Processo Familiar
Circulou
na imprensa a notícia de que o presidente da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha (PMDB-RJ), criou no dia 10 de fevereiro, uma comissão
especial para acelerar um projeto que reconhece como família apenas os
núcleos sociais formados pela união de um homem e de uma mulher. É o
Estatuto da Família de autoria do Deputado Anderson Ferreira (PR-PE).
O
projeto, em seu artigo 2º, afirma que “define-se entidade familiar como
núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher,
por meio do casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes” (clique aqui para ler a íntegra).
Os demais dispositivos cuidam de políticas públicas e de diretrizes para a sua concretização.
Qual
a razão da proposição ter tido repercussão na imprensa? A razão de ser
são as declarações que acompanham o projeto em questão.
Frases
como a do deputado Ronaldo Fonseca (Pros-DF) causam perplexidade aos
estudiosos do Direito “faz necessário diferenciar família das relações
de mero afeto, convívio e mútua assistência; sejam essas últimas
relações entre pessoas de mesmo sexo ou de sexos diferentes, havendo ou
não prática sexual entre essas pessoas”.
E conclui
sua peroração: “É importante asseverar que apenas da família, união de
um homem com uma mulher, há a presunção do exercício desse relevante
papel social que a faz ser base da sociedade” (clique aqui para ler notícia sobre o assunto).
Há
no discurso uma clara visão utilitarista: a família de pessoas do mesmo
sexo não cumpre sua função última, “ser base da sociedade”. Haveria
duas famílias: as úteis e as inúteis para a base da sociedade. É
argumento que já legitimou atrocidades em passado não tão remoto.
Já disse, nesse espaço, Giselle Groeninga,
que “as marginalizações de algumas famílias acompanham a tentativa em
impor valores que, no mais das vezes, são estranhos à própria finalidade
da família. E exemplos não faltam das tentativas em (in)justamente
negar o direito a se ser em família, e em se ter uma família que não se
submeta aos valores prevalentes”.
E não é só.
Parece que o debate a ser travado no Congresso, ou o discurso a ser
imposto pelos parlamentares, ignora que o tema já está amadurecido em
termos jurídicos com as decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito
do conceito de família no Brasil.
Em maio de 2011, na decisão da ADPF 132/RJ e da ADI 4.2771,
o Supremo Tribunal Federal admitiu a união estável entre pessoas do
mesmo sexo, com todos os efeitos da união estável heterossexual. O
princípio norteador das decisões é o respeito às diferenças e vedação à
discriminação em razão de sua etnia, religião ou orientação sexual.
Antes
mesmo de se prosseguir no debate, deve-se lembrar que, quando em
outubro de 2011 o Superior Tribunal de Justiça admitiu o casamento (sim,
o casamento por meio de habilitação perante o Registro Civil), as
razões foram impactantes e precisas:
Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias” (REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012)
Assim,
esperar que os representantes da maioria defendam os interesses de
minorias é algo pouco comum, não usual, pois afinal precisam dessa
maioria para manter sua hegemonia e poder.
Não custa lembrar que o Brasil tem pouca tradição histórica nos assuntos relacionados aos direitos humanos e às minorias.
Comecemos
pela diferença em razão de sua etnia. Sabe-se que o Brasil foi um dos
últimos países a colocar fim à escravidão e só o fez, em 1888, por
intensa pressão dos ingleses (pressão essa que incluía afundar os navios
negreiros). Aliás, o preço histórico da Princesa Isabel ter sido
atuante na luta contra a escravidão (a Princesa assinou a lei Áurea
enquanto seu pai, o Imperador D. Pedro II, viajava) foi a perda da coroa
e o exílio da família real no ano seguinte. Um dos motes dos Liberais
contra a Monarquia foi exatamente a assinatura da lei em questão.
