11.02.2017
JAD LARANJEIRA
DA REDAÇÃO
Essa é a questão da alienação parental. O alienador normalmente quer a criança só para si. Ele quer afastar, ou por vingança, ou por alguma questão mal resolvida no casamento e etc. Então tem se utilizado muito essa via, e é uma via muito difícil, porque, como você lida com criança, você não tem a exata dimensão da realidade. Não sabemos se é verdade ou se é mentira. Às vezes tem que se valer de perícia técnica na grande maioria dos casos em que há essas acusações, onde o abuso não ficou caracterizado.
Porque quando o abuso é caracterizado, onde o exame constata e a criança é firme, e você vê que aquilo realmente aconteceu, é mais fácil de aplicar o direto. Mas quando você transita em uma área da dúvida, é bem difícil.
Às vezes a pessoa é um terrível marido, mas um pai excelente, que na realidade também está sendo alienado. É quando está sendo descaracterizada a figura materna ou paterna, como se fosse um jogo de disputa entre os casais ou vingança. A pessoa pensa que afastando o filho do pai ou da mãe vai estar se vingando, quando na realidade o prejuízo emocional e psicológico nas crianças é muito grande. Elas são as mais prejudicadas.
MidiaNews - Quando acontece de a denúncia se mostrar falsa, fica difícil apagar a mancha, não é mesmo?
Gleide Bispo Santos - Sim, muito difícil. No primeiro momento, quando a denúncia chega pra gente, na dúvida, temos que tomar a providencia de afastá-lo. Afastar o pai, afastar a mãe do convívio da criança até que tenhamos a condição de chegar a uma convicção. E esse processo demora um pouco. O juízo precisa de um suporte técnico para respaldá-lo. E isso leva tempo. E nesse processo de alienação parental, vai se se descontruindo toda a figura paterna ou materna. E depois, para se fazer esse resgate, é bastante difícil.
Uma das coisas que mais me preocupam aqui é esse aumento significativo. E não é só nessa Vara não. Esse tipo de acusação vem sendo feita no Brasil inteiro. Porque às vezes você pode incutir uma “verdade” na cabeça de uma criança de que ela foi violentada e ela passa a acreditar.
MidiaNews – Já aconteceu algum caso em que a mãe ou o pai reconheceu, na audiência, que mentiu?
Gleide Bispo Santos – Já sim. Há uns 15 dias tive um caso de uma atribuição de abuso ao pai em que a genitora, sentada aqui, disse a ele: “Peço perdão por tudo que eu te fiz de errado, por tudo que te causei”. Foi até emocionante porque ela reconheceu e pediu perdão por toda atribuição que não era verdadeira, no sentido de que ele teria abusado da filha. É difícil, mas acontece quando a pessoa consegue entender que aquilo não houve e que foi tudo uma fantasia.
MidiaNews – A senhora também atua muito na adoção de crianças com alguma deficiência. E nós sabemos que grande parte foi abandonada pelos pais. Como lidar com esse sentimento de rejeição nas crianças?
Gleide Bispo Santos – Às vezes os pais não têm condições financeiras de criar uma criança neuropata, ou que tem alguma deficiência física. E eles acabam se vendo obrigados a entregá-la para o Estado.
Hoje eu tenho, no Lar da Criança de Cuiabá, 19 crianças que são deficientes – todas abandonadas ou retiradas dos seus lares. Há um autista de 19 e outro de 21 anos. O de 21 foi abandonado. Já o de 19 estava em cárcere privado e o MPE entrou com uma ação para retirar o poder familiar. Ele está conosco até hoje. Como ele é autista e a mãe tinha que trabalhar sem ter com quem deixar, então ela o amarrava em casa.
As outras crianças, na grande maioria, são neuropatas. Ou em razão do uso de entorpecente pelos pais ou em razão de complicações no parto.
Então nós cuidamos delas em todos os sentidos. Cuidamos da alimentação, da saúde, da parte da "home care", se está indo ou não para escola. Cuidamos como se fossem nossos filhos mesmo. Já que eles não tiveram esse cuidado pelos pais, o Estado tem que proporcionar isso a eles. Hoje eles estão no “Lar da Criança” e estão muito bem atendidos.
MidiaNews – Ainda em relação à adoção. São comuns os casos de pais que adotam e depois desistem e devolvem a criança?
Gleide Bispo Santos – A adoção é todo um processo. Os casais, primeiramente, fazem um curso preparatório, onde é trabalhada a parte jurídica, psicológica para conhecer bem o processo de adoção. Depois fazem a inscrição, se habilitando. Em seguida, há a investigação social e depois é dado um parecer se eles estão aptos ou não para adotar.
Às vezes, por falta de preparo do casal ou do pretendente, nós temos a devolução, sim. Nesses cinco anos em que eu estou aqui, tive cinco casos de devoluções. Todas elas traumáticas para a criança.
Eu tive uma vez uma devolução de três meninas, irmãs, em que o casal, de forma precipitada, quis ficar com as três. Porque normalmente nós tentamos manter o grupo de irmãos juntos. E nesse caso eles quiseram as três meninas, se encantaram. Depois de quatro meses, acharam que a carga estava muito pesada por uma questão simples de coisas que são feitas no dia a dia: levantar cedo, levar e buscar na escola.
