Como advogada não poderei tratar de processo que tramita em segredo de justiça, como militante da causa da adoção posso e devo pronunciar-me sobre as notícias veiculadas na mídia nas segunda e terça-feiras, dias 23 e 24 de julho, respectivamente, no Jornal Nacional e no RJ TV.
Sou favorável à habilitação prévia dos adotantes, e não poderia ser diferente. É meu entendimento que para adotar o candidato deverá estar familiarizado com o instituto da adoção, deve provar sua idoneidade moral, sua capacidade para o exercício da parentalidade responsável, juntar certidões, atestados de sanidade física e mental, passar por estudos psicológicos e sociais, dentre outras exigências da lei.
Entendo, ainda, com amplo respaldo na jurisprudência que a “fila” não é engessadora do instituto da adoção, ou seja, a observância da “fila”, vale dizer, a preferência das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada criança, não é absoluta. E nem poderia ser. Excepciona-se tal regramento em observância ao princípio do melhor interesse da criança, basilar e norteador de todo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não se encontre sequer cadastrado no referido registro.(...) STJ, RESp n° 1172067-MG, Rel Min. Massami Uyeda, pub. 14/04/2010.
Obviamente que tal possibilidade é absolutamente excepcional conforme a seguir transcrito: “A adoção por quem estranho ao cadastro é excepcionalíssima. Admite-se quando, estabelecido forte laço afetivo, “a autoridade da lista cede, em tal circunstancia, ao superior interesse da criança (ECA, Art. 6º).” (STJ, Resp. 837321/RS, rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, j. em 18/10/2007)”
É meu entendimento, também, conforme já falado em inúmeras ocasiões, que a visitação a entidades de acolhimento institucional não objetivam a escolha de uma criança, e sim aproximar o habilitado da realidade da institucionalização no país. Busca trazer o habilitado para o mundo real, para que entenda qual o perfil das crianças brasileiras institucionalizadas. Não se trata de um supermercado onde se vai escolher esse ou aquele produto.
Existe, contudo, o enorme risco de brotar um afeto mútuo durante essa visitação. Não só dos habilitandos ou habilitados com relação à criança, mas da criança com relação a seus visitantes. Negar essa realidade é simplesmente mentir, mascarar o que de fato existe.
A visitação de crianças em tenra idade só deveria ser permitida para pessoas já a elas destinadas, evitando-se, assim, o fluir do amor e o surgir da dor.
Sempre me preocupou muito a visitação de crianças muito pequenas, pois é praticamente impossível não se apaixonar, mesmo aqueles que jamais pensaram na adoção terminam por ceder a essa paixão. Por sua vez as crianças, totalmente carentes de amor, carinho, cuidado, tendem a aconchegar-se àqueles com maior disponibilidade afetiva.
Assim, coloco publicamente meu posicionamento onde pontuo como crucial o valor jurídico do afeto, do cuidado e dos laços de afinidade, tão propalado por Leonardo Boff em suas obras e como tema de sua palestra no último ENAPA ocorrido em Brasília.
Estamos, ainda, em um país continente onde nem todas as comarcas estão interligadas pela rede mundial de computadores. Onde os rincões longínquos continuam sem energia elétrica, sem água, sem educação, sem saúde. Onde os procedimentos não foram unificados. Entendo que precisamos alterar o ECA para que se discipline o que de fato ocorre, para que seja regulamentada a adoção intuitu personae e para que os prazos previstos em lei sejam observados, evitando que nossas crianças tornem-se inadotáveis.
Não sou contra ao CNA, muito ao contrário, entendo que coloca ordem no procedimento e dá mais segurança ao habilitado, contudo, para a sua devida implementação precisamos mais que um sistema na internet, precisamos de pessoas, de técnicos que façam a interligação entre crianças e habilitados. O cadastro não trabalha sozinho, não existe uma inteligência artificial fazendo os cruzamentos de dados, checando perfis, enviando e-mails, fazendo ligações.
Temos, sim, profissionais aguerridos e vocacionados que fazem tais cruzamentos, que buscam famílias para as crianças e adolescentes alijados do direito à convivência familiar e comunitária, mas são poucos.
