Thais Garrafa[1] O reconhecimento das fragilidades físicas inerentes ao período perinatal, que abrange a gestação, o parto e o pós-parto, tem se revelado inequívoco ao fomentar o desenho de políticas de prevenção que visam impactar índices de mortalidade materna e infantil, prematuridade e incidência de problemas de saúde que geram deficiências. A tentativa de ampliar esse reconhecimento para a esfera psíquica e de, portanto, considerar possíveis efeitos de vulnerabilidade emocional nas experiências da perinatalidade tem se mostrado convidativa e complexa, pois ao mesmo tempo em que possibilita ampliar a rede de atenção às gestantes e puérperas, implica levar em conta um desenho pouco claro da interface entre os acontecimentos biológicos desse período e o delicado processo de constituição da parentalidade.
O termo “parentalidade”, quando despido de sua gênese normativa[2], revela-se fértil para delimitar o campo que abrange os processos que dizem respeito à constituição da posição de mãe ou de pai, processos estes que, em todos os casos, independem das transmissões genéticas.
A constituição do lugar parental envolve um trabalho psíquico intenso que, para a mulher que dá a luz, se entranha nos limites e desafios da recuperação de sua saúde física. Distinguir efeitos hormonais, recuperação pós-parto e atenção aos cuidados com o bebê do trabalho psíquico associado à constituição da parentalidade mostra-se importante para que este último ponto não seja subestimado entre tantos elementos. Ainda, permite que se ofereça a devida atenção também aos pais na constituição de sua posição, bem como às mulheres que, em união homoafetiva, não foram aquelas que gestaram e pariram.
Nas “adoções tardias”, expressão amplamente utilizada para designar casos em que a criança é adotada com 3 anos ou mais, assistimos à completa dissociação entre perinatalidade e parentalidade. Nesses casos, para aqueles que adotam, não há experiências de gestação, parto e puerpério, nem tampouco se coloca o trabalho psíquico e físico envolvidos nos cuidados com um bebê. Sua travessia estaria, pois, exclusivamente direcionada à constituição do lugar parental. Ao escutar esses casais, encontramos uma condição privilegiada para identificar alguns dos elementos que se colocam nessa jornada. Destacarei, a seguir, alguns pontos que merecem consideração.
O primeiro deles refere-se ao encontro doloroso dos pais com o desamparo infantil. Observamos nas adoções a existência de um momento precisamente localizável no processo de constituição da posição parental em que os pais relatam uma profunda dor ao imaginar o que pode ter se passado na vida do filho antes do momento da adoção. Terá sofrido violência física? Abuso? Privação severa? Terá se sentido abandonado na instituição de acolhimento? Independente da versão dos fatos, destaca-se no processo de adoção um momento em que os pais constatam que sua presença como pais não há de apagar o que se passou na história do filho, e, ainda, que não terão acesso a tudo o que se passou nessa história. Não é raro que peçam ao analista para que “dê um jeito nisso”, a fim de que essas dores não se prolonguem vida a fora.
Na constituição de seu lugar, os pais se vêm às caras com seu próprio desamparo. A empreitada narcísica proposta por Freud em 1914, qual seja, restaurar, por meio do filho, as feridas dos pais, privá-lo dos infortúnios da vida, renovar as esperanças em seus sonhos perdidos e abandonados, é bem-sucedida e falha desde o princípio. O retorno de satisfação narcísica que se obtém por meio dos filhos não passa sem a reedição do desamparo infantil.
De forma mais ou menos dolorosa, os pais tropeçam em suas próprias falhas: não atendem ao chamado tão rápido, nem sempre estão bem-humorados e dispostos, não oferecem o aconchego que julgariam necessário, não decifram brilhantemente todos os apelos, não conseguem fazer com que o sono se prolongue intocável… As versões variam, e a dor de cada tropeço também se apresenta de modo particular. Nesse sentido, não apenas aqueles que adotam, mas todos os pais estão sujeitos a essas questões, pois o encontro com o desamparo infantil é, tal como a satisfação narcísica, decorrência estrutural da entrada na posição parental.