No dia em que eu falei com esse casal, perguntei ao marido: “São muitas criança, o senhor vai dar conta?”. E ele disse que sim. Mas acabaram devolvendo. Depois encontramos outra saída, onde foi feito um trabalho em que cada uma delas ficou com um membro de uma família.
Nós também tivemos outro caso de uma menina devolvida duas vezes. Depois tivemos um casal homoafetivo feminino que devolveu um grupo de irmãos. Nesse caso o processo de adoção já estava em estágio de conclusão. Quando estávamos prontos para dar a sentença, elas devolveram.
Às vezes o que falta é mais cuidado na hora de preparar ou de identificar a pessoa. Tem gente que às vezes busca adoção por estar passando por um momento de dificuldade. Por exemplo: tive recentemente o caso de um garoto de 4 anos que foi devolvido. E foi dolorido porque a criança já estava chamando o casal de pai e mãe. Então, depois você vai ter que dizer para ele que aquele pai e aquela mãe que ele reconhece como tal não vão mais levá-lo para casa. Isso é muito difícil e cruel. Às vezes nos sentimos muitos fragilizados com essas situações. Mas por outro lado é bom porque acaba sendo um desafio, porque aí eu fico pensando: “Tenho que arrumar um lar para esse menino para tentar amenizar o trauma”. E sempre a gente acaba conseguindo dar um final feliz.
MidiaNews – Qual o maior risco que as crianças correm em Cuiabá? São as drogas, a violência?
Gleide Bispo Santos – Eu sou de uma época em que as nossas mães não trabalhavam. A minha mãe era costureira. Ela trabalhava em casa e às vezes fazia salgados para vender, mas ela estava sempre dentro de casa cuidando da prole.
Quando nós, mulheres, ganhamos uma independência maior, fomos conquistando nosso espaço, não tivemos mais com quem deixar nossos filhos. Então hoje, quando as mães saem para o trabalho, elas não têm muita opção com quem deixar os filhos, porque o Estado ainda não acolheu e não proporciona. Às vezes dá uma escola de meio período e o restante a criança tem que ficar na rua. E a rua hoje é um problema. Antigamente ser criado na rua não era um problema. Muitos dos nossos meninos brincavam na rua, soltando pipa ou brincando de bolita. E hoje em dia a rua é um problema.
Então acredito que, na medida em que a mãe e o pai não têm com quem deixar os filhos, a rua se torna um problema e eles acabam sendo acolhidos pela criminalidade. Esse é o grande problema. O pai e a mãe têm que ser cuidadosos – saber onde o filho está, com quem ele está, para onde foi. Tem que fazer um monitoramento, mesmo de longe. Eles não podem deixar de ser pai e mãe nem por um momento. Esse acompanhamento é uma sobrecarga, mas é necessário.
O Estado deveria priorizar essa questão das crianças. Mas já que não há, é dever dos pais ensinar, dar cidadania a elas para que sejam um ser humano pleno e completo. Se você não proporcionar essa educação, o Estado não vai ter estrutura o suficiente para reparar o dano mais tarde. É o que estamos observando hoje, com os presídios superlotados. É uma série de problemas.
Então eu acho que a nossa grande saída seria essa: investimento maciço na nossa população infanto-juvenil.
MidiaNews – O que a senhora vê de mais positivo nesses cincos anos à frente da Vara?
Gleide Bispo Santos – Quando eu entrei aqui, nós tínhamos dois grandes problemas. Um deles era do Pronto-Socorro, que não tinha uma ala infantil. Então começamos esse processo de recuperação, em que conseguimos e está funcionando desde maio do ano passado.
Isso foi uma conquista muito grande para a cidade e para o Estado. O governador Pedro Taques ajudou muito no final e está ajudando atualmente com R$ 1,5 milhão só para a unidade pediátrica.
Outro grande problema que nós tínhamos era o Complexo do Pomeri. Vivíamos um problema seriíssimo de superlotação, com muitas mortes. Eu cheguei até a interditar o Pomeri totalmente. A primeira interdição foi em cima de uma ação civil pública que o MPE propôs, porque não havia mais condições.
Era uma unidade de 40 anos, que tinha partes totalmente insalubres, com violações de direitos humanos, esgoto a céu aberto. Os adolescentes dormiam no cimento, era muito feio.
E depois mandei derrubar [um setor]. No primeiro momento, o Tribunal de Justiça revogou, mas no mérito do agravo, ele manteve a decisão de derrubada. Com isso, houve uma redução drástica na internação de adolescentes. Se antes nós tínhamos uma média de 200 adolescentes internados, hoje nós temos no máximo 50.
As pessoas podem até dizer que os adolescentes não estão sendo internados e estão nas ruas. Mas é melhor você ter um adolescente que cometeu um ato infracional fora do que um deles ficar em uma comunidade com um ambiente insalubre, em um ambiente que não oferece estrutura para ele sair melhor.
As mortes também cessaram. Antes era uma rebelião por semana, com reféns.E hoje não há mais esses danos. A maior conquista então, pra mim, é que paramos de perder adolescentes desse jeito. É possível recuperar a maioria deles, falta apenas investimento do poder público.
JAD LARANJEIRA
DA REDAÇÃO
Responsável pela primeira Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Cuiabá, a juíza Gleide Bispo Santos lida diariamente com casos que exigem dela controle emocional e pulso firme.
