentes. Estava assoberbado de trabalho, com despesas de montão, filho com problema de nota na escola, brigando com a esposa por banalidades e, agora, ainda mais essa: caiu na malha fina.
Carregava uma pasta vermelha de plástico recheada de documentos. Uma papelada. Não era um sujeito muito organizado e, em função dessa característica, havia demorado para achar e juntar tudo, numa ordem razoavelmente lógica. Foi um cata-cata desesperado. Mas estava tudo ali, prontinho, para mostrar àquela autoridade fiscal. Precisava se desincumbir deste ônus e seguir seu caminho. As urgências urgiam e rugiam.
Pegou uma senha numa máquina e aguardou ser chamado. Não é prerrogativa exclusiva de nenhum fisco do mundo ser impopular. Mas no Brasil, a voracidade fiscal somada ao desperdício evidente de dinheiro público em obras desastradas, à corrupção desenfreada e à incompetência administrativa generalizada, formavam um coquetel muito explosivo. As pessoas se sentem roubadas ao pagar um mísero tostão aos governos. E há governos demais, parlamentos demais, municípios demais, corruptos demais. Como os serviços públicos são deficitários e os programas governamentais são voltados prioritariamente para ter impacto eleitoral, mantendo o poder nas mãos de quem já o detém, pagar imposto não é visto exatamente como um ato patriótico.
Pensava nestas coisas quando o painel eletrônico emitiu um bip e apareceu o número de sua senha. Era a hora da onça beber água. Ou do “leão” comer um inocente. Estava lívido. Caminhou até a mesa indicada e sentou-se à frente de seu interlocutor, um sujeito aparentemente de idade próxima sua, de terno, cabelos parcialmente grisalhos, com ar de seriedade próprio das autoridades públicas. Não era ríspido, nem simpático. Formal, distante e polido. Pelo menos polido. Foi logo abrindo a pasta vermelha e puxando a papelada. Queria demonstrar sempre sua boa-fé. Se havia erro era involuntário e ele o consertaria incontinentemente.
Nosso burocrata fiscal recebeu os documentos e analisou a sua ordem, sem se deter longamente em seu conteúdo. Havia uma tela de computador a sua frente e ele a consultava para encontrar o que havia sido detectado pelo sistema e que determinara a intimação daquele contribuinte. Aliás, o sistema de cruzamento de dados da Receita Federal é uma das coisas que melhor funciona no Brasil. Não se sabe por qual motivo não é comemorado jubilosa e efusivamente pelos nacionais, rua à fora. Gente esquisita, esses brasileiros. Mas o fiscal ao checar este motivo acabou por encontrar algo atípico. Estranho mesmo. Era necessário falar com aquele sujeito pois os esclarecimentos que o caso requeria não seriam deslindados apenas com a posterior análise de documentos. Um dos Ossos do ofício esse, ter que falar com gente. Fazer o que?
“Senhor, nosso sistema detectou algumas inconformidades no seu imposto de renda apresentado este ano. Sobretudo nas informações referentes a seus dependentes. Gostaria de obter alguns esclarecimentos sobre isso e certas despesas declaradas”. Disse em tom professoral o dito funcionário público.
“Perfeitamente, posso esclarecer tudo o que o Senhor desejar. Sou empregado e meu desconto já vem em folha. Não tenho nem como sonegar. Antes de eu ver o dinheiro... já foi pago. Só vejo no contracheque o valor que foi debitado. Não dá tempo nem de dar um tchau...”
Não adianta ser simpático com pessoas que são muito ciosas de sua autoridade e ali por ela se colocam. A sisudez é um requisito de respeitabilidade. O fiscal não esboçou nenhum sorriso, nenhuma aprovação, diante do esforço de seu interlocutor de deixar as coisas mais amenas. Simplesmente ignorou este desiderato e prosseguiu profissionalmente seu roteiro.
“Aqui consta que o senhor é casado há muitos anos com a mesma mulher, faz uns vinte anos, não é mesmo?” Disse-lhe, ainda mirando a tela do computador.