O segundo ponto que se destaca em relação à constituição da parentalidade nas adoções tardias permite abordar de uma outra forma a solidão que acompanha esse processo. Nota-se que nos casos em que a atenção à saúde física não se coloca de forma clara, os espaços de escuta tornam-se mais escassos. Para a mulher que tem um filho por parturição, por exemplo, o obstetra pode fazer uma interlocução importante, ainda que esse não seja o foco principal. Também seus companheiros – ou companheiras, no caso de união homoafetiva – podem encontrar um espaço significativo nas conversas com os pediatras, e neste ponto se incluem ainda os casais que adotam bebês. Nesse sentido, há que se discutir a importância de um atendimento médico capaz de levar em conta a subjetividade das pessoas atendidas e de oferecer condições para que, a propósito do corpo, próprio ou do filho, esses casais falem de suas dores, angústias e dificuldades de toda sorte, o que possibilitaria, quando pertinente, abrir espaço para que um psicanalista seja procurado. Em todo caso, aos pais que adotam, gozar da vitalidade física parece lhes deixar paradoxalmente mais desamparados, pois seus espaços de interlocução são ainda mais escassos.
A Psicanálise se edificou como método que, ao acionar o falatório da associação livre, possibilita contornos e anteparos para o que resta como efeito do trauma na subjetividade. O termo “trauma”, em diferentes contextos, remete à marca deixada por algo excessivo, a uma pancada maior do que se estaria preparado para suportar. Freud o trabalhou exaustivamente no início de sua obra para tratar dos fenômenos psíquicos que produziam efeitos no corpo e pareciam não ter alcançado a linguagem como forma de elaboração.
Após mais de 20 anos de relativo silêncio em relação ao tema, Freud o resgata em 1926 no momento de reelaboração de sua teoria da angustia. É justamente na articulação com o desamparo infantil que encontramos a chave fundamental para pensar no caráter traumático da sexualidade, sempre excessiva frente aos limites físicos e psíquicos do eu. Estar sozinho com a própria vida pulsional será o protótipo do trauma.
Ferenczi (1933), apoiado na metapsicologia freudiana, dará um passo a mais na articulação entre trauma e solidão. Para o autor, o trauma produzirá efeitos persistentes quando o sujeito que o experimenta não encontra alguém que possa reconhecer seu caráter violento e excessivo, de modo a permitir que se fale sobre ele. Da impossibilidade de inscrever a dor excessiva da experiência resultaria seu caráter traumático.
Os casais que adotam crianças maiores são pouco convidados a falar das dores dessa experiência, de seu despreparo como pais, da intensidade da relação com a criança, da falta de respostas às suas perguntas, do fracasso de todo o processo preparatório pelo qual passaram. Com frequência, em conversas com seus pares, escutam que suas dificuldades estariam relacionadas à adoção, e não à própria parentalidade. Nesse sentido, cabe perguntarmos se as devoluções de crianças adotadas, marca de um fracasso, não estariam associadas também a esse lapso no reconhecimento da intensidade presente na entrada da posição parental[3].
Esse lapso no reconhecimento social parece mais intenso na adoção, porém não lhe é exclusivo. Mães biológicas ainda se veem assoladas pelo falso ideal do instinto materno, que deveria lhes reservar um saber prévio à experiência. Suas dificuldades decorreriam de falhas pessoais, e não da radical singularidade que marca, para cada mulher ou homem, a constituição do lugar parental junto a cada um dos filhos. Nesse sentido, à necessária solidão envolvida nessa construção sobrepõe-se certa surdez cultural em relação a ela, de modo a contribuir para a natureza traumática da entrada na posição parental, que sempre escapa a tudo o que se estava preparado para viver.
Outro ponto bem iluminado pelas adoções tardias refere-se a como a constituição da posição parental independe da retribuição, gratidão ou reconhecimento do filho. Primeiro chegam os pais, em seu árduo trabalho de ocupar a posição de pais; depois chegam os filhos, a ocupar o lugar que lhes é designado na cadeia transgeracional. Diferentemente das crianças maiores, os bebês, adotados ou não, não falam; não podem, pois, dizer “mamãe” com todas as letras. Apoiados nesse despreparo biológico, os pais de bebês lhes dão um tempo para que o mamã-papá seja recebido com toda emoção que pode produzir.
Além disso, quando se tem um bebê, uma extensa fase de namoro antecede o descortinamento da alteridade do filho, pois o processo de constituição subjetiva é marcado por esse tempo em que todas as palavras provêm dos pais. Sabemos que, nem por isso, esses pais estariam blindados do encontro com aquilo que, no filho, resiste a sua interpretação, a exemplo dos choros que não cessam e da recusa do alimento, entre outros. No entanto é insipiente nos bebês, sujeitos em constituição, a capacidade de dizer “não” e articular os próprios enunciados, de modo que os pais conseguem sustentar a fantasia de que conhecem profundamente o filho, de que tudo sabem sobre suas dores, desejos e afetos, e de que o elo emocional que estabelecem é e sempre será de reciprocidade. O inevitável encontro com a falência de seu saber sobre o filho é inúmeras vezes editado a partir do momento em que a criança começa a falar; um desafio que, nas adoções tardias, é assumido desde o primeiro instante.
