segunda-feira, 3 de julho de 2017

Luciana Buriasco - Identidade, Adoção e Cultura: quem somos? (Reprodução)

26/06/2017

Os processos de adoção - salvo as adoções que chegam à Justiça já prontas ou de padrastos e madrastas, estas últimas agora diretamente nos cartórios de registro civil em Mato Grosso do Sul - são rápidos, respeitando-se apenas o estágio de convivência nos casos de crianças maiores de um ano. São precedidos, contudo, de um processo mais demorado, que pode chegar a cinco ou seis anos, chamado de destituição do poder familiar. Na verdade, há ainda um primeiro processo, chamado medida de proteção, através do qual se aplica medidas do Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive a de acolhimento da criança ou adolescente numa instituição, antes designada pela lei de abrigo, e ant es ainda de orfanato.

Em casos graves, portanto, como de abandono, negligência severa, drogadição, alcoolismo ou abuso sexual, a criança ou o adolescente é retirado(a) dos pais ou responsáveis e colocados nesta instituição. Nos meses seguintes, os órgãos como CREAS, CRAS, Conselho Tutelar, Assistente Social da instituição, entre outros, e conforme suas funções, tentam algum trabalho de recuperação da família e buscam familiares interessados na guarda da criança ou adolescente. De regra, como o acolhimento já é criterioso, a situação não se modifica e o Ministério Público, de posse de laudos e estudos destas entidades, ajuíza a ação que definitivamente retirará dos pais a possibilidade de serem pais daquelas crianças ou adolescentes.

Já de início, através de liminar, tutela de urgência na nomenclatura do Novo Código Civil, decorrido prazo do agravo, a criança pode ser colocada com o casal que estiver em primeiro lugar da lista dos pretendentes à adoção, elaborada pela própria Justiça, em âmbito nacional. Somente assim um bebê pode ter um lar nos primeiros meses de vida. É que se esperasse o tramitar desta ação, talvez passasse dos cinco anos de idade, que lhe garantem uma adoção, sem contar toda a privação de o quanto antes ter um lar. Mais ainda, há necessidade nesta decisão de desde já se determinar o cancelamento do registro de nascimento original e a expedição do novo, com o novo nome da criança, dos pais, e mesmo naturalidade – única forma de lhe conferir uma real nova identidade, evitando-se constrangimentos na escola, especialmente nestes primeiros anos de vida, que a criança não tem bem condições de entender o que está acontecendo.

Nem todos os juízes fazem isso, embora seja aconselhável[1] e nossa Comarca tenha levado à criação de um precedente no Superior Tribunal de Justiça, da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que disse que muito embora questionável a concessão da liminar sem oitiva da parte contrária, está sim tal medida ao alcance do Poder Judiciário, “não se constatando nenhuma vulneração a dispositivos de lei, mas ao revé s, uma rigorosa observância de tudo quanto preconizado no ECA”, Estatuto da Criança e do Adolescente[2].

Depois disso, pouca coisa muda no processo. Ouvem-se novas testemunhas, por vezes novos laudos, e se sentencia, confirmando a liminar.

Ao falar dessa liminar, não mencionei adolescente. É que há pouca efetividade, embora possível, em se prolatar tal decisão a um adolescente. Dificilmente, afinal, seria adotado. Às vezes conseguiria uma adoção internacional, algo de que normalmente têm medo, pela brusca inserção numa cultura que sequer ouviram falar como seja. O melhor caminho para o adolescente é certamente sua colocação em família acolhedora, programas que lhe permitem viver numa família que faz o papel de instituição de acolhimento, de onde, como em tais instituições, saem aos 18 ou 21 anos no máximo, devendo, pois, trabalharem para seu sustento, incluindo o necessário à moradia.