“Sim, senhor. Graças a Deus. Já foram vinte. Meu sogro geralmente diz que no casamento difícil mesmo são os primeiros cem anos, depois a gente se acostuma...”. Insistia o cidadão em encontrar alguma brecha naquela cara fechada, em vão. Sem esboçar reação a mais uma tentativa de desanuviar o ambiente, seguiu o impiedoso servidor.
“Pois então, nosso sistema apurou que o senhor, sendo casado com sua esposa, teve dois filhos num curtíssimo espaço de tempo. Em vinte dias nasceram duas crianças. Foi no ano de 1997. Não é da conta da Receita Federal a vida privada dos contribuintes, me entenda bem, por favor. Se alguém tem filhos fora do casamento, tudo bem. Todos os filhos são dependentes até os vinte e um anos. Mas precisamos checar a veracidades das informações para evitar tentativas de sonegação. O que nos intriga é que as crianças têm o mesmo sobrenome... Geralmente quando há mães diferentes, um dos sobrenomes também é diferente”. Concluiu postando seu olhar mais detidamente pala primeira vez no seu atendido, esperando uma reação a sua exposição.
“Mas senhor fiscal, as crianças todas são filhas da mesma mulher. Não houve filho de outra pessoa. Tudo meu e dela, como o senhor pode checar nas certidões de nascimento que eu entreguei agora”.
O bom e honesto servidor estava confuso. Aquele contribuinte desgraçado lhe trazia algo que não estava no manual do dia-a-dia. Ia dar trabalho. Teria falsificado uma certidão, grosseiramente? Inventado um filho para ter mais desconto no imposto e lesar o erário? Não resistindo à tentação da pergunta e já começando a deixar escapar ao ar de intangibilidade olímpica que externava até então, deu-se à curiosidade.
“Quer dizer que o senhor declara que teve dois filhos nascidos num intervalo de vinte dias... com a mesma mulher... não me parece que seja um procedimento médico comum que gêmeos nasçam com tanta distância entre si. O senhor poderia fazer o obséquio de me explicar”.
Se as graciosidades não conferiam àquela conversação um clima mais íntimo, por denotada resistência do funcionário, a instigação causada pelo inusitado acabava fazendo o papel de levantar seu interesse sobre aquele caso. Estava genuinamente embasbacado. E sua intuição o levaria ao imponderável. Era a hora do contrataque do fiscalizado. Se as piadas não funcionaram, quem sabe a realidade pudesse fazer o monstro do distanciamento ruir a seus pés?
“Pois veja o senhor como tudo se deu. Eu e a minha esposa ficamos grávidos, por assim dizer. Na verdade só ela ficou grávida. E estávamos felizes. Mas, um velho sonho de namorados ainda estava por se cumprir. Juras e combinações de apaixonados são resistentes ao tempo quando quem jura acredita no que fala...”
O fiscal podia estar impaciente. Fez um questionamento objetivo e o homem ameaçava responder com poesia. Contudo naquele momento por algum motivo não conseguia reagir com a frieza habitual e resolveu escutar. O sujeito continuou falando, à míngua de qualquer interrupção.
“Então, com aquela criança na barriga e muito felizes, resolvemos dar cabo da dita promessa.
Decidimos adotar uma criança para que fosse criada junto com a outra que viria pelo caminho tradicional. A busca foi longa, moço! Tinha muita criança em abrigo, tal e coisa, mas nenhuma para adoção. Me falaram que aquelas tinham pais vivos. Me pareceu que para elas estavam mortos, porque delas não cuidavam. Mas vá entender essa gente da justiça, né?”
Agora o oficial se encontrava em inferioridade emocional no diálogo. Pressentiu o fim da história, mas foi forçado pelo constrangimento a aceitar a narrativa até o fim.
“Até a gente encontrar a menina minha esposa já estava com o maior barrigão. Fomos num hospital buscá-la com a ordem do juiz. Minha mulher saiu de lá com ela nos braços, toda feliz, provocando o abestamento generalizado dos que estavam por lá, já que ainda carregava o menino no ventre bojudo, nasce-não-nasce. O pessoal deve ter pensado que as crianças estavam nascendo à prestação por aquelas bandas...”
