quarta-feira, 18 de novembro de 2015

“SE ESTE FILHO FOR MEU, MÃE DAS MÃES, COLOQUE-O NOS MEUS BRAÇOS” (Audrey Pedote) (Reprodução)

17/11/2015
Por Nadia Serra
“Quando eu soube que a amiga de uma amiga estava tentando ter um filho sem sucesso e ia partir para a adoção, quis escrever uma carta para ela contando nossa história. Nós sabemos que temos uma longa jornada pela frente, mas hoje somos tão felizes com a família que construímos, que queremos inspirar outras pessoas.
Thais, querida,
Sempre acreditei nos planos de Deus, sabia lá no fundo, beeeeem no fundo, que algo de bom aconteceria e que teria sim nos meus braços, nosso filho ou filha tão desejado. Me apeguei muito a Nossa Senhora, mãe das mães, nesta nossa jornada. Meu marido, minha fortaleza, esteve cada momento e cada segundo ao meu lado, vivenciando e partilhando a emoção do que chamamos de “as dores do parto”.
Comecei a tentar a engravidar aos 33 anos e depois de 1 ano tentando, sem nenhum sucesso, partimos para uma sequência de 5 inseminações seguidas da indicação para a fertilização in vitro. Na terceira tentativa decidimos que seria a última, já não tínhamos mais nervos para insistir. Véspera do Dia das Mães, uma hemorragia e perdi as duas vidas, os dois bebês. Quanta tristeza… Bom, a próxima etapa seria a adoção de óvulos e o médico disse que a probabilidade de dar certo era maior do que com os meus próprios. Poderia ter embarcado por esse caminho, mas assim como eu, meu marido não queria tentar uma gravidez a qualquer custo.
Nesse período nós adotamos um cachorro, o Thunder, nosso primeiro contato com alguém que merece amor, cuidados, responsabilidade e paciência. Um bálsamo depois de um período de tanta pressão. Um dia na terapia ouvi: “Me chama a atenção sua capacidade de amar. Você está me mostrando a foto do seu cachorro, de outra espécie, como se fosse seu filho. Então, pensa se sua história não é amar o diferente. Ao invés de amar alguém que você gere, amar alguém que você escolha amar.” Clec!! É isso, eu estou nessa vida pra amar o diferente! Quero adotar um filho.
Juntei meus cacos e fui ao fórum buscar informações sobre adoção. Entreguei toda a nossa vida traduzida em documentos, atestados de saúde física e mental e muitas fotos. Mas a pior parte foi ter que traduzir num questionário nossa expectativa para a escolha da criança como sexo, idade, cor, antecedentes, doenças ou deficiências pré-existentes. Eu só queria um filho ou uma filha e aquelas perguntas eram exaustivas, aquilo tudo era muito cruel. Saí do Fórum com a convicção de que agora sim, estávamos no caminho certo. Me sentia leve, em paz e confiante, como não me sentia desde o início dessa história. Comecei a contar para as pessoas que estava grávida de novo. Não sei quanto tempo ela vai durar, mas tô grávida.
Aí a mãe de uma amiga, médica que atendia em um hospital na Bahia, nos colocou em contato com a assistente social da cidade. Decidimos comemorar lá nossos 10 anos de casamento e nos apresentamos pessoalmente para entregar nossos documentos, na esperança de que ela pudesse enxergar que realmente queríamos ser pai e mãe de uma criança. Podia ser um bebê, ter 1, 2, 3 anos, ser branca ou negra ou índia ou mesmo azul de bolinhas verdes…queríamos que ela sentisse a verdade da entrega que havíamos firmado em nossas vidas. Tínhamos apenas uma exigência: que tudo fosse feito estritamente dentro da lei, em frente ao juiz. Até 2007 era possível e legal a adoção direta, quando uma mãe biológica vai frente ao Estado e abre mão da guarda de seu filho para outro casal.
As semanas que se seguiram foram de muitos sustos: gêmeas desnutridas com pais alcóolatras, trigêmeos ainda em gestação…mas nada foi para frente, só a gastura da expectativa. Ligava para ela toda semana. Foi quando numa tarde me peguei lavando roupinhas de bebê e colocando no varal junto com toda a minha fé de que iria, em breve, ter um bebê ali dentro.
Uma tarde, a assistente social da Bahia me ligou dizendo que um recém-nascido, menino de 7 dias, estava correndo risco de morte, por desnutrição e que ela já tinha acionado o Estado e o Conselho Tutelar e da família, um caso urgente de adoção. Lembro como se fosse hoje. Na fila de embarque recebo outra ligação da Bahia. A mãe tinha desistido. O chão se abriu sob os meus pés, mas o Carlos me disse: “nós vamos de qualquer forma, nem que seja para voltar de mãos abanando”. Chegando lá, a mãe tinha mudado de ideia novamente, mas com uma condição: queria nos conhecer pessoalmente. Fomos. Eu pensei que soubesse o que é pobreza e fome. A casa era de pau-a-pique, toda torta, onde 8 pessoas dividiam duas camas em um cômodo, a cozinha era no quintal e o banheiro no mato, atrás da casa. Todos mantidos pela avó, uma linda mulher negra, forte e guerreira que trabalhava no lixão para ganhar R$ 30 por mês. Fiquei chocada. Para o nosso desespero, a mãe tinha “fugido”. Precisávamos esperar. Apesar do risco de morte do bebê, o Estado não podia simplesmente tirá-lo da família biológica.
