Com o amparo da Justiça, se tornou cada vez mais comum a
formação de famílias que contrapõem o modelo tradicional composto por pai e mãe
interessadas em adotar crianças. Esse cenário foi impulsionado após a resolução
175 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que garante a oficialização de
uniões entre pessoas do mesmo sexo. No Pará, além do casamento, vem crescendo o
número de pedidos de adoção por parte deste grupo. Somente em 2017, foram seis
pedidos junto à 1ª Vara da Infância e Juventude, o dobro do ano anterior.
Segundo o magistrado João Augusto Figueiredo de Oliveira Jr,
não há critérios para uma pessoa se habilitar a adotar uma criança ou
adolescente. “Qualquer pessoa pode adotar, exceto as linhas ascendentes avô e
avó e pessoas com diferença de idade inferior a 16 anos”, explica. “Não tem
problema se é uma pessoa solteira ou se é um casal heteroafetivo ou
homoafetivo. Qualquer tipo de família pode acolher uma criança”, esclarece.
Destinos Cruzados é uma série de reportagens do G1 que vai
mostrar o cenário da adoção no Pará, as expectativas de futuros pais, a
realidade das crianças dos abrigos e histórias de vidas que se uniram no
processo adotivo.
Primeira reportagem da série mostra que a maior parte das
crianças que aguarda por adoção está fora do perfil procurado por futuros pais.
Segunda reportagem fala da realidade das crianças que vivem
em abrigos vítimas de maus-tratos, abandono e violência sexual.
Mulher trans, solteira e mãe
Mas nem tudo é assim tão simples. Bárbara Pastana, mulher
trans, conta que estava há mais de dez anos aguardando pela oportunidade de
adotar uma criança. Uma longa espera no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e uma
série de argumentos institucionais a impediam de realizar este sonho, o que
acabou mudando com o passar do tempo, resultado de algumas decisões da Justiça
Brasileira. Uma delas foi o voto do relator do STJ, ministro Luis Felipe
Salomão, ao levar em consideração o desejo de uma criança que queria ser
adotada por um casal homosexual.
“Comecei essa busca no começo dos anos 2000, quando me
cadastrei para adotar. O juiz tirou logo minhas esperanças e disse que por eu
ser solteira, não conseguiria adotar. Depois, o motivo era eu não ter renda fixa
comprovada. Me tornei assessora parlamentar e mesmo assim não conseguia. Então
percebi que o problema era o fato de eu não estar nos padrões do que se espera
de uma mãe: sou mulher trans e solteira”, conta.
Já em 2014, o destino trouxe até Bárbara um bebê
recém-nascido. A mãe biológica não poderia ficar com ele e optou por entregá-lo
à servidora, que logo procurou a Justiça para oficializar a adoção do pequeno
Pietro, hoje com 4 anos. “Foi uma adoção espontânea. O advogado solicitou a
guarda para mim e a mãe biológica concordou. O juiz estabeleceu que a mãe teria
um ano para decidir se queria voltar atrás da decisão ou não”, explica.
Na época da adoção, Bárbara não tinha documentos com o nome
social feminino, e precisou registrar seu filho como sendo seu pai adotivo – o
que foi alterado tempos depois. “Só assim consegui meu filho tão desejado,
senão ficaria um tempo indeterminado esperando para realizar o sonho de ser mãe
do Gabriel”.
Para Bárbara, na última década, muitos avanços na equidade
de direitos entre hétero e homossexuais ocorreram, mas o preconceito ainda
dificulta a vida das pessoas LGBTs. “Enfrento preconceito na rua, no ônibus,
mas no convívio escolar, familiar, eu sei como conduzir”, garante Bárbara,
militante dos direitos humanos, que se dedica a combater o preconceito e
garantir uma vida tranquila a seu filho. “Hoje na escola é super bacana.
Desenvolvo um trabalho de palestra para conscientizar as pessoas sobre a
diversidade. As professoras viraram parceiras”, alegra-se.
“Eu acredito que precisamos reconstruir esse modelo de
sociedade que tem certos padrões como corretos sem considerar a diversidade”,
defende Bárbara, que integra o Fórum de Pessoas Trans do Pará e, também, é
coordenadora de políticas para pessoas trans do Movimento de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTT) do Pará.
Pelo direito à família
O casal João Carlos Fonseca Martins e George Antônio do
Nascimento Souza, que mora no bairro do Marco, em Belém, ficou três anos na
lista de espera, a contar desde o dia em que deram entrada no processo de
adoção na Infância e Juventude do Poder Judiciário. Mas a espera valeu a pena,
o pequeno Gabriel, que hoje tem um ano e quatro meses, chegou na vida deles e
mudou tudo para melhor, garantem os pais.