Até os mais preparados servidores, implacáveis respeitadores do princípio da impessoalidade da administração pública podem eventualmente escorregar diante do desconhecido. Era o caso, nosso zeloso protetor do dinheiro público quase – mas quase mesmo – riu. Uma mãe barriguda com uma criancinha no colo realmente poderia gerar essa ideia maluca de criança nascendo à prestação. Ouviu até o fim.
“Aí depois que pegamos aquela menina pretinha e colocamos no meio da nossa cama, minha sensação era de que a vida não fazia sentido sem ela. Ficamos naquela paparicação sem fim pelos dias que se seguiram até que o menino que estava na barriga resolveu também dar o ar de sua graça – e que graça. Nasceu com uma cara de safado, dengoso o danado. Fiquei assim com esses gêmeos como o senhor disse. Um branco e uma negra. Um da barriga e outra do coração. Os dois do coração, sabe? O senhor tem como colocar isso aí no sistema?”
Aquele profissional havia feito concurso de provas e títulos para estar ali. Era cioso de seu trabalho. A história do contribuinte falador o havia desconcertado. Retomando sua austeridade aos poucos, deixou sem resposta a pergunta que lhe fora feita. O sistema não era definitivamente dado às amabilidades. Sua eficiência era apontar as coisas incomuns para que ele verificasse. Não havia como introduzir aspectos que não fossem absolutamente objetivos ali. Preferiu olhar para a tela e procurar mais uma destas incongruências a serem perquiridas. O faria de forma mais branda, certamente, mas era seu dever continuar com aquela verificação.
“Bem... obrigado pelo esclarecimento. Há uma outra questão aqui relatada pelo sistema. Peço novamente a gentileza de me esclarecer, por favor. Não me leve a mal de perguntar, é a minha obrigação funcional. O senhor indica uma outra dependente nas últimas três declarações de renda. No primeiro ano há uma criança chamada Ana do Céu. No ano seguinte, uma criança chamada Tuane da Silva. No terceiro ano, uma outra criança dependente que se chama Fernanda. O sistema apontou que essas três crianças nasceram na mesma data! O senhor há de convir que é estranho demais um contribuinte ter uma dependente diferente por ano, com a incrível coincidência da data de nascimento!”
Apesar do espanto, sincero, o correto obreiro do fisco já torcia a favor do contribuinte naquele momento. Queria achar uma razão para aquela anomalia, mas não conseguia atinar. Estava agora com uma ansiedade incomum para ouvir a resposta daquele indivíduo. Ofereceu-lhe um copo d’água, como sinal inequívoco de estima. Aquele atendimento que o atormentava estava estranhamente interessante. Envolvia-se sem dar conta.
“Ah... amigo! Essa foi outra história. A experiência dos nosso gêmeos amados foi tão abrasadora, durante todo esse tempo, que nós resolvemos nos habilitar para uma nova adoção. Dessa vez foi com tudo planejadinho, mais organizado. A menininha já chegou mais crescidinha. Quando ela foi parar Deus-sabe-como lá no fórum, deram um nome provisório de Ana do Céu e mandaram fazer uma certidão de nascimento. Parece que a guria circulou acidentadamente por várias casas, sem nada de papel não. Foi sendo empurrada pra lá e pra cá. Bateu no fórum um dia e lhe deram esse primeiro nome. Peguei a guarda dela e pedi a adoção. Depois, fizeram lá um processo demorado para achar a origem da criança e acabaram encontrando uma mãe, bem desorientadinha. Descobriram que a menina tinha um registro anterior, chamava-se Tuane. Então o que apareceu na minha primeira declaração de renda a dependente se chamava Ana. No ano seguinte aquela jóinha continuava comigo, já se sabia fora registrada quando nasceu como Tuane. Então fiz a declaração daquela ano com o nome correto. Depois de muita amolação, julgaram meu pedido de adoção e a menina, a mesmíssima menininha mulata e sapeca, que enchia minha casa da alegria, passou a se chamar finalmente Fernanda, como seus irmãos escolheram. Olha, meu irmão...quando ponho Fernanda no meu colo sinto que ela tem o DNA da minha alma. É impressionante, meu querido, como se pode amar o diferente. Na verdade, os irmãos sempre a chamaram de Fernanda esse tempo todo, mas acho que o sistema não ia entender essa particularidade, não é? Então foi obrigado a declarar a mesma dependente com três nomes oficiais em três declarações seguidas. O senhor quer ver uma foto deles?”
