RIO - O entendimento de um desembargador de Minas, que, nesta
quinta-feira, decidiu restituir a guarda de uma menina de quatro anos
aos pais biológicos, contraria o interesse da criança, avaliam
especialistas ouvidos pelo GLOBO. Após denúncias de maus-tratos, M. E.
foi retirada da família de origem aos dois meses de idade, junto com
outros seis irmãos, e permaneceu em um abrigo até ganhar um novo lar,
onde vive há mais de dois anos. Agora, terá de trocar de pais novamente.
O mérito do recurso ainda será julgado pelos desembargadores da 7ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas.
— Essa decisão é um
completo absurdo, pois esquece que a criança é um sujeito de direitos,
como diz a Constituição e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). O
que é melhor para essa criança? Ela foi retirada da família biológica
ainda bebê, porque o pai não trabalhava e bebia, e a mãe tinha problemas
psicológicos. Após mais de dois anos com a família adotiva, a Justiça
decide que ela vai retornar para a família biológica. Mas tudo o que
essa criança sabe da vida dela é que os pais adotivos são os pais dela,
que ela tem amor, tem primos, tem avós, tem uma família inteira. Agora, a
gente vai dizer para ela: “Minha querida, este pai não é mais o seu
pai; esta mãe, não é mais a sua mãe”. Ela não tem como entender isso.
Essa decisão é uma crueldade, uma violência contra criança — observa
Suzana Schetinni, presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à
Adoção (Angaad).
Procurador de Justiça do Estado do Rio, Sávio
Bittencourt também tece críticas à decisão monocrática do desembargador
Belizário de Lacerda, da 7ª Câmara Cível do TJ de Minas, que seguiu
decisão anterior ao rejeitar recurso proposto pelo família adotiva.
Segundo ele, neste caso, os direitos dos adultos foram priorizados em
detrimento dos direitos da menina.
— Se criança foi colocada em um
abrigo e, depois, quando já está adaptada ao novo lar, determinam o
retorno dela aos pais biológicos, ela está sendo tratada como uma coisa,
como uma propriedade de sua família biológica. Não é justo desfazer os
vínculos já criados. Eu tenho profundo respeito pelas decisões
judiciais, sou procurador de Estado, mas essa decisão tem o meu mais
sincero repúdio — diz Bittencourt, autor do livro “A nova lei de adoção:
do abandono à garantia do direito à convivência familiar a
comunitária”.
Decisão é um preconceito contra a adoção, avalia procurador
A
dona de casa Maria da Penha Nunes e o mestre de obras Robson Ribeiro
Assunção perderam a guarda dos sete filhos em 2009. Na ocasião, o
Ministério Público solicitou à Justiça a destituição do pátrio poder do
casal. Enquanto o processo corria, a caçula despertou o interesse dos
empresários Liamar Dias de Almeida e Válbio Messias da Silva, que têm
uma filha de 12 anos e estavam há cinco anos da fila de adoção. Durante o
processo de adoção, a família de origem entrou com recurso informando
que já estava em condições de se responsabilizar pelos filhos, pois
Maria teria se tratado de uma depressão e Robson, deixado de beber.
Quando
decidiu restituir a guarda aos pais biológicos, Lacerda teria levado em
conta o que diz a Lei Nacional de Adoção, de 2009, que considera ser
necessário esgotar todas as possiblidades de permanência da criança ou o
do adolescente na família de origem antes de optar pela adoção. O
entendimento do desembargador também teria se baseado em laudos que
afirmam que os pais biológicos hoje têm condições de criar os filhos, e
na importância de se promover a convivência entre os irmãos.
Porém,
o procurador de Justiça do Estado do Rio observa que, embora a lei deva
ser respeitada, é preciso considerar o que é melhor para criança:
—
A criança ou o adolescente tem que ficar junto com os irmãos quando não
há outra alternativa melhor. Mas, neste caso, a menina já está adaptada
à família adotiva. Essa decisão encerra um profundo preconceito contra a
adoção.
Suzana tem a mesma opinião ao destacar que os pais
adotivos estã sendo considerados, tão somente, como substitutos. E diz
que o entendimento da Justiça neste caso de Contagem (MG) tem deixado
muito intranquilos quem já entrou ou pretende entrar com um processo de
adoção:
— Está abrindo uma ferida em todo o instituto da adoção.
Recebemos inúmeras ligações de pais desesperados com o precedente que
essa decisão pode abrir.
Com a experiência de quem atuou por
vários anos como juiz da Vara de Família, o presidente da Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB), Nelson Calandra, que é pai de cinco
filhos, um deles, adotado, ressalta que a decisão é delicada, mas, assim
como os demais, considera que o interesse da criança deve ser
prioridade.
— Como juiz dessa área, eu sempre me preocupei com
essas alterações de guarda. A criança não é um bola, não é um bambolê,
para ficar passando de uma mão para outra. Os interesses da criança
devem ser prioridade. Essa questão de só olhar para o adulto, e não para
criança, pode provocar uma decisão equivocada, que, muitas vezes, vai
causar um dano grave à criança. Mas é importante dizer que pobreza não é
problema, ser uma família numerosa também não é problema — enfatiza
ele, numa referência à família biológica de M.E.
Caso pode suscitar debate sobre a Lei Nacional de Adoção
Já
o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),
Rodrigo da Cunha Pereira, destaca que a decisão do desembargador tem com
base um dos incisos do artigo 19 da Lei Nacional da Adoção, que diz “a
manutenção ou reintegração de criança ou adolescente à sua família terá
preferência em relação a qualquer outra providência”, mas não respeita o
melhor interesse da criança. E avalia que atenção despertada pelo caso
pode ajudar a envolve a sociedade em um amplo debate sobre a legislação.
—
O julgamento é importante não só pelo caso em si, mas para ajudar na
reflexão sobre o processo de adoção no Brasil, onde existem milhares de
crianças para serem adotadas e milhares de famílias interessadas, mas a
fila não anda. E isso acontece também porque há um equívoco na lei, que é
conceitual, pois considera que a família biológica é mais importante do
que a família de afeto. Só que a Psicanálise, a Antropologia e o
próprio Direito, por meio de várias decisões, já mostraram que a família
não é um fato natural, mas da cultura. Os laços de sangue não são
fortes o suficiente para sustentar isso.
De acordo com os dados
mais recentes do Cadastro Nacional de Adoção, criado pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), existem na fila 5.439 crianças e adolescentes
aptos para a adoção e 29.806 famílias interessadas, considerando
informações atualizadas até a semana passada.
Guarda compartilhada pode ser uma solução?
Na
opinião de Calandra, uma saída para o caso em questão seria estabelecer
a guarda compartilhada, como ele mesmo já decidiu em outras ocasiões.
—
A família biológica tem o direito de ter o filho perto; a família
adotiva, também. A guarda compartilhada é uma ferramenta que pode
resolver. Devemos compartilhar o amor, e não, disputar o ódio.
Bittencourt, porém, acha que a guarda compartilhada não seria uma boa solução:
—
É uma forma de não romper o poder da família biológica, que, na
verdade, deu origem a tudo isso. Se essa família se recuperou, agora já é
tarde demais, pois a criança já estabeleceu outros vínculos. A guarda
compartilhada só vai criar confusão na cabeça da criança.
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