13/01/2018
“Eu sempre pedia ao Papai do Céu para que ele me desse uma
filha. Deus entendeu que eu merecia e me presenteou com uma linda princesa.
Desde então o meu reino encantado ficou mais alegre”. Essa foi a forma lúdica
encontrada pela arquiteta Milena Baia de Melo para contar à filha como foi que
ela chegou ao seio de sua família. Camile, que atualmente tem 9 anos de idade,
já sabe que não chegou à vida da sua mãe por meio de uma gestação biológica e
sim por uma adesão voluntária. “Ela me escolheu, ela me quis”, diz a garota que
foi adotada ainda neném.
Foram noites e noites contando histórias de princesa à
Camile para que aos poucos ela fosse entendendo. Segundo Milena, esse período
foi como uma gestação. A cada noite, a cada história lida, ela experimentava um
sentimento chamado amor maternal. “A adoção é uma troca. Ganhamos tanto a minha
filha quanto eu. Assim como em uma gravidez, em que há a expectativa da mãe em
ter em seus braços pela primeira vez aquele ser e chamá-lo de filho, houve a
minha expectativa em registrar a Camile como a minha filha”, diz Milena.
Destinos Cruzados é uma série de reportagens do G1 que vai
mostrar o cenário da adoção no Pará, as expectativas de futuros pais, a
realidade das crianças dos abrigos e histórias de vidas que se uniram no
processo adotivo.
Primeira reportagem da série mostra que a maior parte das
crianças que aguarda por adoção está fora do perfil procurado por futuros pais.
Segunda reportagem fala da realidade das crianças que vivem
em abrigos vítimas de maus-tratos, abandono e violência sexual.
Terceira reportagem revela que no Pará, além do casamento
entre pessoas do mesmo sexo, vem crescendo o número de pedidos de adoção por
parte deste grupo.
O ontem e o hoje
“Quando a minha filha veio para mim, a lei ainda era
diferente. A mãe biológica me entregou ela junto com uma carta explicando que
não tinha condições de criá-la. Procurei uma advogada e na Justiça requeremos a
adoção legal. Hoje ela não é minha filha adotiva. É minha filha legítima.
Adoção foi só um processo jurídico. O processo acabou e ela continuou sendo a
minha filha legítima”, diz Milena, emocionada.
Assim como a mãe biológica de Camile, outros milhares de
brasileiros vivem o mesmo drama de não ter condições financeiras e sociais de
manter uma criança. É por isso que, no processo de adoção, a Justiça reconhece
como legítima a iniciativa da mãe que entrega o bebê ao Estado diante da
impossibilidade de criação, segundo o magistrado titular da 1º Vara da Infância
e Juventude, João Augusto Figueiredo de Olveira.
"A entrega voluntária ao Estado está prevista no
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e é diferente de abandono da
criança, atitude considerada crime. Pelo contrário, a entrega é uma atitude de
respeito para com aquele ser que precisa ser tratado com dignidade",
afirma o juiz, em entrevista ao G1.
O abandono acaba acontecendo, de acordo com o juiz, por
conta do desconhecimento da lei por parte da mães. “Mas primeiro o Estado faz
todos os esforços para que a mãe fique com a criança, investiga se há parentes
próximos que assumam o menor. Caso não haja realmente condições, o estado
assume”, explica. Segundo ele, o processo é repleto de detalhes, embora seja
ágil para que a criança não sinta o desapego da sua mãe biológica.
Durante esse processo, uma pessoa que está na lista de
adoção e que optou por receber crianças em situação ainda não definida pela
Justiça pode ser acionada e convidada a receber a criança, mesmo ela não
estando, ainda, destituída de poder familiar. “Essa pessoa tem consciência de
que essa criança pode ou não ser destituída da sua família biológica. Caso
seja, posteriormente, inicia-se de fato o processo de adoção”, disse
Figueiredo.
