segunda-feira, 5 de junho de 2017

A juíza, as mães e o melhor interesse das meninas (Reprodução)

31 de maio de 2017


A vida não é filme, você não entendeu
De todos os seus sonhos não restou nenhum
Ninguém foi ao seu quarto quando escureceu
E só você não viu, não era filme algum
(…)
E assim
Tanto faz
Se ‘ela’ não aparecer
(…)
Nada mais
– Paralamas do Sucesso (adaptado)

E de repente ela contestou a ação de adoção. Surpreendentemente, ela se manifestou após longos 12 (doze) anos de ausência. Depois que os laços de afeto estavam estabelecidos, firmes, coesos. Depois que o sorriso da menina já era idêntico ao da mãe que lhe ensinou a sorrir, que ela já tinha identidade com sua família afetiva, tinha pai, irmãos, casa, quarto e o reconhecimento social como filha daqueles que a tratavam como o que era – filha. Só faltava o “papel passado”.

Ah, ela contestou a ação de adoção… naquela cidade religiosa, de valores conservadores, rígidos, pouco aberta a ideias que se afastassem daquilo que já estava tradicionalmente estabelecido, aquele lugar incrustado no interior do Sertão… tão igual a tantos outros lugares que escolheram o status quo e são avessos a inovações, ao diferente, ao que foge ao comum (ainda que não seja normal)[1].

Ela contestou. Nossa! Ela teve a coragem de falar após, repita-se, 12(doze) anos de silêncio. Para que ela falou?! Para gerar incômodo à Justiça da Infância e Juventude. Retirar o caminho fácil da “ausência, abandono, novos laços, perda e destituição, melhor interesse da criança”; o “qual a dúvida da decisão?”; o caso simples, igual a milhões de outros casos, da jurisprudência farta sobre o tema. Precedentes consolidados que, te tão repetidos, já se pode utilizá-los irrefletidamente[2].

Como pode, Doutora?! Ela nunca procurou a “minha” menina, nem em um único natal, aniversário, nada. Nunca esteve ao lado dela tratando as febres altas, não ensinou o “ABC”, não mandou nenhuma foto sequer. E eu não proibi, não. Ela que não quis. Abandonou a menina porque queria ir para a festa, foi embora sem olhar para trás e agora vem querer dizer que ainda quer ser mãe?! É óbvio que a senhora vai impedir isso, não é doutora?! Uma mãe não abandona uma filha nunca! Onde já se viu?! Tem justiça para isso!

Ela se opôs. Mesmo ele concordando em deixar a menina ser filha de sua irmã e de seu cunhado. Eles a criaram. É ao cunhado dele que a menina reconhece como pai. Aliás, ele até vai visitá-la, convive, pode ver a hora que quer. Mas, responsável pela menina mesmo é o cunhado. Ele não faz questão da responsabilidade e é grato porque cuidaram da menina. Ela foi embora, o abandonou com a menina nos braços, sem saber o que fazer, só porque ele não deixou que ela fosse à festa da cidade vizinha. Por causa de uma briguinha à toa.

É, doutora, ela não quer perder a menina mesmo, não. É verdade. Ela foi embora sim. A senhora sabe como é. Ela é minha filha, mas eu já criava um neto, não ia aceitá-la com a penca dela. Foi fazer besteira. Eu não quis assumir mais um não. Mandei voltar para casa, que marido é assim mesmo. Homem fica nervoso, às vezes até bate, mas sempre foi assim. Mulher tem que ter sabedoria, ficar quieta, deixar o homem falar, aguentar e cumprir os deveres. Homens tem suas necessidades. Mulher tem que entender. Sempre foi assim. Com minha bisavó, minha avó, eu. Ela deveria ter se dado por satisfeita que havia um homem que a queria. Eu tenho dó dela ficar sem a menina, mas ela não quis se submeter.

É verdade o que ela disse sim. Ela chegou a São Paulo falando que iria voltar para pegar a menina, que era só questão de arrumar um emprego, se estabelecer. Ela era uma menina. Veja. Uma menina mãe de outra. Novinha. Tão pequena que foi engolida pela Cidade grande. Não tinha ninguém por ela não. Morou com a irmã. Era bem feita de corpo. O companheiro da irmã, homem, a senhora sabe. A bichinha não podia nem dormir naquele sofá que arrumaram para ela na sala que era acordada por ele. E não podia falar nada. Ele que colocava a comida no prato dela, de sua irmã e sobrinhos e lhe deu um teto.[3]

Ela alegou que lutou. E lutou mesmo. Conseguiu emprego em casa de família. Chegava antes da hora da escola dos filhos da patroa e saía depois que lavava os pratos do jantar. A carteira não era assinada, mas tinha de dar graças a Deus que arrumou patrão que aceitou pagar o salário mínimo. Pelo menos, arrumou jeito de sair da casa da irmã e de se livrar das ousadias que era obrigada a aguentar calada. Ainda bem que foi sozinha, que não levou a menina consigo. Nem conseguia respirar quando pensava no mal que poderia lhe suceder[4].

