segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Destinos Cruzados: no PA, mães abandonam filhos por desconhecerem o direito à entrega voluntária ao Estado (Reprodução)

13/01/2018

“Eu sempre pedia ao Papai do Céu para que ele me desse uma filha. Deus entendeu que eu merecia e me presenteou com uma linda princesa. Desde então o meu reino encantado ficou mais alegre”. Essa foi a forma lúdica encontrada pela arquiteta Milena Baia de Melo para contar à filha como foi que ela chegou ao seio de sua família. Camile, que atualmente tem 9 anos de idade, já sabe que não chegou à vida da sua mãe por meio de uma gestação biológica e sim por uma adesão voluntária. “Ela me escolheu, ela me quis”, diz a garota que foi adotada ainda neném.
Foram noites e noites contando histórias de princesa à Camile para que aos poucos ela fosse entendendo. Segundo Milena, esse período foi como uma gestação. A cada noite, a cada história lida, ela experimentava um sentimento chamado amor maternal. “A adoção é uma troca. Ganhamos tanto a minha filha quanto eu. Assim como em uma gravidez, em que há a expectativa da mãe em ter em seus braços pela primeira vez aquele ser e chamá-lo de filho, houve a minha expectativa em registrar a Camile como a minha filha”, diz Milena.
Destinos Cruzados é uma série de reportagens do G1 que vai mostrar o cenário da adoção no Pará, as expectativas de futuros pais, a realidade das crianças dos abrigos e histórias de vidas que se uniram no processo adotivo.
Primeira reportagem da série mostra que a maior parte das crianças que aguarda por adoção está fora do perfil procurado por futuros pais.
Segunda reportagem fala da realidade das crianças que vivem em abrigos vítimas de maus-tratos, abandono e violência sexual.
Terceira reportagem revela que no Pará, além do casamento entre pessoas do mesmo sexo, vem crescendo o número de pedidos de adoção por parte deste grupo. 
O ontem e o hoje
“Quando a minha filha veio para mim, a lei ainda era diferente. A mãe biológica me entregou ela junto com uma carta explicando que não tinha condições de criá-la. Procurei uma advogada e na Justiça requeremos a adoção legal. Hoje ela não é minha filha adotiva. É minha filha legítima. Adoção foi só um processo jurídico. O processo acabou e ela continuou sendo a minha filha legítima”, diz Milena, emocionada.
Assim como a mãe biológica de Camile, outros milhares de brasileiros vivem o mesmo drama de não ter condições financeiras e sociais de manter uma criança. É por isso que, no processo de adoção, a Justiça reconhece como legítima a iniciativa da mãe que entrega o bebê ao Estado diante da impossibilidade de criação, segundo o magistrado titular da 1º Vara da Infância e Juventude, João Augusto Figueiredo de Olveira. 
"A entrega voluntária ao Estado está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e é diferente de abandono da criança, atitude considerada crime. Pelo contrário, a entrega é uma atitude de respeito para com aquele ser que precisa ser tratado com dignidade", afirma o juiz, em entrevista ao G1. 
O abandono acaba acontecendo, de acordo com o juiz, por conta do desconhecimento da lei por parte da mães. “Mas primeiro o Estado faz todos os esforços para que a mãe fique com a criança, investiga se há parentes próximos que assumam o menor. Caso não haja realmente condições, o estado assume”, explica. Segundo ele, o processo é repleto de detalhes, embora seja ágil para que a criança não sinta o desapego da sua mãe biológica.
Durante esse processo, uma pessoa que está na lista de adoção e que optou por receber crianças em situação ainda não definida pela Justiça pode ser acionada e convidada a receber a criança, mesmo ela não estando, ainda, destituída de poder familiar. “Essa pessoa tem consciência de que essa criança pode ou não ser destituída da sua família biológica. Caso seja, posteriormente, inicia-se de fato o processo de adoção”, disse Figueiredo.