"A nossa vara tem uma carga emocional muito grande em todos os sentidos. Não só nos maus-tratos físicos [contra crianças], mas nos abusos sexuais também".
À frente da vara há cinco anos, a magistrada diz estar muito preocupada com a quantidade de falsas acusações de abusos sexuais feitas contra pais, principalmente após a separação do casal.
Segundo ela, as falsas acusações têm crescido significativamente, sempre no intuito de tentar influenciar o magistrado a deixar a guarda do filho com aquele que denuncia o cônjuge.
Em entrevista ao MidiaNews nesta semana, a magistrada ainda criticou a falta de investimento do Governo do Estado nas crianças e falta de postura dos pais com os filhos.
“O Estado deveria priorizar essa questão das crianças. Mas já que não há, é dever dos pais ensinar, dar cidadania a elas para que sejam um ser humano pleno e completo. Se você não proporcionar essa educação, o Estado não vai ter estrutura o suficiente para reparar o dano mais tarde. É o que estamos observando hoje, com os presídios superlotados. É uma série de problemas”, argumentou.
Leia os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Qual a estrutura da Vara da Infância e da Juventude? É suficiente para a demanda?
Gleide Bispo Santos – Nós temos uma demanda grande. Os nossos processos têm uma particularidade diferente porque exigem trâmites rápidos. As crianças aqui da Vara são crianças em situação de risco. Isso significa que temos vítimas de abandono, omissão, maus-tratos, abusos sexuais, crianças que necessitam de atendimento médico ou precisam de escola – todas elas configuram situação de risco. Então há a necessidade de que o atendimento seja rápido.
Nós não temos muitos processos. Temos uma média de 1.800 aproximadamente. Conseguimos reduzir significativamente porque são processos com a tramitação bem rápida. Assim todo dia entra um novo.
A estrutura já esteve pior. Hoje nós temos uma estrutura boa. Tivemos uma época com problemas com a equipe técnica, porque a Vara precisa do apoio da equipe multidisciplinar: psicólogo, assistente social... E houve uma época em que tivemos uma defasagem, mas hoje em dia a estrutura é muito boa.
MidiaNews – Uma das críticas feitas à Justiça brasileira é sobre a sua lentidão. A Justiça também é lenta para as crianças?
Gleide Bispo Santos – A Vara da Infância da Vara e da Juventude é um pouco diferenciada das outras. É uma Vara especializada só em criança em situação de risco. Então tudo aqui precisa de atendimento imediato, pelo menos da liminar [decisão provisória]. Durante o dia, apreciamos diversas, justamente para tirar a criança daquela situação de risco dentro de um tempo razoável.
Quando entrei aqui, nós tínhamos algumas demandas que eram protocoladas individualmente. Mas eu percebi que elas tinham uma abrangência de outras crianças. Por exemplo: tínhamos, no primeiro balanço, em trâmite naquela época, 60% dos casos relacionados à saúde. Então eram crianças em busca de UTI, atendimento médico especializado, exames, medicação, cirurgias... Para mim, esse número era excessivo. Então nós montamos um grupo para estudar a área da saúde da criança e do adolescente em Cuiabá, para sabermos como estava. Fizemos todo um diagnóstico da situação da saúde nos hospitais públicos e, a partir daí, estamos trabalhando para solucionar o problema como um todo. Lógico que tudo isso paralelamente aos trabalhos individuais. Isso tudo diminuiu nossa demanda na UTI em praticamente 90%.
MidiaNews – A senhora atua em ações de destituição familiar, que é quando os pais perdem a guarda dos filhos. Esse tipo de ação tem se tornado mais comum nos últimos anos?
Gleide Bispo Santos – Sem dúvida. Nós temos um problema muito sério de drogadição. Hoje os pais acabam colocando a criança em situação de risco, em razão do uso de substâncias entorpecentes. Isso é o que mais nós vemos por aqui. Acho que 80% dos processos de suspensão ou destituição [do poder familiar] têm a ver com o uso de drogas.
Mas isso não significa que o pai ou a mãe não tenham amor pela criança. Às vezes até me corta o coração quando vejo que o pai e a mãe são pessoas amorosas, mas não estão em condições de cuidar em razão do uso da substância. Então, nesse caso, o Ministério Público entra com uma ação de suspensão do poder familiar, porque nós fazemos de tudo no sentido de tentar resgatar e restaurar esse ambiente familiar. Nós oferecemos tratamento, internação... E somente se não houver mesmo a possibilidade, é que nós colocamos as crianças para a adoção. Mas antes disso ainda fazemos toda a reinserção da família extensa – avós, bisavós, tios.
A droga está separando pais e filhos, sem dúvida nenhuma. Isso aumenta a cada dia. É um volume assustador de crianças que têm os pais drogados e também um número assustador de crianças e adolescentes que fazem o uso de entorpecentes.
Podemos dizer que não há um investimento maciço do poder público nas crianças de 0 a 12 anos, que é um público que você tem condições de trabalhar e evitar que ele consuma drogas, que vá para a criminalidade e que ocorra essa desestruturação na família.
MidiaNews – Falando ainda da perda do poder familiar. A senhora lida também com pais agressores. Durante uma audiência, qual a desculpa mais comum destes pais que agridem crianças?