As crianças maiores estão preparadas para falar, mas muitas delas não dão aos pais tão rapidamente a graça de ouvir o que esperam. É preciso lhes dar tempo. Os pais dessas crianças mostram como a entrada no lugar parental acontece por meio de um passo decidido e decisivo; sem apoio, garantia ou reconhecimento; uma certeza antecipada, como diria Lacan em relação ao ato.
Em todos os casos, os pais de crianças maiores não cessam de se espantar com o que as crianças dizem, seja por sua esperteza e sagacidade, seja pela suposta inadequação social de seus ditos, seja pelo grau de agressividade que portam… A criança, por sua vez, está sempre a dizer e mostrar que ela não é aquilo que esperavam dela! Adotar uma criança que fala é colocar-se, sem disfarces, diante da alteridade do filho e dos descompassos inerentes a essa relação.
Interessante lembrarmos que, para a psicanálise, mãe e pai são sempre adotivos, uma vez que a constituição de suas posições independe das transmissões genéticas. Nesse sentido, a distinção entre pais adotivos e biológicos é falsa. Todavia, entendemos que a experiência da adoção se distingue da experiência de parturição, e que ambas, em suas diferenças, podem iluminar o estudo da constituição do lugar parental a partir de ângulos distintos. Identificar as dificuldades inerentes a esse processo é fundamental para oferecer a devida atenção a mães e pais no período perinatal, bem como aos primeiros tempos da relação entre os casais que adotam e seus filhos.
[1] Psicanalista, professora do curso ”Sujeitos da Psicanálise” do COEGAE-PUCSP e do” Curso de formação em Psicanálise” do CEP; supervisora da clínica social do Instituto Gerar; supervisora colaboradora do projeto Com Tato do Instituto Fazendo História.
[2] A respeito da gênese e do uso normativos do termo “parentalidade”, recomendo o livro de Daniela Teperman “Família, parentalidade e época – um estudo psicanalítico”.
[3] Sobre o árduo tema das devoluções, recomendo a leitura do livro Maria Luiza Ghirardi, “A devolução de crianças adotadas”.
Referências Bibliográficas
Freud, S. (1926). Inibições, Sintomas e Ansiedade. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976
Ferenczi, S. (1933): “Confusão de língua entre adultos e a criança” Obras Completas IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Ghirardi. M.L. A devolução de crianças adotadas. São Paulo: Primavera editorial, 2015.
Teperman, D. Família, parentalidade e época: um estudo psicanalítico. São Paulo Editora Escuta, 2014.
Original disponível em: http://institutogerar.com.br/adocao-tardia-e-os-desafios/#sthash.uD9WQFgS.dpuf
O termo “parentalidade”, quando despido de sua gênese normativa[2], revela-se fértil para delimitar o campo que abrange os processos que dizem respeito à constituição da posição de mãe ou de pai, processos estes que, em todos os casos, independem das transmissões genéticas.
A constituição do lugar parental envolve um trabalho psíquico intenso que, para a mulher que dá a luz, se entranha nos limites e desafios da recuperação de sua saúde física. Distinguir efeitos hormonais, recuperação pós-parto e atenção aos cuidados com o bebê do trabalho psíquico associado à constituição da parentalidade mostra-se importante para que este último ponto não seja subestimado entre tantos elementos. Ainda, permite que se ofereça a devida atenção também aos pais na constituição de sua posição, bem como às mulheres que, em união homoafetiva, não foram aquelas que gestaram e pariram.
Nas “adoções tardias”, expressão amplamente utilizada para designar casos em que a criança é adotada com 3 anos ou mais, assistimos à completa dissociação entre perinatalidade e parentalidade. Nesses casos, para aqueles que adotam, não há experiências de gestação, parto e puerpério, nem tampouco se coloca o trabalho psíquico e físico envolvidos nos cuidados com um bebê. Sua travessia estaria, pois, exclusivamente direcionada à constituição do lugar parental. Ao escutar esses casais, encontramos uma condição privilegiada para identificar alguns dos elementos que se colocam nessa jornada. Destacarei, a seguir, alguns pontos que merecem consideração.
O primeiro deles refere-se ao encontro doloroso dos pais com o desamparo infantil. Observamos nas adoções a existência de um momento precisamente localizável no processo de constituição da posição parental em que os pais relatam uma profunda dor ao imaginar o que pode ter se passado na vida do filho antes do momento da adoção. Terá sofrido violência física? Abuso? Privação severa? Terá se sentido abandonado na instituição de acolhimento? Independente da versão dos fatos, destaca-se no processo de adoção um momento em que os pais constatam que sua presença como pais não há de apagar o que se passou na história do filho, e, ainda, que não terão acesso a tudo o que se passou nessa história. Não é raro que peçam ao analista para que “dê um jeito nisso”, a fim de que essas dores não se prolonguem vida a fora.