Foi então que a assistente social me perguntou: Quer conhecer o bebê?
Entrando na casa, elevei meu pensamento para Nossa Senhora e pensei, “Se este filho for meu, Mãe das Mães, coloque-o nos meus braços”. A segunda pergunta da assistente social: Quer segurar o bebê?
Naquele momento, tive certeza absoluta de que ele tinha nascido para nós. Um toquinho de bebê, 1.900 gramas, um anjo iluminado, um guerreiro que mesmo com fome parecia tranquilo. A avó dava água com farinha para matar a fome dele. Com a noite chegando e nada da mãe aparecer, precisávamos ir embora. Entrei em pânico por deixar o bebê lá, naquelas condições. “Vó, por favor cuide do bebê, segure-o no colo a noite toda, não permita que sua filha o leve para longe. Eu prometo de todo o meu coração, ser a melhor mãe que eu puder. Cuidar, proteger e amar para sempre”, falei segurando as mãos da avó. “Fia, esse fio é seu, nasceu pro cê. Fica em paz que amanhã a mãe vai no Juiz pra fazê o que tem que sê, fica em paz. Ele até parece com o seu marido, bonitão…kkkk”.
Passei a noite orando para todos os anjos e santos para que a mãe não mudasse de novo de ideia. Chovia à cântaros e meu medo era que a casa caísse sobre o bebê. Parecia que Deus lavava todos os pecados do mundo, todos os erros e passos tortos, e eu repetia um mantra sem parar…depois da tempestade, vem a bonança. A mãe esteve o tempo todo na casa da vizinha, espiando a gente de longe. Depois de ter passado a noite com o bebê, se despedindo dele, doou mais um filho, seu 6º filho, aos 26 aos. Antes de nos apresentarmos ao juiz, o encontro. Ainda assustada, ela conseguiu nos olhar nos olhos. Quero conseguir transmitir isso aos meus filhos. O ato desta mulher foi de coragem, amor e compaixão. E foi isso que me fez ser mãe.
Até aquele momento, o bebê não tinha nome, era apenas “nenê”. Mas eu já tinha o nome, escolhido aos meus 6 anos de idade: meu primeiro filho vai ser menino e vai chamar Davi! As palavras têm mesmo poder, sempre acreditei nisso. Ali começavam então os primeiros momentos da nossa família, hospedados num simples hotel numa cidadezinha da Bahia e completamente anestesiados e deslumbrados com o nosso filho. Voltamos pra casa na manhã seguinte. Viagem tranquila, com direito à recepção de tio, vovó e vovô, e seguimos direto para o hospital onde o médico nos esperava para uma avaliação profunda da saúde do bebê.
Chegando em casa, nossa sala de estar parecia uma loja: carrinho, bebê conforto, roupas, brinquedos, uma festa! Que especial nossa família! Dia seguinte, olhos colados no Davi e na tela do computador para ver os resultados dos exames. HIV negativo! Abraço apertado, choro descontrolado, o nosso maior temor tinha sido afastado completamente.
Quando ele completou 6 meses, já estávamos há um ano na fila de adoção, recebemos a carta do Fórum de Santo Amaro. Sim, queríamos mais um! Fizemos a ratificação do questionário de escolha da criança, de acordo com a nossa nova realidade. Um dia o Carlos me liga: “Me ligaram do Fórum, tem uma menina negra de 2 meses e meio num abrigo na Guarapiranga.” Nossa filha nasceu para nós!!! Chorei, gritei, pulei com o Davi no colo, viva!!! Sua irmã chega amanhã!!! Saímos aos pulos, rumo a nossa pequena princesa. O castelo já estava à espera! E como ela vai se chamar? Ana, nome de uma amiga negra linda, Jade ou Isabela? A hora que ela chegou, toda de cor de rosa, com uma fita no cabelinho preto…ela era linda! Vê-la pela primeira vez foi único. Olhei para o Carlos e disse: É Bela, Isabela. Ela nos fez ter a certeza absoluta de que fazíamos parte da listinha VIP de Deus.
De lá para cá esses dois só ampliaram seus vínculos de amizade e companheirismo. Cada um tem uma caixa de memórias, onde guardamos as primeiras roupinhas, fotos da Bahia e do abrigo, tesouros pessoais de cada um deles. Todos nós temos direito a uma história verdadeira, ainda que difícil. É ela que nos legitima. Não dá para cuidar de uma árvore, se cortarmos suas raízes. Os “pais que deram a vida”, assim nós nos referimos a eles, nos ajudaram a nos tornar pai e mãe. Eterna gratidão e respeito a eles. Nos dias das mães e dos pais, compramos flores e fazemos uma oração, pedindo proteção e mandando amor a quem só devemos gratidão.
Muito além dos laços de sangue, o que nos unem são laços de amor, respeito, admiração e entrega, na certeza que nascemos uns para os outros.
Enfim, Thais, espero poder ter te inspirado com a nossa história.
Boa jornada.
Beijo, Audrey
Hoje o Davi tem 8 anos e desde sempre o se mostrou um menino forte, esperto, inteligente, curioso e amoroso, muito amoroso.
A Bela tem 7 anos, linda, amorosa e feliz, muito feliz. Sempre bem-humorada e tem uma gargalhada deliciosamente pura.
Audrey, querida,
Obrigada por nos dar a oportunidade de compartilhar sua história tão linda e inspiradora.
Beijo Vivi.


Reproduzido por: Lucas H.

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