Quanto
à diferença de gênero e a proteção da mulher, temos, novamente, um
“caso de descaso” pelas autoridades braisleiras. O Brasil foi “forçado” a
reconhecer, por lei, a vulnerabilidade das mulheres e a necessidade de
sua proteção com a edição da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). A
tragédia vivida pela biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes,
violentamente agredida por seu marido, o que lhe causou paraplegia, foi
mote para que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA)
acatasse uma denúncia contra o Brasil que acabou condenado por
negligência e omissão quanto à violência doméstica.
O teor do Relatório 54/01
que cuidou da denúncia prestada por Maria da Penha impressiona: “dado
que essa violação contra Maria da Penha é parte de um padrão geral de
negligência e falta de efetividade do Estado para processar e condenar
os agressores, a Comissão considera que não só é violada a obrigação de
processar e condenar, como também a de prevenir essas práticas
degradantes”.
Curiosa foi a participação do Estado
brasileiro nesse processo perante a Comissão Interamericana: “o Estado
brasileiro não apresentou à Comissão resposta alguma com respeito à
admissibilidade ou ao mérito da petição, apesar das solicitações
formuladas pela Comissão ao Estado em 19 de outubro de 1998, em 4 de
agosto de 1999 e em 7 de agosto de 2000”. Em suma, o Brasil se omitiu
completamente quanto ao tema.
Por fim, em termos
de discriminação em razão da orientação sexual, temos, no Brasil,
exemplo único no mundo. É verdade que, grosso modo, podemos dividir os
países em dois blocos: aqueles que respeitam e reconhecem a família
homoafetiva (Américas, Europa e Oceania) e os que não a admitem ou
criminalizam as práticas homossexuais (África e Ásia).
Entre
os países que reconhecem as famílias homoafetivas e as protegem, a
extensão dessa proteção varia, mas, de qualquer forma, a proteção nasce
por força de lei. Portugal, por exemplo, que admite o casamento
homoafetivo por força da alteração do Código Civil em 2010, não admite a
adoção conjunta.
No Brasil, não houve mudanças no
Código Civil para se admitir a família homoafetiva que foi construída
com base nas decisões do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal
de Justiça e algumas leis esparsas.
Aliás, o
casamento homoafetivo é regulamento pela Resolução 175 do CNJ, que, em
14 de maio de 2013, de maneira singela e objetiva, determinou a todos os
registros civis que habilitassem os casais de mesmo sexo para o
casamento civil. Dispõe a Resolução em questão que:
Artigo 1º: É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
Não
há um artigo no Código Civil que admita a família homoafetiva, mas
também não há um artigo que a exclua da proteção legal. E, efetivamente,
a Constituição não limita as formas de constituição de família como
fazia o antigo Código Civil de 1916, logo, o artigo 226 apenas indica,
exemplifica, as formas de família protegidas pelas Constituição.
Abole-se o sistema de exclusividade do casamento, como forma de
constituição de família, em favor da adoção de um modelo plural.
Assim sendo, em linhas conclusivas, o que acontecerá se o Estatuto da Família for aprovado?
A resposta é simples: nascerá uma lei inconstitucional e que não produzirá nenhum efeito jurídico.
É
por isso que, paradoxalmente, penso que, talvez, seria melhor a
aprovação deste odioso estatuto. E o raciocínio é feito de maneira
utilitária. Com a aprovação, o Supremo Tribunal Federal declarará sua
inconstitucionalidade com relação à categorização de família.
Então,
o desiderato estará atingido. Será o fim do discurso eleitoreiro de
alguns políticos, seja esse discurso decorrente de indisfarçável
ignorância, seja esse discurso dolosamente engendrado para se angariar
votos.
1 Decisão esta vinculante e com efeito erga omnes.
http://www.conjur.com.br/2015-fev-22/processo-familiar-estatuto-familia-for-aprovado-stf-julgara-inconstitucional
http://www.conjur.com.br/2015-fev-22/processo-familiar-estatuto-familia-for-aprovado-stf-julgara-inconstitucional