No filme Lion, Uma Jornada Para Casa, o personagem se perde dos pais, é recolhido a uma instituição e adotado, ainda criança, por uma família estrangeira. De indiano, passa a australiano. Não é o normal de nossos casos, seja por não haver problemas severos na família de origem, seja por ser criança, quando mais normal é a adoção por pessoas da mesma nacionalidade. Mas o filme é baseado em fatos reais. A questão muito bem posta no filme é acerca de sua identidade. Saroon é indiano ou australiano? Que cheiros ele está acostumado a sentir? De que comidas se lembrará da infância? Quais são suas favoritas? Qual paisagem lhe é familiar? Quem são seus pais? É pobre ou rico?
Mais a nível inconsciente, estas questões permeiam todas as adoções, dependendo do maior ou menor tempo de convívio com a família de origem. Há adolescentes, adotados quando criança, que repetem a conduta dos pais e se tornam drogados, por exemplo. Há os que escolhem profissões mais singelas, marcas de roupas, enfim, que seus pais adotivos. Há privações de afeto[3] que levam a doenças como esquizofrenia, depressão, fora deficiências leves nem sempre constatadas antes da adoção. Por tais razões, terão por vezes dificuldades de atender às expectativas da família adotiva. Mas também não pertencerão mais à sua família biológica. A cultura é algo tão marcante e intrigante que nos modifica para sempre. Quando conhecemos outra comida, nunca mais voltamos a comer o que comíamos antes: iremos relembrar algum dia, mesclar algo, ter vontade de experimentar ainda novos sabores. Outras visões da vida se acrescentarão às nossas, e nosso olhar nunca mais será o mesmo.

Há um filme muito bom, que não fala de adoção, mas de como os olhos dos outros mudam nossos olhos. É A Vida dos Outros, um filme alemão, que venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2007, sobre um espião que, encarregado de vigiar o apartamento de um escritor, experimenta coisas que lhe eram muito novas, como sexo com amor e raiva extravasada ao se tocar uma música no piano. Esta para mim sem dúvida a melhor cena do filme. Ele nunca mais foi o mesmo.

Quando um adolescente faz um intercâmbio e mora por vezes em outro país, ou mesmo filhos saem para estudar ou se casam, criam novos hábitos, por vezes muito diferentes dos do lar de origem. Somos sempre tocados pela cultura, pela vida dos outros, mudando de lar, viajando, vendo filmes, peças de teatro, lendo livros, convivendo com as pessoas. Podemos nos lembrar de uma época de nossa vida, mas jamais seríamos os mesmos se novamente colocados naquela situação.

Chico Buarque, em parceria com Tom Jobim, diz na música Sabiá que vai voltar e “deitar à sombra de uma palmeira que já não há; colher a flor, que já não dá”.

Essa contaminação, para alguns, é na verdade um movimento inexorável da vida, um enriquecimento que não para nunca, nem ninguém nos tira.

Quem somos? Esse alguém em algum lugar do passado ou hoje? Esse alguém da família biológica ou da família adotiva? De qual país se passamos por mais de um? Somos tudo isso. O passado está em nós, a biologia, país ou cidade de origem. Mas a esta altura, já se transformou em outra coisa e nos fez quem somos. Podemos comer curry e molho barbecue (sabor indiano e australiano), ter saudade, mas também sonhos de futuro, e muitos, muitos modelos de vida a aumentar nosso cardápio de escolhas.

Não temos, no tema da adoção, portanto, que preservar vínculos biológicos em detrimento de afetivos. O bem-estar da criança e do adolescente é o grande guia. Uma nova identidade é possível. Sempre ficará algo da anterior. Que seja uma insegurança. E se prepare os pais adotivos para isso. Não tem problema. De outro lado, se a lei permite esse recomeço, deve ser priorizado pela Justiça. Não se deve pensar em direito à criança e sim no direito da criança, que é urgente.

[1]A Revista do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, edição de Fevereiro e Março deste ano traz entrevista da Vice-Presidente da instituição, advogada e Desembargadora aposentada do TJRS, Maria Berenice Dias, em que critica os juízes pela insistência no vínculo biológico e fala, entre outros, da tutela de evidência. Como esta tem seus casos de aplicação bem específicos, tenho me utilizado da tutela de urgência, mas nesse sentido.

[2]Do corpo da decisão - Recurso Especial n.º 1.654.099-MS (2015/0190993-3), julgado em 4 de abril de 2017.

[3]Refiro-me à teoria exposta no conjunto de textos que compõe a seguinte obra: Winnicott, Donald W. Privação e Delinquência. Tradução Álvaro Cabral e Revisão Mônica Stahel. 5.ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.


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