“Fomos o primeiro casal homoafetivo a oficializar a união
civil em Belém. O Supremo (Tribunal Federal) aprovou num dia e no dia seguinte
nós estávamos na porta do cartório para casar. Nós também fomos o primeiro
casal homoafetivo a adotar uma criança no abrigo Euclides Coelho. Temos um nova
vida, muito melhor...”, conta João.
João Carlos é servidor público e George Antônio é professor
de Educação Física. Eles vivem juntos há 20 anos e são casados desde 2013,
quando saiu a súmula do STF reconhecendo casamentos civis de casais do mesmo
sexo. Foram eles, inclusive, o primeiro casal homoafetivo que oficializou a
união civil em Belém. O desejo da paternidade surgiu pouco tempo depois do
matrimônio de forma espontânea e junto com o amadurecimento da relação,
relembra João.
“O desejo inicial foi meu e, aos poucos, o George começou a
abraçar a ideia. Nós procuramos, então, a Vara da Infância e da Juventude para
nos informar sobre o procedimento que deveríamos adotar para dar esse passo”,
explica. Ansiosos, os papais fizeram a habilitação para adentrar no processo e
o tradicional curso preparatório proposto pelo Judiciário. Na antevéspera do
Círio de Nazaré de 2016 eles receberam uma ligação. “A caminho do telefone eu
senti que aquela ligação era uma notícia sobre o meu filho”, relata João.
“Quando eu olhei o Gabriel eu disse imediatamente: é meu
filho”, conta João.
João e George finalmente conseguiram a guarda provisória do
Gabriel. A criança, na época com dois meses de idade, saiu do abrigo com
coqueluche, doença infectocontagiosa caracterizada por fortes ataques de
tosses. Além deste susto, logo os pais de primeira viagem tiveram outro:
entregar o neném dois dias depois por conta de uma orientação jurídica, que só
foi resolvida após a intervenção de uma advogada.
"Não entendemos muito bem a confusão jurídica, mas, no
mesmo dia, a nossa advogada foi ao Ministério Público do Pará (MPPA) intervir e
então o juiz concedeu a liminar de liberação do Gabriel. Mas ter que devolver o
Gabriel doente ao abrigo foi terrível. Foi um sentimento de perda, porque nosso
amor por ele foi à primeira vista. Não tem diferença de ser um filho adotado ou
biológico”, avalia.
Gabriel era filho de dois jovens que resolveram entregá-lo
voluntariamente à Justiça. A família extensiva (pai e mãe dos jovens) foi
chamada e também abriu mão da guarda da criança. O juiz realizou, então, a
destituição do poder familiar. “Recordo que foi angustiante para nós na época,
pois os pais biológicos foram chamados para se manifestar e ficamos com medo de
que eles desistissem de entregar o Gabriel ou que algum tipo de imparcialidade
interferisse para que a criança não ficasse conosco por sermos um casal
homoafetivo”, diz João.
Os direitos sociais
Gabriel foi registrado como dependente do casal em todos os
benefícios sociais, entre eles, plano de saúde, da mesma forma que é realizada
com um casal heteroafetivo. “Sou uma pessoa muito feliz por estar vivendo esse
momento com o meu filho”, avalia Jorge. Ele diz que não consegue entender como
o direito de adotar foi negado durante tantos anos aos homossexuais. “Também
nunca passou pela minha cabeça ser pioneiro nisso, haja vista que a adoção por
casais homoafetivos é, de certa forma, uma coisa nova no país”, avalia.
O casal já pensa em adotar mais um filho. “Uma criança é
sempre um presente. Hoje, arrependimento eu só tenho de não ter adotado antes.
O Gabriel chegou e compartilhamos de tudo da nossa vida com ele. Nossas
viagens, nosso lazer… Inclusive eu trabalho perto de casa e faço questão de vir
almoçar todos os dias com o meu filho, para compensar, de alguma forma, os
momentos de ausência”, diz João.
O servidor público também planeja contar a verdade sobre a
história de vida e a forma como o pequenino chegou até eles. “Ele vai saber que
foi adotado por nós e também vai ser preparado para enfrentar os preconceitos
que vai sofrer por ser filho de dois homens. Isso tudo dentro do tempo certo”,
conclui o pai.
Original disponível em: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/destinos-cruzados-casal-homoafetivo-e-mulher-trans-vencem-o-preconceito-e-a-barreira-juridica-para-adotar-criancas-no-pa.ghtml
Reproduzido por: Lucas H.
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