Desejo, como todos, que o Brasil seja dotado de computadores em todas as comarcas, com equipes técnicas em número suficiente para atender todas as varas da infância, com magistrados vocacionados em todas as varas, com promotores comprometidos com a infância, com serventuários que ajudem a dar o clique de ligação entre as crianças e seus pais. Desejo, um dia, que os abrigos estejam vazios e que toda criança tenha uma família.
Saindo da utopia e caindo na realidade gostaria, ainda, de deixar claro que minha atuação se baseia sempre na ética e na possibilidade jurídica do pedido. Jamais atuaria se não tivesse efetivamente verificado a existência de fortes laços afetivos.
É necessário verificar que tal entendimento, sem sentimentos passionais ou revoltosos, está em absoluta harmonia com as finalidades das normas protetivas do ECA. Ao se permitir a adoção onde os laços de afeto já se encontram solidificados diretamente, em razão da guarda de fato ou, como no caso em tela, da convivência constante amparada, inclusive, em decisões judiciais, contemplar-se-ão as situações em que os laços afetivos tornam-se fortes o bastante, a justificar a estabilização da relação sócio-afetiva.
A colocação da criança, em tal caso, em lista de adoção, além de representar medida absolutamente cruel na prática, já que implicaria na retirada forçada da criança da família de fato, poderia trazer danos psicológicos irreparáveis ao adotando. E assim, como já inserido acima, que o próprio STJ tem se manifestado, ao consolidar que o respeito à ordem cronológica, tal como assentado no art. 197-E do ECA, não é absoluto, cedendo, sempre, ao interesse manifesto da criança.
Ainda é necessário mencionar que a utilização do princípio do superior interesse da criança pelos julgadores constitui medida obrigatória e essencial para a justa decisão nos casos de adoção, principalmente quando a utilização da “lista” é tomada como regra no procedimento de adoção.
Assim, concluindo o presente, e com os olhos voltados apenas para o sujeito de direito inserido no procedimento de adoção, entendo como absolutamente factível a adoção fundada nos laços afetivos, principalmente por concretizar as garantias previstas no art. 227 de nossa Carta Magna.
A mídia desvirtua os fatos, traz a luta de classes à tona, faz com que pareça que no instituto da adoção o poder econômico é superior à fila, quando, na realidade o que se busca é que o valor do afeto seja superior às amarras engessadoras das listas e cadastros e, mesmo assim, em caráter excepcional.
Silvana do Monte Moreira
Um comentário:
Barbara Homsy
16:29 (3 minutos atrás)
"Querida Silvana,
É com enorme prazer que vejo, mais uma vez, você se manifestar em defesa do melhor interesse da criança e do principío da afetividade e não se quedar silente como seria o seu direito, em face de uma notícia da mídia (esta sim, cujos princípios éticos são questionáveis).
À despeito de todo o esforço das pessoas que verdadeiramente militam em prol da adoção, uma notícia como esta, objetivando evidentemente angariar audiência, pode desgastar o empenho e a dedicação daqueles que estão na sofrida via crucis não apenas da adoção, mas também do cuidado e zelo com as crianças/adolescentes adotandas e com os adotantes e, ainda, a par das dificuldades que advém pós-adoção.
Princípios,como é sabido, são norteadores das leis e embasadores das mesmas, estas últimas - que não podem e não devem ser impeditivas de transformar nossa sociedade em uma sociedade que realmente se importa e cuida daqueles que precisam ser defendidos.
As suas palavras de alerta, trazem mais uma vez o conhecimento para todos de que, em âmbito da Adoção, os impedimentos gerados por leis que visariam agilizar o processo adotivo, somente estão fazendo vencer aqueles que se importam exclusivamente com a burocracia.
Por isto (e muito mais) é com muito orgulho que venho me manifestar neste momento a você: uma profissional do direito que com a sua expertise, pode elucidar e (por que não dizer?) amenizar as dores daqueles que lhe procuram, não medindo esforços para que os princípios do melhor interesse da criança e da afetividade sejam efetivamente cumpridos.
Um grande abraço,
Barbara Maria de Paiva Homsy"
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