Amor sem preconceito: Uma história de amor um pouco diferente
Ana Manssour - ana.manssour@plenamulher.com.br
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4/11/2011
Todo tipo de amor vale a pena: a família Quadros Gerhardt.
* Com a colaboração de Tiago Dias
Lucimar aproveitou o horário de almoço para fazer uma das coisas que mais gosta: passear em uma livraria e descobrir os novos títulos nas prateleiras, desta vez com o intuito de desenvolver um trabalho de endomarketing na empresa. Em certo momento seu olhar cruzou com o de um dos vendedores e imediatamente sentiu que uma energia diferente se estabelecia entre eles.
Rafael, o dono dos grandes olhos verdes que trabalhava na livraria, marcou a lembrança de Lucimar, que, como não conseguiu vencer a timidez no primeiro dia, voltou no dia seguinte com a desculpa íntima de pesquisar mais títulos para o trabalho. Avanços e recuos, trocas de palavras, encontros, refeições a dois, a descoberta de muitas afinidades, o compartilhamento de amigos e de interesses, e o namoro foi ficando cada vez mais sério...
Lucimar Quadros, bancário, e Rafael Gerhardt, consultor, estão juntos desde 1995, o que por si só é quase um assombro, já que nos dias de hoje raramente os relacionamentos de casais duram mais do que cinco ou seis anos.
O amadurecimento da relação
Primeiro começaram a viajar juntos, depois Rafael foi morar no apartamento de Lúcio, como é mais conhecido entre familiares e amigos, e logo já estavam fazendo planos de um futuro em comum. Aos poucos foram crescendo e se fortalecendo como casal. Fizeram muitas viagens a dois e festas-surpresa de aniversário com shows, dança e convidados; construíram uma casa na praia para desfrutar a companhia dos familiares e amigos nos finais de semana e férias. Em seguida, começaram a sonhar com a casa própria, um apartamento maior, de dois quartos, com garagem, pois ainda moravam em um pequeno apartamento de um dormitório e pagavam mensalidade em um estacionamento para o carro.
No trajeto de suas idas e vindas para a praia nos finais de semana e feriados, sempre admiravam um condomínio à beira da BR-290, mais conhecida como Freeway, numa área ainda dentro do município de Gravataí, no Rio Grande do Sul. O lugar tinha casas com pátios amplos, arborizados, como se fossem pequenos sítios, com um lago, um lugar de sonho. Certo dia resolveram parar e perguntar ao corretor que ficava no local se havia ainda alguma residência à venda. Surpreendentemente, não só havia como se encaixava no orçamento de ambos, talvez por ser mais distante da capital. Decidiram-se por fazer o negócio.
Dias depois, convidaram família e amigos irem com eles em caravana a um paraíso que – disseram – tinham conseguido emprestado para fazer um churrasco. É claro, lá vinha mais uma surpresa! Depois que todos já haviam estacionado e descido dos carros, anunciaram aos convidados que se tratava da casa nova da dupla. Felizes, todos comemoraram a merecida conquista.
Como todo casal, Lúcio e Rafael tiveram que enfrentar aventuras e desventuras, compartilharam alegrias e tristezas, viveram bons e maus momentos e conseguiram sempre superar tudo juntos. Houve a perda de um bom emprego de Rafael e a morte de entes queridos, e, claro, houve discussões e desentendimentos, como acontece em qualquer relacionamento. Mas sempre procuraram fazer dos limões uma limonada.
Compraram um bar e restaurante na cidade de Gravataí, que, enquanto mantiveram, foi também o local onde se realizaram várias festas cujo faturamento era revertido, muitas vezes integralmente, para algumas instituições carentes do município. A partir dessa época, os dois ficaram muito próximos de entidades e casas de passagem para crianças e adolescentes sem família.
Amor compartilhado
Mesmo depois de o restaurante já ter sido vendido e Rafael estar em novo emprego, continuaram colaborando com instituições, e passaram a se dedicar especialmente a uma casa de passagem onde ficam crianças de todas as idades enquanto aguardam serem adotados por uma família. Quase sem se darem conta, foram se envolvendo cada vez mais com as crianças e a vontade de aumentar a família nasceu naturalmente.
Primeiro se inscreveram para o Apadrinhamento Afetivo e, depois de cerca de um ano na fila sem ter nenhuma criança disponível, descobriram que quem estava na fila de Apadrinhamento não poderia estar na fila da Adoção. Decidiram, então, qualificarem-se para a adoção.