O destino brinca com nossas imponências. A proposta feita de ver aquela foto era completamente incompatível com a dignidade do cargo ostentado pelo fiscal. Era uma desabusada demonstração de interesse pessoal que descortinava uma humanidade frágil e exposta. Porcaria nenhuma. Não poderia ver essa foto. Não poderia. Mas viu. Com a respiração trêmula esticou a mão para pegar a foto que o tipo tirou da carteira de couro preta e olhou detidamente para àquela família. Viu gente de verdade, com sorrisos de amor. Gente que trabalha, gente que luta, gente que ama, que vive, que briga, que se reconcilia. Viu gente. E gostou do que viu.
O ovacionado sistema da Receita Federal não comporta tais conjecturas. Ainda bem para ele, servidor. Havia sido ali tragado por uma historinha agradável de ouvir. E que realmente mexera com sua estrutura. Casado há mais dez anos não tinha filhos. Não os evitaram, mas nunca os tiveram, decidiram não pesquisar o motivo. Vida de trabalho, pouco tempo para essas coisas. Sua esposa já o sondara a respeito dessa questão, mas a ele pareceu um assunto de segunda ordem. Nada havia ali naquelas declarações de renda que pudesse ser impugnado, estava tudo muito bem esclarecido, em preto e branco. Ia dispensar o contribuinte, com um pedido de desculpas pelo tempo consumido. Mas acabou dando mais um passo extraordinário, completamente impensado. Ofereceu um cartão pessoal com seus contatos àquele homem que acabara de investigar. Queimou seu manual mental. Às favas com essa droga. Selaram o encontro com um firme aperto de mão e com um almoço marcado para dali a alguns dias. Queria saber mais sobre esse negócio de adoção e o que acontece quando se ama tão fortemente uma outra pessoinha...
Original disponível em: https://www.facebook.com/groups/diariodaadocao/permalink/1492262734168082/
Reproduzido por: Lucas H.
Chegou naquela repartição preocupado. Houvera sido intimado pela Receita Federal para levar seus documentos comprobatórios de rendimentos, despesas médicas e de seus dependentes. Estava assoberbado de trabalho, com despesas de montão, filho com problema de nota na escola, brigando com a esposa por banalidades e, agora, ainda mais essa: caiu na malha fina.
Carregava uma pasta vermelha de plástico recheada de documentos. Uma papelada. Não era um sujeito muito organizado e, em função dessa característica, havia demorado para achar e juntar tudo, numa ordem razoavelmente lógica. Foi um cata-cata desesperado. Mas estava tudo ali, prontinho, para mostrar àquela autoridade fiscal. Precisava se desincumbir deste ônus e seguir seu caminho. As urgências urgiam e rugiam.
Pegou uma senha numa máquina e aguardou ser chamado. Não é prerrogativa exclusiva de nenhum fisco do mundo ser impopular. Mas no Brasil, a voracidade fiscal somada ao desperdício evidente de dinheiro público em obras desastradas, à corrupção desenfreada e à incompetência administrativa generalizada, formavam um coquetel muito explosivo. As pessoas se sentem roubadas ao pagar um mísero tostão aos governos. E há governos demais, parlamentos demais, municípios demais, corruptos demais. Como os serviços públicos são deficitários e os programas governamentais são voltados prioritariamente para ter impacto eleitoral, mantendo o poder nas mãos de quem já o detém, pagar imposto não é visto exatamente como um ato patriótico.
Pensava nestas coisas quando o painel eletrônico emitiu um bip e apareceu o número de sua senha. Era a hora da onça beber água. Ou do “leão” comer um inocente. Estava lívido. Caminhou até a mesa indicada e sentou-se à frente de seu interlocutor, um sujeito aparentemente de idade próxima sua, de terno, cabelos parcialmente grisalhos, com ar de seriedade próprio das autoridades públicas. Não era ríspido, nem simpático. Formal, distante e polido. Pelo menos polido. Foi logo abrindo a pasta vermelha e puxando a papelada. Queria demonstrar sempre sua boa-fé. Se havia erro era involuntário e ele o consertaria incontinentemente.