Gleide Bispo Santos – A humanidade vem evoluindo. A partir da Segunda Guerra Mundial, nós passamos a ter outra visão em relação aos direitos humanos. Criança e adolescente sempre foram vítimas de agressões ou violações de direitos. Agora nós estamos num processo em que isso não é mais permitido. E acredito que nós temos que avançar mais.
Então o pai e a mãe têm que educar o filho, impor limites, mas de uma maneira que ele seja respeitado sem a violência. Tem que haver o companheirismo, a conversa... É todo um processo que tem que estar longe da violência física. Nenhum ser humano pode espancar ou bater no outro e isso acontece muito ainda. A justificativa que dão para isso é: “Meu pai me bateu, eu cresci assim e sou um bom cidadão”. Isso é uma visão equivocada que nós precisamos mudar.
Eu fiz duas audiência sobre violência física hoje [quarta-feira]. Uma delas bastante traumática, em que um menino havia furtado R$ 50 da mãe e, como castigo, ela queimou a mão dele no fogão. A criança teve uma queimadura de segundo grau.
Ainda nos deparamos com cenas dessa natureza, que são chocantes. Mas penso que, a cada dia que passa, temos um avanço e estamos melhorando.
O ideal seria que tivéssemos um aparato melhor na rede pública para fazermos o atendimento nestes casos. Isso é uma coisa que ainda não temos para atender essa demanda, que seria uma equipe de psicólogo, assistente social, que exercesse essa função de restaurar e fazer com que as pessoas mudem sua postura. Nós aqui fazemos o possível e o impossível no sentido de conscientizar aqueles pais de que o caminho não é esse.
"A nossa Vara tem uma carga emocional muito grande em todos os sentidos, não só nos maus-tratos físicos, mas nos abusos sexuais também"
MidiaNews – A senhora é mãe. Essas histórias de maus-tratos e violência contra crianças a afetam de alguma maneira?
Gleide Bispo Santos – Com certeza, sim. A nossa Vara tem uma carga emocional muito grande em todos os sentidos, não só nos maus-tratos físicos, mas nos abusos sexuais também, porque temos muitos casos aqui. A questão de saúde me afeta, principalmente porque tudo é urgente.
Por exemplo: tivemos um caso essa semana de uma senhora que veio do Pronto-Socorro de Cuiabá com o filho de oito anos. O hospital a encaminhou para procurar a Vara da Infância ou Ministério Público, porque a criança estava com uma perfuração de córnea. Então são situações que realmente te deixam com o estado emocional um pouco abalado. Você fica sensível porque, por pouco, um menino de oito anos não perdeu a visão – e uma criança dessa idade perder a visão, eu tenho para mim como algo muito grave. Isso tudo porque o atendimento no Pronto-Socorro não está sendo ofertado para esse tipo de lesão.
Temos muitos casos de crianças com tumor no cérebro, crianças cardiopatas... Às vezes os médicos dos hospitais de outros núcleos dizem que a criança têm que ser operada em 48 horas. Então é um dia-a-dia bastante traumático e difícil. E quando não conseguimos um atendimento por aqui, isso causa uma tristeza, é um luto pra gente. Eu, por exemplo, conheço todas as crianças pelo nome, porque tenho uma memória muito boa e sei de cada criança e em qual processo está. E quando as meninas [assessoras] dizem que alguém faleceu, aquilo para mim é bastante dolorido. Porque o ideal seria que todas as crianças tivessem acesso, que não sofressem nenhum tipo violação. Esse seria o mundo ideal, mas não é a nossa realidade.
MidiaNews – A senhora falou de abusos sexuais. Isso tem se tornado mais comum ou as pessoas estão mais conscientes para denunciar?
Gleide Bispo Santos – Eu acredito que as pessoas estão mais conscientes em razão de ter sido aberto esse assunto. E hoje nós temos as crianças mais conscientes sobre seus direitos – elas denunciam mais e os casos acabam acontecendo no nosso dia a dia.
MidiaNews – E como chegam essas crianças aqui nas audiências?
Gleide Bispo Santos – Na verdade, como a gente não faz muito a parte da investigação criminal, isso é feito pelo juiz da 14ª Vara. Nós aqui tratamos as crianças do sentido de acolhimento, de minimizar o problema e encaminhar para uma terapia, por exemplo.
Então o nosso trabalho é mais focado na criança e no adolescente em si, do que no agressor. Trabalhamos com o bem estar delas, para devolver a tranquilidade, afastá-la do risco. Essa é nossa primeira função.
MidiaNews – O agressor também participa das audiências?
Gleide Bispo Santos – Participa. Às vezes ele vem para ser ouvido e dar sua versão porque ninguém pode partir do pressuposto do que é realidade e do que é verdadeiro. Ele tem seu direito de defesa. Nas ações de destituição do poder familiar, ele será ouvido de uma maneira imparcial. Mas o foco sempre é a criança.
MidiaNews – As crianças chegam aqui muito traumatizadas então?
Gleide Bispo Santos – Nós temos casos verídicos. E temos também, infelizmente, muito mau uso do direito. Hoje me preocupa muito uma prática que estamos vivenciando aqui que são: os casais que se separam e, em um processo consciente (não estou julgando ninguém), ou até mesmo inconsciente, atribuem um ao outro o abuso sexual aos filhos. Isso se tornou comum e é extremamente preocupante.