Quando este pretendente de adoção aceita essa condição, a criança já sai direto da maternidade, por exemplo, para a casa dessa pessoa que pode vir a ser a sua nova família. “Mas esses mesmos postulantes a pais são aqueles que vão ter de devolver a criança para a família biológica caso haja a possibilidade do menor ser reassumido”, diz. “É um processo rápido, não pode demorar para que a criança não institucionalize e não vá para um abrigo”, esclarece o juiz. 
Amparo legal 
Mães que tomam a decisão de entregar seus filhos ao estado sofrem preconceito, mas, de acordo com o juiz, “a mãe [que gera] não é necessariamente aquela que vai estar pronta para ter filho”. “Há a questão da imaturidade da idade, a rejeição do pai da criança ou da família ou mesmo a questão financeira. Todas essas condições particulares têm de ser avaliadas”, diz. Segundo ele, a entrega voluntária ao estado é uma garantia de um processo consciente e de forma legal, com a segurança de que a criança será acompanhada pela Vara da Infância.
Como no caso da arquiteta Milena Melo, citada no começo desta matéria, é comum no Pará mães entregarem seus filhos para um vizinho ou conhecido próximo por não confiarem ao estado a garantia de um futuro bom. "Muitas mães avaliam que o estado não tem condições de recepcionar essa criança como deveria. O nome disso é ‘adoção intuitu personae’, quando a mãe faz isso à revelia [da Justiça]”, explica João Augusto. 
O pequenino Heitor é um dos casos de entrega, no Euclides Coelho (Foto: Arte e foto: Luiz Fernandes e G1)
Segundo o magistrado, também é corriqueiro no Pará surgirem famílias dizendo que querem adotar uma criança porque estão com ela desde que nasceu. “É um problema cultural. É criada nesses casos uma afetividade à margem do que prevê a lei, mas pelo costume e pelo fato social que existe. O laço foi criado legitimamente, não foi dado nada em troca pela criança, e a lei leva em consideração isso após dois anos com a criança”, diz. 
O dilema
A mãe I.M., que mora em Bragança, nordeste do estado, viveu o dilema de ter de entregar o filho por não ter condições financeiras de criá-lo. Na época, ela tinha 17 anos e engravidou do namorado. A imaturidade e a não aceitação da gestação por parte dos pais dela também foram fatores que contribuíram para ela tomar a difícil decisão de entregar Felipe Alves, hoje com 24 anos, à avó paterna. 
“Eu dizia que eu podia ir pra baixo da ponte com ele, mas não daria ele a nenhuma pessoa estranha. Por isso, eu dei para a avó dele, mãe do pai dele”, conta I. M. 
I. M. conta que chegou a morar com a avó de Felipe durante um tempo até se certificar de que ele estaria realmente em boas mãos. “Depois, quando eu vi que ele estava seguro, eu saí de lá para ir trabalhar na casa dos outros”, conta a empregada doméstica. Os anos se passaram e I. M., já em circunstâncias diferentes, teve mais dois filhos com o atual esposo. Foi quando ela, então, tentou se reaproximar de Felipe, porém, acabou se decepcionando. 
“Sou muito grata a ela por ter criado o meu filho, mas tenho um pouco de mágoa por ela não ter ensinado que ele era meu filho e a me chamar de mãe. Hoje eu me arrependo de ter dado ele, apesar de ele estar bem, vejo os meus outros dois filhos comigo e ele não. Eu me questiono se caso ele estivesse comigo estaria melhor do que ele está hoje”, lamenta a mãe.
Serviço: Dúvidas sobre a questão da entrega voluntária podem ser sanadas com a Coordenaria Estadual da Infância e Juventude (Ceij) do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) pelos e-mails ceij.seminarios@tjpa.jus.br e ceij@tjpa.jus.br ou pelos telefones (91) 3205-2742/ 3205-2389. Saiba mais sobre as novas regras para agilizar a adoação.

Reproduzido por: Lucas H.

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