Nosso burocrata fiscal recebeu os documentos e analisou a sua ordem, sem se deter longamente em seu conteúdo. Havia uma tela de computador a sua frente e ele a consultava para encontrar o que havia sido detectado pelo sistema e que determinara a intimação daquele contribuinte. Aliás, o sistema de cruzamento de dados da Receita Federal é uma das coisas que melhor funciona no Brasil. Não se sabe por qual motivo não é comemorado jubilosa e efusivamente pelos nacionais, rua à fora. Gente esquisita, esses brasileiros. Mas o fiscal ao checar este motivo acabou por encontrar algo atípico. Estranho mesmo. Era necessário falar com aquele sujeito pois os esclarecimentos que o caso requeria não seriam deslindados apenas com a posterior análise de documentos. Um dos Ossos do ofício esse, ter que falar com gente. Fazer o que?
“Senhor, nosso sistema detectou algumas inconformidades no seu imposto de renda apresentado este ano. Sobretudo nas informações referentes a seus dependentes. Gostaria de obter alguns esclarecimentos sobre isso e certas despesas declaradas”. Disse em tom professoral o dito funcionário público.
“Perfeitamente, posso esclarecer tudo o que o Senhor desejar. Sou empregado e meu desconto já vem em folha. Não tenho nem como sonegar. Antes de eu ver o dinheiro... já foi pago. Só vejo no contracheque o valor que foi debitado. Não dá tempo nem de dar um tchau...”
Não adianta ser simpático com pessoas que são muito ciosas de sua autoridade e ali por ela se colocam. A sisudez é um requisito de respeitabilidade. O fiscal não esboçou nenhum sorriso, nenhuma aprovação, diante do esforço de seu interlocutor de deixar as coisas mais amenas. Simplesmente ignorou este desiderato e prosseguiu profissionalmente seu roteiro.
“Aqui consta que o senhor é casado há muitos anos com a mesma mulher, faz uns vinte anos, não é mesmo?” Disse-lhe, ainda mirando a tela do computador.
“Sim, senhor. Graças a Deus. Já foram vinte. Meu sogro geralmente diz que no casamento difícil mesmo são os primeiros cem anos, depois a gente se acostuma...”. Insistia o cidadão em encontrar alguma brecha naquela cara fechada, em vão. Sem esboçar reação a mais uma tentativa de desanuviar o ambiente, seguiu o impiedoso servidor.
“Pois então, nosso sistema apurou que o senhor, sendo casado com sua esposa, teve dois filhos num curtíssimo espaço de tempo. Em vinte dias nasceram duas crianças. Foi no ano de 1997. Não é da conta da Receita Federal a vida privada dos contribuintes, me entenda bem, por favor. Se alguém tem filhos fora do casamento, tudo bem. Todos os filhos são dependentes até os vinte e um anos. Mas precisamos checar a veracidades das informações para evitar tentativas de sonegação. O que nos intriga é que as crianças têm o mesmo sobrenome... Geralmente quando há mães diferentes, um dos sobrenomes também é diferente”. Concluiu postando seu olhar mais detidamente pala primeira vez no seu atendido, esperando uma reação a sua exposição.
“Mas senhor fiscal, as crianças todas são filhas da mesma mulher. Não houve filho de outra pessoa. Tudo meu e dela, como o senhor pode checar nas certidões de nascimento que eu entreguei agora”.
O bom e honesto servidor estava confuso. Aquele contribuinte desgraçado lhe trazia algo que não estava no manual do dia-a-dia. Ia dar trabalho. Teria falsificado uma certidão, grosseiramente? Inventado um filho para ter mais desconto no imposto e lesar o erário? Não resistindo à tentação da pergunta e já começando a deixar escapar ao ar de intangibilidade olímpica que externava até então, deu-se à curiosidade.
“Quer dizer que o senhor declara que teve dois filhos nascidos num intervalo de vinte dias... com a mesma mulher... não me parece que seja um procedimento médico comum que gêmeos nasçam com tanta distância entre si. O senhor poderia fazer o obséquio de me explicar”.