Quando este pretendente de adoção aceita essa condição, a
criança já sai direto da maternidade, por exemplo, para a casa dessa pessoa que
pode vir a ser a sua nova família. “Mas esses mesmos postulantes a pais são
aqueles que vão ter de devolver a criança para a família biológica caso haja a
possibilidade do menor ser reassumido”, diz. “É um processo rápido, não pode
demorar para que a criança não institucionalize e não vá para um abrigo”,
esclarece o juiz.
Amparo legal
Mães que tomam a decisão de entregar seus filhos ao estado
sofrem preconceito, mas, de acordo com o juiz, “a mãe [que gera] não é
necessariamente aquela que vai estar pronta para ter filho”. “Há a questão da
imaturidade da idade, a rejeição do pai da criança ou da família ou mesmo a
questão financeira. Todas essas condições particulares têm de ser avaliadas”,
diz. Segundo ele, a entrega voluntária ao estado é uma garantia de um processo
consciente e de forma legal, com a segurança de que a criança será acompanhada
pela Vara da Infância.
Como no caso da arquiteta Milena Melo, citada no começo
desta matéria, é comum no Pará mães entregarem seus filhos para um vizinho ou
conhecido próximo por não confiarem ao estado a garantia de um futuro bom.
"Muitas mães avaliam que o estado não tem condições de recepcionar essa
criança como deveria. O nome disso é ‘adoção intuitu personae’, quando a mãe
faz isso à revelia [da Justiça]”, explica João Augusto.
O pequenino Heitor é um dos casos de entrega, no Euclides
Coelho (Foto: Arte e foto: Luiz Fernandes e G1)
Segundo o magistrado, também é corriqueiro no Pará surgirem
famílias dizendo que querem adotar uma criança porque estão com ela desde que
nasceu. “É um problema cultural. É criada nesses casos uma afetividade à margem
do que prevê a lei, mas pelo costume e pelo fato social que existe. O laço foi
criado legitimamente, não foi dado nada em troca pela criança, e a lei leva em
consideração isso após dois anos com a criança”, diz.
O dilema
A mãe I.M., que mora em Bragança, nordeste do estado, viveu
o dilema de ter de entregar o filho por não ter condições financeiras de
criá-lo. Na época, ela tinha 17 anos e engravidou do namorado. A imaturidade e
a não aceitação da gestação por parte dos pais dela também foram fatores que
contribuíram para ela tomar a difícil decisão de entregar Felipe Alves, hoje
com 24 anos, à avó paterna.
“Eu dizia que eu podia ir pra baixo da ponte com ele, mas
não daria ele a nenhuma pessoa estranha. Por isso, eu dei para a avó dele, mãe
do pai dele”, conta I. M.
I. M. conta que chegou a morar com a avó de Felipe durante
um tempo até se certificar de que ele estaria realmente em boas mãos. “Depois,
quando eu vi que ele estava seguro, eu saí de lá para ir trabalhar na casa dos
outros”, conta a empregada doméstica. Os anos se passaram e I. M., já em
circunstâncias diferentes, teve mais dois filhos com o atual esposo. Foi quando
ela, então, tentou se reaproximar de Felipe, porém, acabou se decepcionando.
“Sou muito grata a ela por ter criado o meu filho, mas tenho
um pouco de mágoa por ela não ter ensinado que ele era meu filho e a me chamar
de mãe. Hoje eu me arrependo de ter dado ele, apesar de ele estar bem, vejo os
meus outros dois filhos comigo e ele não. Eu me questiono se caso ele estivesse
comigo estaria melhor do que ele está hoje”, lamenta a mãe.
Serviço: Dúvidas sobre a questão da entrega voluntária podem
ser sanadas com a Coordenaria Estadual da Infância e Juventude (Ceij) do
Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) pelos e-mails ceij.seminarios@tjpa.jus.br e
ceij@tjpa.jus.br ou pelos telefones (91) 3205-2742/ 3205-2389. Saiba mais sobre
as novas regras para agilizar a adoação.
Original disponível em: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/destinos-cruzados-no-pa-maes-abandonam-filhos-por-desconhecerem-o-direito-a-entrega-voluntaria-ao-estado.ghtml
Reproduzido por: Lucas H.
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