"A nossa vara tem uma carga emocional muito grande em todos os sentidos. Não só nos maus-tratos físicos [contra crianças], mas nos abusos sexuais também".
À frente da vara há cinco anos, a magistrada diz estar muito preocupada com a quantidade de falsas acusações de abusos sexuais feitas contra pais, principalmente após a separação do casal.
Segundo ela, as falsas acusações têm crescido significativamente, sempre no intuito de tentar influenciar o magistrado a deixar a guarda do filho com aquele que denuncia o cônjuge.
Em entrevista ao MidiaNews nesta semana, a magistrada ainda criticou a falta de investimento do Governo do Estado nas crianças e falta de postura dos pais com os filhos.
“O Estado deveria priorizar essa questão das crianças. Mas já que não há, é dever dos pais ensinar, dar cidadania a elas para que sejam um ser humano pleno e completo. Se você não proporcionar essa educação, o Estado não vai ter estrutura o suficiente para reparar o dano mais tarde. É o que estamos observando hoje, com os presídios superlotados. É uma série de problemas”, argumentou.
Leia os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Qual a estrutura da Vara da Infância e da Juventude? É suficiente para a demanda?
Gleide Bispo Santos – Nós temos uma demanda grande. Os nossos processos têm uma particularidade diferente porque exigem trâmites rápidos. As crianças aqui da Vara são crianças em situação de risco. Isso significa que temos vítimas de abandono, omissão, maus-tratos, abusos sexuais, crianças que necessitam de atendimento médico ou precisam de escola – todas elas configuram situação de risco. Então há a necessidade de que o atendimento seja rápido.
Nós não temos muitos processos. Temos uma média de 1.800 aproximadamente. Conseguimos reduzir significativamente porque são processos com a tramitação bem rápida. Assim todo dia entra um novo.
A estrutura já esteve pior. Hoje nós temos uma estrutura boa. Tivemos uma época com problemas com a equipe técnica, porque a Vara precisa do apoio da equipe multidisciplinar: psicólogo, assistente social... E houve uma época em que tivemos uma defasagem, mas hoje em dia a estrutura é muito boa.
MidiaNews – Uma das críticas feitas à Justiça brasileira é sobre a sua lentidão. A Justiça também é lenta para as crianças?
Gleide Bispo Santos – A Vara da Infância da Vara e da Juventude é um pouco diferenciada das outras. É uma Vara especializada só em criança em situação de risco. Então tudo aqui precisa de atendimento imediato, pelo menos da liminar [decisão provisória]. Durante o dia, apreciamos diversas, justamente para tirar a criança daquela situação de risco dentro de um tempo razoável.
Quando entrei aqui, nós tínhamos algumas demandas que eram protocoladas individualmente. Mas eu percebi que elas tinham uma abrangência de outras crianças. Por exemplo: tínhamos, no primeiro balanço, em trâmite naquela época, 60% dos casos relacionados à saúde. Então eram crianças em busca de UTI, atendimento médico especializado, exames, medicação, cirurgias... Para mim, esse número era excessivo. Então nós montamos um grupo para estudar a área da saúde da criança e do adolescente em Cuiabá, para sabermos como estava. Fizemos todo um diagnóstico da situação da saúde nos hospitais públicos e, a partir daí, estamos trabalhando para solucionar o problema como um todo. Lógico que tudo isso paralelamente aos trabalhos individuais. Isso tudo diminuiu nossa demanda na UTI em praticamente 90%.
MidiaNews – A senhora atua em ações de destituição familiar, que é quando os pais perdem a guarda dos filhos. Esse tipo de ação tem se tornado mais comum nos últimos anos?
Gleide Bispo Santos – Sem dúvida. Nós temos um problema muito sério de drogadição. Hoje os pais acabam colocando a criança em situação de risco, em razão do uso de substâncias entorpecentes. Isso é o que mais nós vemos por aqui. Acho que 80% dos processos de suspensão ou destituição [do poder familiar] têm a ver com o uso de drogas.
Mas isso não significa que o pai ou a mãe não tenham amor pela criança. Às vezes até me corta o coração quando vejo que o pai e a mãe são pessoas amorosas, mas não estão em condições de cuidar em razão do uso da substância. Então, nesse caso, o Ministério Público entra com uma ação de suspensão do poder familiar, porque nós fazemos de tudo no sentido de tentar resgatar e restaurar esse ambiente familiar. Nós oferecemos tratamento, internação... E somente se não houver mesmo a possibilidade, é que nós colocamos as crianças para a adoção. Mas antes disso ainda fazemos toda a reinserção da família extensa – avós, bisavós, tios.
A droga está separando pais e filhos, sem dúvida nenhuma. Isso aumenta a cada dia. É um volume assustador de crianças que têm os pais drogados e também um número assustador de crianças e adolescentes que fazem o uso de entorpecentes.
Podemos dizer que não há um investimento maciço do poder público nas crianças de 0 a 12 anos, que é um público que você tem condições de trabalhar e evitar que ele consuma drogas, que vá para a criminalidade e que ocorra essa desestruturação na família.