Se as graciosidades não conferiam àquela conversação um clima mais íntimo, por denotada resistência do funcionário, a instigação causada pelo inusitado acabava fazendo o papel de levantar seu interesse sobre aquele caso. Estava genuinamente embasbacado. E sua intuição o levaria ao imponderável. Era a hora do contrataque do fiscalizado. Se as piadas não funcionaram, quem sabe a realidade pudesse fazer o monstro do distanciamento ruir a seus pés?
“Pois veja o senhor como tudo se deu. Eu e a minha esposa ficamos grávidos, por assim dizer. Na verdade só ela ficou grávida. E estávamos felizes. Mas, um velho sonho de namorados ainda estava por se cumprir. Juras e combinações de apaixonados são resistentes ao tempo quando quem jura acredita no que fala...”
O fiscal podia estar impaciente. Fez um questionamento objetivo e o homem ameaçava responder com poesia. Contudo naquele momento por algum motivo não conseguia reagir com a frieza habitual e resolveu escutar. O sujeito continuou falando, à míngua de qualquer interrupção.
“Então, com aquela criança na barriga e muito felizes, resolvemos dar cabo da dita promessa.
Decidimos adotar uma criança para que fosse criada junto com a outra que viria pelo caminho tradicional. A busca foi longa, moço! Tinha muita criança em abrigo, tal e coisa, mas nenhuma para adoção. Me falaram que aquelas tinham pais vivos. Me pareceu que para elas estavam mortos, porque delas não cuidavam. Mas vá entender essa gente da justiça, né?”
Agora o oficial se encontrava em inferioridade emocional no diálogo. Pressentiu o fim da história, mas foi forçado pelo constrangimento a aceitar a narrativa até o fim.
“Até a gente encontrar a menina minha esposa já estava com o maior barrigão. Fomos num hospital buscá-la com a ordem do juiz. Minha mulher saiu de lá com ela nos braços, toda feliz, provocando o abestamento generalizado dos que estavam por lá, já que ainda carregava o menino no ventre bojudo, nasce-não-nasce. O pessoal deve ter pensado que as crianças estavam nascendo à prestação por aquelas bandas...”
Até os mais preparados servidores, implacáveis respeitadores do princípio da impessoalidade da administração pública podem eventualmente escorregar diante do desconhecido. Era o caso, nosso zeloso protetor do dinheiro público quase – mas quase mesmo – riu. Uma mãe barriguda com uma criancinha no colo realmente poderia gerar essa ideia maluca de criança nascendo à prestação. Ouviu até o fim.
“Aí depois que pegamos aquela menina pretinha e colocamos no meio da nossa cama, minha sensação era de que a vida não fazia sentido sem ela. Ficamos naquela paparicação sem fim pelos dias que se seguiram até que o menino que estava na barriga resolveu também dar o ar de sua graça – e que graça. Nasceu com uma cara de safado, dengoso o danado. Fiquei assim com esses gêmeos como o senhor disse. Um branco e uma negra. Um da barriga e outra do coração. Os dois do coração, sabe? O senhor tem como colocar isso aí no sistema?”
Aquele profissional havia feito concurso de provas e títulos para estar ali. Era cioso de seu trabalho. A história do contribuinte falador o havia desconcertado. Retomando sua austeridade aos poucos, deixou sem resposta a pergunta que lhe fora feita. O sistema não era definitivamente dado às amabilidades. Sua eficiência era apontar as coisas incomuns para que ele verificasse. Não havia como introduzir aspectos que não fossem absolutamente objetivos ali. Preferiu olhar para a tela e procurar mais uma destas incongruências a serem perquiridas. O faria de forma mais branda, certamente, mas era seu dever continuar com aquela verificação.
“Bem... obrigado pelo esclarecimento. Há uma outra questão aqui relatada pelo sistema. Peço novamente a gentileza de me esclarecer, por favor. Não me leve a mal de perguntar, é a minha obrigação funcional. O senhor indica uma outra dependente nas últimas três declarações de renda. No primeiro ano há uma criança chamada Ana do Céu. No ano seguinte, uma criança chamada Tuane da Silva. No terceiro ano, uma outra criança dependente que se chama Fernanda. O sistema apontou que essas três crianças nasceram na mesma data! O senhor há de convir que é estranho demais um contribuinte ter uma dependente diferente por ano, com a incrível coincidência da data de nascimento!”