Na constituição de seu lugar, os pais se vêm às caras com seu próprio desamparo. A empreitada narcísica proposta por Freud em 1914, qual seja, restaurar, por meio do filho, as feridas dos pais, privá-lo dos infortúnios da vida, renovar as esperanças em seus sonhos perdidos e abandonados, é bem-sucedida e falha desde o princípio. O retorno de satisfação narcísica que se obtém por meio dos filhos não passa sem a reedição do desamparo infantil.
De forma mais ou menos dolorosa, os pais tropeçam em suas próprias falhas: não atendem ao chamado tão rápido, nem sempre estão bem-humorados e dispostos, não oferecem o aconchego que julgariam necessário, não decifram brilhantemente todos os apelos, não conseguem fazer com que o sono se prolongue intocável… As versões variam, e a dor de cada tropeço também se apresenta de modo particular. Nesse sentido, não apenas aqueles que adotam, mas todos os pais estão sujeitos a essas questões, pois o encontro com o desamparo infantil é, tal como a satisfação narcísica, decorrência estrutural da entrada na posição parental.
O segundo ponto que se destaca em relação à constituição da parentalidade nas adoções tardias permite abordar de uma outra forma a solidão que acompanha esse processo. Nota-se que nos casos em que a atenção à saúde física não se coloca de forma clara, os espaços de escuta tornam-se mais escassos. Para a mulher que tem um filho por parturição, por exemplo, o obstetra pode fazer uma interlocução importante, ainda que esse não seja o foco principal. Também seus companheiros – ou companheiras, no caso de união homoafetiva – podem encontrar um espaço significativo nas conversas com os pediatras, e neste ponto se incluem ainda os casais que adotam bebês. Nesse sentido, há que se discutir a importância de um atendimento médico capaz de levar em conta a subjetividade das pessoas atendidas e de oferecer condições para que, a propósito do corpo, próprio ou do filho, esses casais falem de suas dores, angústias e dificuldades de toda sorte, o que possibilitaria, quando pertinente, abrir espaço para que um psicanalista seja procurado. Em todo caso, aos pais que adotam, gozar da vitalidade física parece lhes deixar paradoxalmente mais desamparados, pois seus espaços de interlocução são ainda mais escassos.
A Psicanálise se edificou como método que, ao acionar o falatório da associação livre, possibilita contornos e anteparos para o que resta como efeito do trauma na subjetividade. O termo “trauma”, em diferentes contextos, remete à marca deixada por algo excessivo, a uma pancada maior do que se estaria preparado para suportar. Freud o trabalhou exaustivamente no início de sua obra para tratar dos fenômenos psíquicos que produziam efeitos no corpo e pareciam não ter alcançado a linguagem como forma de elaboração.
Após mais de 20 anos de relativo silêncio em relação ao tema, Freud o resgata em 1926 no momento de reelaboração de sua teoria da angustia. É justamente na articulação com o desamparo infantil que encontramos a chave fundamental para pensar no caráter traumático da sexualidade, sempre excessiva frente aos limites físicos e psíquicos do eu. Estar sozinho com a própria vida pulsional será o protótipo do trauma.
Ferenczi (1933), apoiado na metapsicologia freudiana, dará um passo a mais na articulação entre trauma e solidão. Para o autor, o trauma produzirá efeitos persistentes quando o sujeito que o experimenta não encontra alguém que possa reconhecer seu caráter violento e excessivo, de modo a permitir que se fale sobre ele. Da impossibilidade de inscrever a dor excessiva da experiência resultaria seu caráter traumático.
Os casais que adotam crianças maiores são pouco convidados a falar das dores dessa experiência, de seu despreparo como pais, da intensidade da relação com a criança, da falta de respostas às suas perguntas, do fracasso de todo o processo preparatório pelo qual passaram. Com frequência, em conversas com seus pares, escutam que suas dificuldades estariam relacionadas à adoção, e não à própria parentalidade. Nesse sentido, cabe perguntarmos se as devoluções de crianças adotadas, marca de um fracasso, não estariam associadas também a esse lapso no reconhecimento da intensidade presente na entrada da posição parental[3].