MidiaNews – Falando ainda da perda do poder familiar. A senhora lida também com pais agressores. Durante uma audiência, qual a desculpa mais comum destes pais que agridem crianças?
Gleide Bispo Santos – A humanidade vem evoluindo. A partir da Segunda Guerra Mundial, nós passamos a ter outra visão em relação aos direitos humanos. Criança e adolescente sempre foram vítimas de agressões ou violações de direitos. Agora nós estamos num processo em que isso não é mais permitido. E acredito que nós temos que avançar mais.
Então o pai e a mãe têm que educar o filho, impor limites, mas de uma maneira que ele seja respeitado sem a violência. Tem que haver o companheirismo, a conversa... É todo um processo que tem que estar longe da violência física. Nenhum ser humano pode espancar ou bater no outro e isso acontece muito ainda. A justificativa que dão para isso é: “Meu pai me bateu, eu cresci assim e sou um bom cidadão”. Isso é uma visão equivocada que nós precisamos mudar.
Eu fiz duas audiência sobre violência física hoje [quarta-feira]. Uma delas bastante traumática, em que um menino havia furtado R$ 50 da mãe e, como castigo, ela queimou a mão dele no fogão. A criança teve uma queimadura de segundo grau.
Ainda nos deparamos com cenas dessa natureza, que são chocantes. Mas penso que, a cada dia que passa, temos um avanço e estamos melhorando.
O ideal seria que tivéssemos um aparato melhor na rede pública para fazermos o atendimento nestes casos. Isso é uma coisa que ainda não temos para atender essa demanda, que seria uma equipe de psicólogo, assistente social, que exercesse essa função de restaurar e fazer com que as pessoas mudem sua postura. Nós aqui fazemos o possível e o impossível no sentido de conscientizar aqueles pais de que o caminho não é esse.
"A nossa Vara tem uma carga emocional muito grande em todos os sentidos, não só nos maus-tratos físicos, mas nos abusos sexuais também"
MidiaNews – A senhora é mãe. Essas histórias de maus-tratos e violência contra crianças a afetam de alguma maneira?
Gleide Bispo Santos – Com certeza, sim. A nossa Vara tem uma carga emocional muito grande em todos os sentidos, não só nos maus-tratos físicos, mas nos abusos sexuais também, porque temos muitos casos aqui. A questão de saúde me afeta, principalmente porque tudo é urgente.
Por exemplo: tivemos um caso essa semana de uma senhora que veio do Pronto-Socorro de Cuiabá com o filho de oito anos. O hospital a encaminhou para procurar a Vara da Infância ou Ministério Público, porque a criança estava com uma perfuração de córnea. Então são situações que realmente te deixam com o estado emocional um pouco abalado. Você fica sensível porque, por pouco, um menino de oito anos não perdeu a visão – e uma criança dessa idade perder a visão, eu tenho para mim como algo muito grave. Isso tudo porque o atendimento no Pronto-Socorro não está sendo ofertado para esse tipo de lesão.
Temos muitos casos de crianças com tumor no cérebro, crianças cardiopatas... Às vezes os médicos dos hospitais de outros núcleos dizem que a criança têm que ser operada em 48 horas. Então é um dia-a-dia bastante traumático e difícil. E quando não conseguimos um atendimento por aqui, isso causa uma tristeza, é um luto pra gente. Eu, por exemplo, conheço todas as crianças pelo nome, porque tenho uma memória muito boa e sei de cada criança e em qual processo está. E quando as meninas [assessoras] dizem que alguém faleceu, aquilo para mim é bastante dolorido. Porque o ideal seria que todas as crianças tivessem acesso, que não sofressem nenhum tipo violação. Esse seria o mundo ideal, mas não é a nossa realidade.
MidiaNews – A senhora falou de abusos sexuais. Isso tem se tornado mais comum ou as pessoas estão mais conscientes para denunciar?
Gleide Bispo Santos – Eu acredito que as pessoas estão mais conscientes em razão de ter sido aberto esse assunto. E hoje nós temos as crianças mais conscientes sobre seus direitos – elas denunciam mais e os casos acabam acontecendo no nosso dia a dia.
MidiaNews – E como chegam essas crianças aqui nas audiências?
Gleide Bispo Santos – Na verdade, como a gente não faz muito a parte da investigação criminal, isso é feito pelo juiz da 14ª Vara. Nós aqui tratamos as crianças do sentido de acolhimento, de minimizar o problema e encaminhar para uma terapia, por exemplo.
Então o nosso trabalho é mais focado na criança e no adolescente em si, do que no agressor. Trabalhamos com o bem estar delas, para devolver a tranquilidade, afastá-la do risco. Essa é nossa primeira função.
MidiaNews – O agressor também participa das audiências?
Gleide Bispo Santos – Participa. Às vezes ele vem para ser ouvido e dar sua versão porque ninguém pode partir do pressuposto do que é realidade e do que é verdadeiro. Ele tem seu direito de defesa. Nas ações de destituição do poder familiar, ele será ouvido de uma maneira imparcial. Mas o foco sempre é a criança.
MidiaNews – As crianças chegam aqui muito traumatizadas então?