Realizaram todos os trâmites para isso: participaram de entrevistas, submeteram-se a consultas e exames médicos e psicológicos, receberam visitas de profissionais em casa e, finalmente, em 2007, foram considerados aptos para adotar. Embora a previsão de espera para adoção seja de cerca de cinco anos, Rafa e Lúcio tinham esperança que não demorasse tanto, pois haviam deixado em aberto cor e sexo da criança e expandido o limite de idade até cinco anos. “A maioria dos casais não quer negros ou crianças maiores, preferem brancos e bebês”, diz Lucimar.
Durante três anos Rafael foi inúmeras vezes ao Fórum para saber do andamento do processo e conversar com as assistentes sociais. Lúcio e Rafael estavam sempre a par da posição em que se encontravam na fila e no Cadastro Nacional de Adoção. Certo dia, Lucimar recebeu um telefonema do Fórum informando que havia três irmãos para adoção, mas, apesar da emoção e alegria, a razão falou mais alto e com dor no coração recusaram a oferta, pois não teriam condições de criar três crianças ao mesmo tempo.
No começo da tarde do dia 08 de outubro de 2010, uma sexta-feira, Rafael recebeu uma ligação das assistentes sociais avisando que tinham uma criança disponível para adoção e perguntando se os dois tinham interesse em conhecê-la.
A chegada do bebê
Com o coração aos pulos, Rafa telefonou para Lúcio, que veio do trabalho, em Porto Alegre, e juntos foram para o Fórum, no final da tarde do mesmo dia. Depois de conversarem com as assistentes sociais, conheceram a criança, um menino de menos de quatro meses, pele moreno-clara e quase sem cabelos, de nome João Vitor. Ao vê-los, o menino segurou-se nas camisas dos dois homens de tal maneira que chegou a comover as funcionárias que os estavam acompanhando, pois o gesto podia parecer pequeno, mas tinha grande significado.
O pedido do casal para ficar com o bebê naquele final de semana prolongado (emenda com o feriado do dia 12 de outubro) foi recebido como uma ordem. As assistentes sociais fizeram o impossível para conseguir a liberação, e às 21 horas do mesmo dia Lucimar e Rafael deixaram o Fórum com um termo de visitas prolongadas e o pequeno João Vitor nos braços.
A renovação do termo deveria ser feita logo após o feriado, de maneira a ir prorrogando-o até que pudessem ganhar a guarda. A ajuda do Fórum de Gravataí foi muito importante neste processo. “O pessoal foi muito atencioso desde o início. As assistentes sociais, a juíza e toda a equipe foram fundamentais para que conseguíssemos alcançar este sonho”, lembra Lucimar.
Como tudo havia acontecido muito rápido, Rafael e Lucimar não tinham nada preparado em casa para receber um bebê. Em plena véspera de feriadão tiveram que ir direto a um hipermercado para comprar roupas e mamadeiras para o filho. Ali mesmo, no estacionamento, João Vitor – que já chorava de fome – tomou sua primeira mamadeira, acalmando-se e também tranquilizando os pais, que estavam ficando desesperados com a choradeira, e quase chorando também.
Já no condomínio, foram à casa de um casal de vizinhos, seus amigos, pois eles tinham um filho já com dois anos e ainda guardavam roupas e acessórios de bebê que pretendiam doar para uma irmã que planejava engravidar. Porém, João Vitor foi o herdeiro desse tesouro, uma vez que, cumprindo a já conhecida tradição de surpresas na família, havia chegado sem aviso e pegando os pais desprevenidos.
O sábado foi especial. João Vitor foi apresentado oficialmente à avó, tia e tio (mãe, irmã e irmão de Rafael) e aos padrinhos (amigos dos pais), que já haviam sido escolhidos desde que haviam entrado na fila de adoção – embora eles não soubessem nem mesmo que Rafael e Lúcio tinham intenção de adotar uma criança.
Coincidentemente, nesse mesmo dia, um sobrinho de Lucimar, também afilhado de Rafael, estava de aniversário e havia um almoço de comemoração. Quando chegaram com João Vitor no colo a admiração e incredulidade de todos foram tão grandes que Lúcio e Rafael precisaram mostrar a documentação para comprovar a legalidade da situação. Foi o que bastou para a comemoração triplicar em animação e alegria.
O primeiro ano de João Vitor
João Vitor teve seu primeiro Dia da Criança recebendo todo amor e atenção de seus pais e rodeado do apoio incondicional do resto da família e de todos os amigos do casal. Certamente não guarda qualquer mágoa por ter sido rejeitado pela mãe biológica e por três casais heterossexuais quando ainda aguardava por adoção na casa de passagem e nem lembrará disso, graças aos pais amorosos que o acolheram.