Apesar do espanto, sincero, o correto obreiro do fisco já torcia a favor do contribuinte naquele momento. Queria achar uma razão para aquela anomalia, mas não conseguia atinar. Estava agora com uma ansiedade incomum para ouvir a resposta daquele indivíduo. Ofereceu-lhe um copo d’água, como sinal inequívoco de estima. Aquele atendimento que o atormentava estava estranhamente interessante. Envolvia-se sem dar conta.
“Ah... amigo! Essa foi outra história. A experiência dos nosso gêmeos amados foi tão abrasadora, durante todo esse tempo, que nós resolvemos nos habilitar para uma nova adoção. Dessa vez foi com tudo planejadinho, mais organizado. A menininha já chegou mais crescidinha. Quando ela foi parar Deus-sabe-como lá no fórum, deram um nome provisório de Ana do Céu e mandaram fazer uma certidão de nascimento. Parece que a guria circulou acidentadamente por várias casas, sem nada de papel não. Foi sendo empurrada pra lá e pra cá. Bateu no fórum um dia e lhe deram esse primeiro nome. Peguei a guarda dela e pedi a adoção. Depois, fizeram lá um processo demorado para achar a origem da criança e acabaram encontrando uma mãe, bem desorientadinha. Descobriram que a menina tinha um registro anterior, chamava-se Tuane. Então o que apareceu na minha primeira declaração de renda a dependente se chamava Ana. No ano seguinte aquela jóinha continuava comigo, já se sabia fora registrada quando nasceu como Tuane. Então fiz a declaração daquela ano com o nome correto. Depois de muita amolação, julgaram meu pedido de adoção e a menina, a mesmíssima menininha mulata e sapeca, que enchia minha casa da alegria, passou a se chamar finalmente Fernanda, como seus irmãos escolheram. Olha, meu irmão...quando ponho Fernanda no meu colo sinto que ela tem o DNA da minha alma. É impressionante, meu querido, como se pode amar o diferente. Na verdade, os irmãos sempre a chamaram de Fernanda esse tempo todo, mas acho que o sistema não ia entender essa particularidade, não é? Então foi obrigado a declarar a mesma dependente com três nomes oficiais em três declarações seguidas. O senhor quer ver uma foto deles?”
O destino brinca com nossas imponências. A proposta feita de ver aquela foto era completamente incompatível com a dignidade do cargo ostentado pelo fiscal. Era uma desabusada demonstração de interesse pessoal que descortinava uma humanidade frágil e exposta. Porcaria nenhuma. Não poderia ver essa foto. Não poderia. Mas viu. Com a respiração trêmula esticou a mão para pegar a foto que o tipo tirou da carteira de couro preta e olhou detidamente para àquela família. Viu gente de verdade, com sorrisos de amor. Gente que trabalha, gente que luta, gente que ama, que vive, que briga, que se reconcilia. Viu gente. E gostou do que viu.
O ovacionado sistema da Receita Federal não comporta tais conjecturas. Ainda bem para ele, servidor. Havia sido ali tragado por uma historinha agradável de ouvir. E que realmente mexera com sua estrutura. Casado há mais dez anos não tinha filhos. Não os evitaram, mas nunca os tiveram, decidiram não pesquisar o motivo. Vida de trabalho, pouco tempo para essas coisas. Sua esposa já o sondara a respeito dessa questão, mas a ele pareceu um assunto de segunda ordem. Nada havia ali naquelas declarações de renda que pudesse ser impugnado, estava tudo muito bem esclarecido, em preto e branco. Ia dispensar o contribuinte, com um pedido de desculpas pelo tempo consumido. Mas acabou dando mais um passo extraordinário, completamente impensado. Ofereceu um cartão pessoal com seus contatos àquele homem que acabara de investigar. Queimou seu manual mental. Às favas com essa droga. Selaram o encontro com um firme aperto de mão e com um almoço marcado para dali a alguns dias. Queria saber mais sobre esse negócio de adoção e o que acontece quando se ama tão fortemente uma outra pessoinha...
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Reproduzido por: Lucas H.
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