Gleide Bispo Santos – Nós temos casos verídicos. E temos também, infelizmente, muito mau uso do direito. Hoje me preocupa muito uma prática que estamos vivenciando aqui que são: os casais que se separam e, em um processo consciente (não estou julgando ninguém), ou até mesmo inconsciente, atribuem um ao outro o abuso sexual aos filhos. Isso se tornou comum e é extremamente preocupante.
Essa é a questão da alienação parental. O alienador normalmente quer a criança só para si. Ele quer afastar, ou por vingança, ou por alguma questão mal resolvida no casamento e etc. Então tem se utilizado muito essa via, e é uma via muito difícil, porque, como você lida com criança, você não tem a exata dimensão da realidade. Não sabemos se é verdade ou se é mentira. Às vezes tem que se valer de perícia técnica na grande maioria dos casos em que há essas acusações, onde o abuso não ficou caracterizado.
Porque quando o abuso é caracterizado, onde o exame constata e a criança é firme, e você vê que aquilo realmente aconteceu, é mais fácil de aplicar o direto. Mas quando você transita em uma área da dúvida, é bem difícil.
Às vezes a pessoa é um terrível marido, mas um pai excelente, que na realidade também está sendo alienado. É quando está sendo descaracterizada a figura materna ou paterna, como se fosse um jogo de disputa entre os casais ou vingança. A pessoa pensa que afastando o filho do pai ou da mãe vai estar se vingando, quando na realidade o prejuízo emocional e psicológico nas crianças é muito grande. Elas são as mais prejudicadas.
MidiaNews - Quando acontece de a denúncia se mostrar falsa, fica difícil apagar a mancha, não é mesmo?
Gleide Bispo Santos - Sim, muito difícil. No primeiro momento, quando a denúncia chega pra gente, na dúvida, temos que tomar a providencia de afastá-lo. Afastar o pai, afastar a mãe do convívio da criança até que tenhamos a condição de chegar a uma convicção. E esse processo demora um pouco. O juízo precisa de um suporte técnico para respaldá-lo. E isso leva tempo. E nesse processo de alienação parental, vai se se descontruindo toda a figura paterna ou materna. E depois, para se fazer esse resgate, é bastante difícil.
Uma das coisas que mais me preocupam aqui é esse aumento significativo. E não é só nessa Vara não. Esse tipo de acusação vem sendo feita no Brasil inteiro. Porque às vezes você pode incutir uma “verdade” na cabeça de uma criança de que ela foi violentada e ela passa a acreditar.
MidiaNews – Já aconteceu algum caso em que a mãe ou o pai reconheceu, na audiência, que mentiu?
Gleide Bispo Santos – Já sim. Há uns 15 dias tive um caso de uma atribuição de abuso ao pai em que a genitora, sentada aqui, disse a ele: “Peço perdão por tudo que eu te fiz de errado, por tudo que te causei”. Foi até emocionante porque ela reconheceu e pediu perdão por toda atribuição que não era verdadeira, no sentido de que ele teria abusado da filha. É difícil, mas acontece quando a pessoa consegue entender que aquilo não houve e que foi tudo uma fantasia.
MidiaNews – A senhora também atua muito na adoção de crianças com alguma deficiência. E nós sabemos que grande parte foi abandonada pelos pais. Como lidar com esse sentimento de rejeição nas crianças?
Gleide Bispo Santos – Às vezes os pais não têm condições financeiras de criar uma criança neuropata, ou que tem alguma deficiência física. E eles acabam se vendo obrigados a entregá-la para o Estado.
Hoje eu tenho, no Lar da Criança de Cuiabá, 19 crianças que são deficientes – todas abandonadas ou retiradas dos seus lares. Há um autista de 19 e outro de 21 anos. O de 21 foi abandonado. Já o de 19 estava em cárcere privado e o MPE entrou com uma ação para retirar o poder familiar. Ele está conosco até hoje. Como ele é autista e a mãe tinha que trabalhar sem ter com quem deixar, então ela o amarrava em casa.
As outras crianças, na grande maioria, são neuropatas. Ou em razão do uso de entorpecente pelos pais ou em razão de complicações no parto.
Então nós cuidamos delas em todos os sentidos. Cuidamos da alimentação, da saúde, da parte da "home care", se está indo ou não para escola. Cuidamos como se fossem nossos filhos mesmo. Já que eles não tiveram esse cuidado pelos pais, o Estado tem que proporcionar isso a eles. Hoje eles estão no “Lar da Criança” e estão muito bem atendidos.
MidiaNews – Ainda em relação à adoção. São comuns os casos de pais que adotam e depois desistem e devolvem a criança?
Gleide Bispo Santos – A adoção é todo um processo. Os casais, primeiramente, fazem um curso preparatório, onde é trabalhada a parte jurídica, psicológica para conhecer bem o processo de adoção. Depois fazem a inscrição, se habilitando. Em seguida, há a investigação social e depois é dado um parecer se eles estão aptos ou não para adotar.
Às vezes, por falta de preparo do casal ou do pretendente, nós temos a devolução, sim. Nesses cinco anos em que eu estou aqui, tive cinco casos de devoluções. Todas elas traumáticas para a criança.
Eu tive uma vez uma devolução de três meninas, irmãs, em que o casal, de forma precipitada, quis ficar com as três. Porque normalmente nós tentamos manter o grupo de irmãos juntos. E nesse caso eles quiseram as três meninas, se encantaram. Depois de quatro meses, acharam que a carga estava muito pesada por uma questão simples de coisas que são feitas no dia a dia: levantar cedo, levar e buscar na escola.
