Renata Mariz | Correio Braziliense | 2jul12
MP traça perfil de envolvidos no esquema e encontra padrões nas irregularidades, como adotantes e adotados que vivem em países diferentes. Há casos em que apenas um europeu se responsabilizou por pelo menos seis brasileiros.
Dos 75 processos de adoção de maiores de idade localizados pelo Correio em comarcas do interior de Goiás e da capital, 45 trazem os mesmos adotantes. Impressiona casos como o de um homem que figura em cinco ações, distribuídas em três diferentes municípios, pretendendo se tornar pai de pelo menos seis adultos. Os brasileiros que se aventuram no esquema de simular uma situação familiar inexistente para obter a cidadania europeia têm, em geral, entre 30 e 45 anos, de ambos os sexos, nascidos em vários estados do país e residentes no exterior. Já os adotantes são portugueses e italianos, principalmente, muitos com baixa escolaridade, e idosos.
O perfil foi traçado com base nos 10 processos que chegaram na segunda instância do Ministério Público (MP) goiano. Um dos que mais chamaram atenção, relata a procuradora Laura Maria Ferreira Bueno, é o de uma portuguesa de 78 anos que se apresenta como aposentada e conta ter conhecido e se afeiçoado a uma brasileira, residente na capital inglesa. "A adotante alega morar em Londres, mas a procuração foi autenticada em Portugal. Além disso, essa senhora é analfabeta, assinou colocando a digital no papel", diz Laura.
A falta de dados nas ações é constante, segundo ela. "São processos pouco documentados. Na inicial, os brasileiros contam que foram para o exterior para ganhar a vida e encontraram essas pessoas lá fora, que as ajudaram. Mas não dizem em que situação permanecem lá, se estão regulares ou não", diz Laura, sem entrar em detalhes, pois os processos correm em segredo de justiça. "O que nos assustou foi a quantidade. E por que em Goiás? Porque em três comarcas pequenas de Goiás, se há nos processos brasileiros nascidos em São Paulo, na Bahia, ou seja, muitos não são nem nascidos em Goiás?"
Além dos pontos inusitados das ações, ela verificou atropelos formais que estariam sendo cometidos. Um deles é a aceitação, por parte do Judiciário, do pedido de adoção feito por procuração, sem ouvir as partes pessoalmente. Processos julgados sem o conhecimento do Ministério Público foi outro problema identificado. "No meu entendimento, por se tratar de uma ação de estado da pessoa, é obrigatória a participação do promotor, mesmo sendo o adotando capaz. Soubemos que isso não está acontecendo em alguns casos", diz Laura Maria.
Há ainda a necessidade, na avaliação de Laura, de se ouvirem os pais biológicos. "Mesmo que não seja preciso consentimento, eles têm que, no mínimo, participar do processo, pois estão perdendo a paternidade, o direito de ser cuidado na velhice pelo filho, conforme o Estatuto do Idoso, entre outras coisas. Em muitos processos, não há sequer menção aos pais verdadeiros", afirma. O ineditismo das ações levou inclusive a uma discussão, entre magistrados e promotores em Goiás, sobre o foro competente para analisar os pedidos de adoção: se no país do pai ou mãe que está adotando ou no Brasil.
Todos concordam, entretanto, sobre o que deve ser o real objetivo da adoção. "É um dos instrumentos mais nobres do direito de família, por meio do qual alguém recebe um filho em sua plenitude. A lei diz que tem que se fundar em motivos legítimos, mesmo no caso do maior de idade. E não me parece legítimo se a única finalidade da adoção for regularizar uma situação no exterior", afirma Laura.
Desconhecimento
A Polícia Federal, o Ministério da justiça, o Itamaraty e as embaixadas de Portugal no Brasil — a brasileira em solo português e a representação do Brasil em Londres — foram consultados ao longo da última semana pelo Correio. Todos informaram não ter conhecimento da prática da adoção forjada. A dificuldade dos órgãos de controle se deve ao fato de que, uma vez deferida a adoção pelo Judiciário, o adotado corrige todos os documentos, colocando a nova filiação, sem que conste qualquer notificação dessa mudança.
Por um motivo nobre, mas que acabou auxiliando a fraude às leis de imigração, a legislação brasileira proíbe a divulgação da informação de que o indivíduo é adotado, em qualquer um dos seus documentos, para evitar preconceito contra quem não tem pais biológicos. Sobre os benefícios obtidos com a adoção, o Consulado-Geral do Brasil em Lisboa confirmou que "os direitos são idênticos aos do cidadão português, seja em matéria de residência ou acesso aos serviços públicos, em matéria de saúde, educação e segurança social".
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