Esse lapso no reconhecimento social parece mais intenso na adoção, porém não lhe é exclusivo. Mães biológicas ainda se veem assoladas pelo falso ideal do instinto materno, que deveria lhes reservar um saber prévio à experiência. Suas dificuldades decorreriam de falhas pessoais, e não da radical singularidade que marca, para cada mulher ou homem, a constituição do lugar parental junto a cada um dos filhos. Nesse sentido, à necessária solidão envolvida nessa construção sobrepõe-se certa surdez cultural em relação a ela, de modo a contribuir para a natureza traumática da entrada na posição parental, que sempre escapa a tudo o que se estava preparado para viver.
Outro ponto bem iluminado pelas adoções tardias refere-se a como a constituição da posição parental independe da retribuição, gratidão ou reconhecimento do filho. Primeiro chegam os pais, em seu árduo trabalho de ocupar a posição de pais; depois chegam os filhos, a ocupar o lugar que lhes é designado na cadeia transgeracional. Diferentemente das crianças maiores, os bebês, adotados ou não, não falam; não podem, pois, dizer “mamãe” com todas as letras. Apoiados nesse despreparo biológico, os pais de bebês lhes dão um tempo para que o mamã-papá seja recebido com toda emoção que pode produzir.
Além disso, quando se tem um bebê, uma extensa fase de namoro antecede o descortinamento da alteridade do filho, pois o processo de constituição subjetiva é marcado por esse tempo em que todas as palavras provêm dos pais. Sabemos que, nem por isso, esses pais estariam blindados do encontro com aquilo que, no filho, resiste a sua interpretação, a exemplo dos choros que não cessam e da recusa do alimento, entre outros. No entanto é insipiente nos bebês, sujeitos em constituição, a capacidade de dizer “não” e articular os próprios enunciados, de modo que os pais conseguem sustentar a fantasia de que conhecem profundamente o filho, de que tudo sabem sobre suas dores, desejos e afetos, e de que o elo emocional que estabelecem é e sempre será de reciprocidade. O inevitável encontro com a falência de seu saber sobre o filho é inúmeras vezes editado a partir do momento em que a criança começa a falar; um desafio que, nas adoções tardias, é assumido desde o primeiro instante.
As crianças maiores estão preparadas para falar, mas muitas delas não dão aos pais tão rapidamente a graça de ouvir o que esperam. É preciso lhes dar tempo. Os pais dessas crianças mostram como a entrada no lugar parental acontece por meio de um passo decidido e decisivo; sem apoio, garantia ou reconhecimento; uma certeza antecipada, como diria Lacan em relação ao ato.
Em todos os casos, os pais de crianças maiores não cessam de se espantar com o que as crianças dizem, seja por sua esperteza e sagacidade, seja pela suposta inadequação social de seus ditos, seja pelo grau de agressividade que portam… A criança, por sua vez, está sempre a dizer e mostrar que ela não é aquilo que esperavam dela! Adotar uma criança que fala é colocar-se, sem disfarces, diante da alteridade do filho e dos descompassos inerentes a essa relação.
Interessante lembrarmos que, para a psicanálise, mãe e pai são sempre adotivos, uma vez que a constituição de suas posições independe das transmissões genéticas. Nesse sentido, a distinção entre pais adotivos e biológicos é falsa. Todavia, entendemos que a experiência da adoção se distingue da experiência de parturição, e que ambas, em suas diferenças, podem iluminar o estudo da constituição do lugar parental a partir de ângulos distintos. Identificar as dificuldades inerentes a esse processo é fundamental para oferecer a devida atenção a mães e pais no período perinatal, bem como aos primeiros tempos da relação entre os casais que adotam e seus filhos.
[1] Psicanalista, professora do curso ”Sujeitos da Psicanálise” do COEGAE-PUCSP e do” Curso de formação em Psicanálise” do CEP; supervisora da clínica social do Instituto Gerar; supervisora colaboradora do projeto Com Tato do Instituto Fazendo História.
[2] A respeito da gênese e do uso normativos do termo “parentalidade”, recomendo o livro de Daniela Teperman “Família, parentalidade e época – um estudo psicanalítico”.
[3] Sobre o árduo tema das devoluções, recomendo a leitura do livro Maria Luiza Ghirardi, “A devolução de crianças adotadas”.
Referências Bibliográficas
Freud, S. (1926). Inibições, Sintomas e Ansiedade. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976
Ferenczi, S. (1933): “Confusão de língua entre adultos e a criança” Obras Completas IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Ghirardi. M.L. A devolução de crianças adotadas. São Paulo: Primavera editorial, 2015.
Teperman, D. Família, parentalidade e época: um estudo psicanalítico. São Paulo Editora Escuta, 2014.
Original disponível em: http://institutogerar.com.br/adocao-tardia-e-os-desafios/#sthash.uD9WQFgS.dpuf
Reproduzido por: Lucas H.
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