No dia em que eu falei com esse casal, perguntei ao marido: “São muitas criança, o senhor vai dar conta?”. E ele disse que sim. Mas acabaram devolvendo. Depois encontramos outra saída, onde foi feito um trabalho em que cada uma delas ficou com um membro de uma família.
Nós também tivemos outro caso de uma menina devolvida duas vezes. Depois tivemos um casal homoafetivo feminino que devolveu um grupo de irmãos. Nesse caso o processo de adoção já estava em estágio de conclusão. Quando estávamos prontos para dar a sentença, elas devolveram.
Às vezes o que falta é mais cuidado na hora de preparar ou de identificar a pessoa. Tem gente que às vezes busca adoção por estar passando por um momento de dificuldade. Por exemplo: tive recentemente o caso de um garoto de 4 anos que foi devolvido. E foi dolorido porque a criança já estava chamando o casal de pai e mãe. Então, depois você vai ter que dizer para ele que aquele pai e aquela mãe que ele reconhece como tal não vão mais levá-lo para casa. Isso é muito difícil e cruel. Às vezes nos sentimos muitos fragilizados com essas situações. Mas por outro lado é bom porque acaba sendo um desafio, porque aí eu fico pensando: “Tenho que arrumar um lar para esse menino para tentar amenizar o trauma”. E sempre a gente acaba conseguindo dar um final feliz.
MidiaNews – Qual o maior risco que as crianças correm em Cuiabá? São as drogas, a violência?
Gleide Bispo Santos – Eu sou de uma época em que as nossas mães não trabalhavam. A minha mãe era costureira. Ela trabalhava em casa e às vezes fazia salgados para vender, mas ela estava sempre dentro de casa cuidando da prole.
Quando nós, mulheres, ganhamos uma independência maior, fomos conquistando nosso espaço, não tivemos mais com quem deixar nossos filhos. Então hoje, quando as mães saem para o trabalho, elas não têm muita opção com quem deixar os filhos, porque o Estado ainda não acolheu e não proporciona. Às vezes dá uma escola de meio período e o restante a criança tem que ficar na rua. E a rua hoje é um problema. Antigamente ser criado na rua não era um problema. Muitos dos nossos meninos brincavam na rua, soltando pipa ou brincando de bolita. E hoje em dia a rua é um problema.
Então acredito que, na medida em que a mãe e o pai não têm com quem deixar os filhos, a rua se torna um problema e eles acabam sendo acolhidos pela criminalidade. Esse é o grande problema. O pai e a mãe têm que ser cuidadosos – saber onde o filho está, com quem ele está, para onde foi. Tem que fazer um monitoramento, mesmo de longe. Eles não podem deixar de ser pai e mãe nem por um momento. Esse acompanhamento é uma sobrecarga, mas é necessário.
O Estado deveria priorizar essa questão das crianças. Mas já que não há, é dever dos pais ensinar, dar cidadania a elas para que sejam um ser humano pleno e completo. Se você não proporcionar essa educação, o Estado não vai ter estrutura o suficiente para reparar o dano mais tarde. É o que estamos observando hoje, com os presídios superlotados. É uma série de problemas.
Então eu acho que a nossa grande saída seria essa: investimento maciço na nossa população infanto-juvenil.
MidiaNews – O que a senhora vê de mais positivo nesses cincos anos à frente da Vara?
Isso foi uma conquista muito grande para a cidade e para o Estado. O governador Pedro Taques ajudou muito no final e está ajudando atualmente com R$ 1,5 milhão só para a unidade pediátrica.
Outro grande problema que nós tínhamos era o Complexo do Pomeri. Vivíamos um problema seriíssimo de superlotação, com muitas mortes. Eu cheguei até a interditar o Pomeri totalmente. A primeira interdição foi em cima de uma ação civil pública que o MPE propôs, porque não havia mais condições.
Era uma unidade de 40 anos, que tinha partes totalmente insalubres, com violações de direitos humanos, esgoto a céu aberto. Os adolescentes dormiam no cimento, era muito feio.
E depois mandei derrubar [um setor]. No primeiro momento, o Tribunal de Justiça revogou, mas no mérito do agravo, ele manteve a decisão de derrubada. Com isso, houve uma redução drástica na internação de adolescentes. Se antes nós tínhamos uma média de 200 adolescentes internados, hoje nós temos no máximo 50.
As pessoas podem até dizer que os adolescentes não estão sendo internados e estão nas ruas. Mas é melhor você ter um adolescente que cometeu um ato infracional fora do que um deles ficar em uma comunidade com um ambiente insalubre, em um ambiente que não oferece estrutura para ele sair melhor.
As mortes também cessaram. Antes era uma rebelião por semana, com reféns.E hoje não há mais esses danos. A maior conquista então, pra mim, é que paramos de perder adolescentes desse jeito. É possível recuperar a maioria deles, falta apenas investimento do poder público.
Original disponível em: http://midianews.com.br/entrevista-da-semana/falsas-denuncias-de-estupro-sao-cada-vez-mais-comuns-diz-juiza/288295v
Reproduzido por: Lucas H.
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