quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Brasileiros se frustram por não poderem adotar crianças sírias (Reprodução)

30/10/2017

RIO, BOSTON E NOVA YORK - De um lado do mundo, estão as crianças que sofrem todos os dias com a brutalidade de uma guerra devastadora, muitas sem jamais terem conhecido o que é a vida longe dos confrontos. De outro, famílias com espaço em casa e no coração para acolher um novo integrante e minimizar seus traumas. A vontade de ajudar um país em crise e trazer uma nova alegria para casa leva brasileiros, sensibilizados com os relatos dramáticos que chegam da Síria, a procurar autoridades com a intenção de adotar uma das vítimas dos conflitos. Tocadas pelas condições altamente precárias em que vivem os pequenos - que, não raro, perdem seus pais para a violência -, as famílias do Brasil buscam respostas sobre como iniciar o processo. Em geral, depois de encontrarem dificuldades para conseguir informações, deparam-se com uma decepcionante negativa. Além da adoção de crianças em situação de guerra dividir especialistas pelo mundo, a ausência da Síria em tratados regulatórios inviabiliza o trâmite.

Neste ano, ao menos quatro famílias procuraram a Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional do Rio (Cejai-RJ) com este desejo, e a procura também foi registrada no núcleo paulista responsável pelas adoções estrangeiras. Segundo autoridades, é provável que o movimento tenha acontecido em todo o país, motivado pela comoção em torno dos relatos da guerra síria.
- Toda vez que sai uma notícia impactante, as pessoas se mobilizam e ligam querendo aju
dar. Na época do terremoto do Haiti, aconteceu a mesma coisa - relata Ludmilla Azevedo, secretária executiva da Cejai-RJ.

A separação de famílias acontece por diversos caminhos na Síria. Muitos pais deixam o país para procurar trabalho em nações vizinhas, como Líbano, Jordânia e Turquia. Outros partem nas perigosas jornadas à Europa, na esperança de, mais tarde, receber os filhos lá. Segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur), mais de 70 mil famílias de refugiados sírios vivem sem os seus chefes, e milhares de crianças estão longe de ambos os responsáveis. O impacto aparece em termos econômicos e emocionais: muitas sofrem de traumas ou doenças. Enquanto isso, há 8,4 milhões delas que precisam de ajuda humanitária, após seis anos de conflito.

'DÁ UMA SENSAÇÃO DE IMPOTÊNCIA'

Diferentemente de muitas mulheres na fila da adoção, há 12 anos Patrícia Mello realizou o sonho de ser mãe quando deu à luz seus trigêmeos. Mesmo com casa cheia, desde o ano passado a jornalista se inquieta com a vontade de abrigar uma criança refugiada. O horror no país árabe a sensibilizou. Com o consentimento dos filhos Eduardo, Francisco e Ricardo, buscou um jeito de adotar.
- Dizem que sou maluca, mas não dá para deixar essas crianças no meio da guerra. Não faço exigências de perfil. Liguei para as embaixadas e me foi dito que não há legislação para a adoção, mas as crianças estão morrendo - diz.


'Com tantas crianças precisando e muitas famílias querendo adotar, não conseguimos fazer nada'
- Paula Bittencourt  

Signatário da Convenção de Haia, que aborda a proteção de crianças e dá diretrizes sobre a adoção internacional, o Brasil só pode celebrar o processo com países que também tenham aderido ao tratado, o que não é o caso da Síria. Hoje, é inviável que um brasileiro, residente no Brasil, adote legalmente uma criança do país em conflito. De Belo Horizonte, a professora Paula Bittencourt também viu reacender sua vontade antiga de adotar frente ao drama sírio. Imaginando como seria ter um filho de um país tão distante geográfica e culturalmente, acredita que a adaptação não seria tão difícil assim.

- Eu via fotos das crianças machucadas, sujas e com cartazes pedindo para que as pessoas as procurassem. Fui a um juizado, mas ninguém sabia ajudar. Dá uma sensação de impotência. Com tantas crianças precisando e muitas famílias querendo adotar, não conseguimos fazer nada - conta. - Acho que a única dificuldade seria, a princípio, a língua para elas se adaptarem e entrarem na escola. Mas seria uma vida melhor.

Em 2016, criança síria participou de campanha para pedir ajuda; cartaz com personagem do Pokémon Go, fazendo referência a jogo interativo, diz: Venha me salvar - REPRODUÇÃO/TWITTER

Os especialistas, no entanto, alertam que a integração de uma criança à nova família pode ser um processo longo e emocionalmente complexo.

- Muitas crianças podem ter traumas ou ter testemunhado atos de brutalidade. Elas cresceram em cultura e língua diferentes, e podem ou não ser religiosas. As famílias devem fazer um autoexame: seriam capazes, por exemplo, de trazer crianças feridas no conflito ou com necessidades especiais? É importante ser sincero consigo mesmo - explica Paulo Barrozo, especialista da Universidade de Boston, nos EUA.

Ainda que houvesse um tratado possibilitando o processo com o Brasil, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) explica que tirar uma criança de uma zona de guerra é especialmente complexo. Antes de tudo, deve-se ter certeza de que não há outros parentes disponíveis ou que seus pais não podem reaparecer em breve.

- Sem a Convenção de Haia, nem sempre há processos de verificação e proteção. No caso da Síria, conseguir informações confiáveis e precisas sobre a situação individual das crianças é altamente desafiador - diz Kerry Neal, especialista do Unicef.

Na contramão, alguns especialistas criticam o excesso de burocracia da Convenção de Haia, denunciando a invisibilidade destas pequenas vítimas. Para Barrozo, a prevenção a riscos de abusos ou maus tratos é necessária, mas não deve fechar as portas à adoção internacional.

- A situação das crianças sem pais é a mais grave crise humanitária do século. A Convenção de Haia tenta controlar seu destino como se faz com o contrabando, esquecendo seus direitos. Em relação à Síria, o Brasil, para ajudar, teria que pedir ao governo sírio que liberasse a adoção de crianças, já que os dois são países irmãos, pela imigração histórica de sírios ao país.


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