Neste ano, João Vitor, ou JV, como os pais o chamam, comemorou duas datas de aniversário: a do registro de nascimento, que diz que ele nasceu em 14 de junho de 2010; e a de chegada a uma família de verdade, 08 de outubro de 2010. A primeira, com direito a festança: salão, música, comes e bebes, enfeites, brincadeiras, presentes, videobiografia e muitos convidados. Além da família, padrinhos e amigos, vieram também colegas de trabalho, escrivãs e funcionárias do Fórum, assistentes sociais e voluntários da casa de passagem. A segunda festa, em outubro, foi uma reunião mais íntima, no salão de festas do condomínio, mas com tanto amor e amizade quanto a primeira, e talvez com mais significado.
João Vitor frequenta a escola diariamente, onde está no nível maternal, e tem aulas semanais de natação. Em casa, Rafael e Lucimar se revezam nos cuidados com o filho: banho, troca de fraldas, alimentação. Brincam juntos, cantam e dançam, mas o carinho e o amor não são desculpa para deixar de colocar limites em João Vitor. O casal estabeleceu regras e uma rotina para que JV sinta-se amparado e seguro e aprenda a viver em sociedade. “Além disso, ele precisa aprender a tomar cuidado por si mesmo e não mexer em alguns lugares que oferecem mais perigo”, explica Rafael.
Adoção e união homoafetiva: sem preconceito
A família já notou situações em que foram recebidos com estranheza, como quando, na escolinha, a diretora insistiu para falar com a mãe de João Vitor, pois ainda não sabia que JV tinha dois pais ele tinha dois pais e nenhuma mãe. “Mas de maneira geral, isso tudo é rapidamente superado, somos tratados em pé de igualdade com as outras famílias. Nos olham como dois homens e uma criança”, conta Lucimar. De qualquer forma, já pensam em como orientá-lo, tornando-o consciente da sua história e com isso fortalecido para enfrentar e defender-se em eventuais situações de bullyng no futuro.
Em maio deste ano foi emitida oficialmente a nova certidão de nascimento do menino, em que constam seu nome e sobrenome completos, com a ascendência dos pais: João Vitor Quadros Gerhardt, filho de Lucimar Quadros da Silva e Rafael Gerhardt. Na carteira de identidade de João Vitor e na certidão de nascimento, o espaço para informar a filiação não distingue “pai” e “mãe”, nem indica “avós maternos”, o que facilita o procedimento de confecção dos documentos sem maiores dificuldades. E Rafael e Lucimar já possuem uma Declaração de Vida em Comum registrada em Cartório desde 2004, feito na época para Rafael ter direito a ser incluído como dependente no plano de saúde de Lucimar.
Mas há lugares que não estão adaptados a esta realidade. “Perguntam sempre o nome da mãe e nós temos que informar que são dois pais. O pessoal ainda não está preparado para estes casos. Nem é uma questão de preconceito, é só que alguns formulários e documentos ainda não preveem essas coisas. Quando é preciso, eu acabo ficando registrado no campo destinado a mãe”, conta Lucimar.
João Vitor está com a documentação em dia. Tem um lar e uma família que lhe dá carinho, atenção e dispensa todos os cuidados que uma criança necessita. O destino dos três estava traçado, todos ganharam um presente da vida. Embora João Vitor ainda não compreenda o mundo em que vive, certamente um dia saberá o quanto foi especial o entrelaçamento de suas histórias.
Em 5 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal declarou possível o reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, com o nome de “uniões homoafetivas”, conferindo a ambas as partes os mesmos direitos que homens e mulheres têm nas chamadas uniões estáveis. É um marco na legislação e na sociedade brasileiras e mais um passo em direção ao respeito das diferenças, à solidadriedade e ao reconhecimento de uniões motivadas por relações afetivas independente de gênero.
A história desta família é uma prova de que amor não tem cor, não tem religião, não tem sexo, não tem idade. Amor não tem preconceito, é o mais forte alicerce da felicidade e tem a capacidade inigualável de, ao ser compartilhado, multiplicar-se.
Silvana do Monte Moreira, advogada, sócia da MLG ADVOGADOS ASSOCIADOS, presidente da Comissão Nacional de Adoção do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, Diretora de Assuntos Jurídicos da ANGAAD - Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção, Presidente da Comissão de Direitos das Crianças e dos Adolescentes da OAB-RJ, coordenadora de Grupos de Apoio à Adoção. Aqui você encontrará páginas com informações necessárias aos procedimentos de habilitação e de adoção.
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
Amor sem preconceito: Uma história de amor um pouco diferente
Postado por
Silvana do Monte Moreira
às
11:07
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