Ah, a menina, Doutora! Ela sonhou tantas vezes com a menina. Teve uma vez que até arrumou dinheiro e foi até o Sertão se apresentar para a menina. Mas, só viu de longe. Teve vergonha! Não conseguiu falar. Não sabia o que dizer. Não se sentiu no direito de dizer nada. Porque foi embora, não é, Doutora?! … Ia dizer o que? Não sabia porquê sentiu que não deveria aceitar ceder seu corpo toda vez que ele quisesse, com ou sem violência, embriagado ou são. Quis ser diferente e tinha culpa por isso. E quem tem culpa tem preço a pagar, não é Doutora?![5]

E viu a menina bem cuidada. A menina teve melhor sorte que ela. Encontrou um lugar de amor para viver. Ela não quer que a menina seja retirada de onde está. Ela só quer poder vê-la nos dias que a Doutora mandar. Quer pagar o que a menina tem direito dentro das condições que hoje conseguiu com seu trabalho. Quer deixar a casinha que tem para ela também. É. A menina hoje tem dois irmãos e tem os mesmos direitos que eles. Não quer que seu nome saia da certidão da menina. Deve ter um jeito para isso, Doutora. Ela não quer tirar a maternidade daquela que deu afeto. Concorda que ela é mãe também. Concorda que mãe é quem cria. Só quer que não tirem a sua maternidade em relação à menina. A senhora consegue entender?!

E o que a menina quer? Sim, a menina já é grandinha. Tem que ser ouvida.

E a Juíza pede a todos para saírem da sala. Fica sozinha com a menina e o apoio da equipe multidisciplinar. A menina abre um sorrisão para a Doutora, que chega a emocioná-la. Dá um abraço nela. Sente falta do seu filho que está a quilômetros de distância, que não pode morar consigo porque sua Comarca não lhe oferece condições… mas, isso é outra história… ou a mesma história?!… Afasta a menina de si e lhe diz que vão conversar[6].

Pergunta se ela sabe o que está fazendo ali. Ela sorri, agora de maneira tímida, olhando para baixo. Mas, diz que é para a Doutora dizer quem é sua mãe. A Juíza pensa na simplicidade daquele pensamento e na complexidade da sua decisão. Diz à menina que é uma decisão que, diferentemente de muitas outras que envolvem crianças que passam por abandono, no caso dela envolve muito amor.
Pergunta se ela já ouviu a sua história contada por sua mãe biológica. Ela diz que não. Pergunta se ela quer ouvir. Ela diz que sim. Coloca a menina de frente para o computador, com o fone de ouvido e projeta o vídeo com o depoimento da sua mãe. Ocorre à Juíza que a mãe biológica da menina tinha apenas 01 (um) ano a mais que a menina tem hoje quando ela foi gerada. A menina fixa os olhos na tela, vai ouvindo e se aproximando, mais e mais. Em determinado momento chega a tocar na tela do computador com o dedo. Sua face revela mil dúvidas se dissipando. Vezes ela fica séria. Vezes ela chega a sorrir. E se mantém sempre serena. Como a menina é serena! Como aparenta ser a pessoa mais emocionalmente equilibrada que foi ouvida nesse dia. Surpreende a Juíza.

Termina o vídeo. A Juíza está apreensiva. Como ela vai lidar com informações tão densas?! A menina sorri. Agradece com os olhos. Acalma a Juíza. Pergunta se pode falar…
A Doutora diz que sim. Mas, antes pergunta a menina se ela sabe o que é o Supremo Tribunal Federal. A menina diz que é aquele lugar que os Doutores vestem uma capa preta parecida com a do Batman?! Ambas sorriem. A Doutora diz que sim. Explica que o Supremo toma decisões muito importantes e que já decidiu uma situação parecida com a da menina[7]. Ela arregala os olhos. Fica curiosa. A Juíza segue explicando o que é a dupla maternidade, achando que encontrou a solução ideal. O rosto da menina vai se modificando. Fica triste. Os ombros cerram. O sorriso quase desaparece.

O que você acha, meu anjo?! A menina séria começa a falar. Eu até quero ser amiga “dela”. Eu acreditei em tudo que ela falou. Não me oponho a vê-la, a ligar, a conversar, a conhecer os filhos dela. Vou ficar feliz por isso. Mas, sabe, Doutora, eu já tenho a minha mãe… balança as mãos… olha para cima… a minha mãe é a minha mãe… dá mais risada… a senhora entendeu?! Minha mãe é (diz o nome da mãe adotiva). E eu não quero ser diferente. Eu não quero ter que explicar toda a minha história toda vez que eu tiver que apresentar a minha carteira de identidade e as pessoas me perguntarem porque nela constam dois nomes de mãe. Eu só quero ser igual a todo mundo e ficar na minha família, com meu pai e minha mãe (os únicos que a menina conseguia representar como tais). A senhora entende?! Esse é o meu melhor interesse.

A Justiça da Infância e Juventude profere mais uma decisão de acordo com remansosa jurisprudência, fundamentada nos princípios da Prioridade Absoluta, Melhor Interesse da Criança, da Afetividade, do direito à identidade, à igualdade e à liberdade individual. Baseada no parecer da equipe multidisciplinar, que afirma que o menor sofrimento da menina estará em reconhecer a maternidade afetiva apenas.

E pela primeira vez, a Juíza entende o significado de uma das suas aulas de IED (Introdução ao Estudo do Direito). Justiça é dar a cada um o que é seu. À menina, a proteção da infância e juventude. A Ela a realidade de que não há solução messiânica na Justiça. Não há varinha de condão. Nem sempre há final feliz. Há uma imensa lacuna na proteção à mulher e o Poder Judiciário não tem o poder de supri-la. Sente-se impotente, ansiando por gritos sociais de sororidade.

Original disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/31/juiza-as-maes-e-o-melhor-interesse-das-meninas/

Reproduzido por: Lucas H.

Nenhum comentário: