sábado, 3 de setembro de 2011

A importância dos vínculos afetivos no desenvolvimento e nas dificuldades de aprendizagem

O desenvolvimento das funções psíquicas, entre elas o aprendizado, depende de questões ligadas ao equipamento biopsicológico, e ao investimento afetivo dessas funções.
Aprender tem origem latina: “ ex-ducere” - colocar para fora, um processo que vem do interior para o exterior. Entende-se interior o mundo mental, interno, dos afetos, das emoções, dos sentimentos, dos pensamentos, sonhos e fantasias. São elementos que constituem a subjetividade individual, cada vez mais singular na cultura contemporânea. Considero aprendizado o desenvolvimento de um conjunto de funções cognitivo-afetivas que envolvem processos e sistemas neuropsicoafetivos e sócio-culturais que participam da vida adaptativa do sujeito ao meio e às suas necessidades, dentro dos seus limites, na busca de maior autonomia. São sistemas interligados que sofrem influências externas tanto do ambiente físico quanto do psicossocial. Tais sistemas se estimulam de forma recíproca e adquirem no decorrer do processo de desenvolvimento relativa autonomia funcional que depende de capacidades integrativas das experiências objetivas e subjetivas do sujeito.

Nesta oportunidade não serão abordadas as dificuldades de aprendizagem decorrentes de causas orgânicas congênitas ou adquiridas (seqüelas traumáticas ou infecciosas), mas aquelas decorrentes de distúrbios relacionais ao nível dos investimentos afetivos durante o desenvolvimento da criança.

A clínica psiquiátrica de orientação psicanalítica põe em evidência dificuldades de aprendizado, global e específica, como conseqüência da vida relacional, não raro, a partir das primeiras relações afetivas ou, até mesmo antes do nascimento e, em função do imaginário dos pais e do meio circundante. Distúrbios neuroperceptivos pré-existentes contribuem na organização e na dinâmica das dificuldades relacionais. Nos processos precoces de desenvolvimento e no estudo dos seus desvios torna-se difícil determinar qual fator teve início primeiro. De qualquer forma, são situações interdependentes que demandam atenção global e não apenas voltadas para as dificuldades específicas.

As dificuldades de aprendizagem podem ter causas específicas que levam a problemas emocionais emocionais. Mas o inverso também é verdadeiro, questões psicoemocionais gerando dificuldades específicas. As dificuldades de aprendizado podem ser a expressão de sintomas de conflitos psíquicos inconscientes decorrentes de inibições, repressões, cisões, projeções, ansiedades, fobias que interferem nos processos de simbolização e de representação. Há casos cuja dificuldade de aprendizagem é conseqüente à não aquisição ou à aquisição deficitária ou distorcida na construção do mundo interno, da organização egoica e superegoica, das vicissitudes da vida pulsional. São fenômenos que interferem nos processos de simbolização, ligados aos mecanismos de defesa do ego, à estruturação do self, ao processo de identificação, às características das relações objetais e à baixa tolerância às frustrações.

As dificuldades de percepção e de discriminação que se manifestam precocemente ou durante a vida escolar de modo a interferir na pedagogia formal e no comportamento como expressão de conflitos inconscientes que afetam as funções egóicas, inclusive a organização do pensamento, a leitura e a escrita, a compreensão e a expressão do mundo simbólico. Lembrar sempre que estamos falando de seres em desenvolvimento cujas funções estão em processo de estruturação biológica e funcional. Todos nós temos a experiência de ter passado por momentos de angústia e sentido sua interferência na percepção do mundo interno e externo. São situações que afetam a capacidade de pensar, de analisar, associar. Uma criança que sofra estados repetitivos ou crônicos de ansiedade, e mesmo de angústia, pode resultar em perturbações na apreensão da realidade interna e externa bem como na organização de respostas catárticas ou elaboradas.

Regressões, fixações, organizações defensivas caracteriais, inibições interferem no desenvolvimento psicopedagógico e comprometem o desenvolvimento das potencialidades agressivas, destrutivas e reparadoras, da criatividade, da capacidade de brincar e das capacidades instrumentais da criança, podendo se cristalizar.

Para um desenvolvimento adequado das potencialidades psíquicas, e, portanto, das funções ligadas ao aprendizado, é fundamental a existência de um bom vínculo inicial parental por meio do qual se estabelece o sentimento de confiança básica. A qualidade das relações afetivas interfere no desenvolvimento dos processos biológicos, na mielinização, no desenvolvimento das terminações sinápticas, nas defesas imunológicas, no ganho pôndero-estatural, por exemplo. Através da relação dual mãe-bebê, acrescida da função paterna complementar às necessidades de sustentação das funções maternas e determinante no processo de triangulação, o bebê terá condições para desenvolver o que Winnicott chamou de espaço transicional no qual a cultura, o conhecimento e o aprendizado terão lugar. Dependendo das características de desenvolvimento e resolução desta triangulação, exemplificada pela elaboração da relação simbiótica entre o bebê e sua mãe com a separação proporcionada pela entrada do terceiro elemento, o pai é que se estabelecem as noções do eu, tu, ele; a percepção do espaço bi e tridimensionais fundamentais para a formação e o desenvolvimento da atividade simbólica, da linguagem em suas diferentes formas de expressão.

Winnicott mostra a importância do espaço, do objeto e dos fenômenos transicionais para o desenvolvimento dos elementos simbólicos e consequentemente da cultura. A capacidade simbólica pode ser compreendida “como a capacidade de experimentar a perda do objeto e o desejo de recriá-lo no interior de si mesmo dão ao indivíduo uma liberdade inconsciente na utilização dos símbolos; o fato de que o indivíduo a experimenta como uma de suas próprias criações permite-lhe sua livre utilização. A formação do símbolo reina sobre a capacidade de comunicar, pois toda comunicação é feita através de um símbolo”(Hanna Segal, 1957).

Viver o espaço da ilusão e da realidade, usar, brincar, fantasiar, confrontar experiências a partir do contato com o objeto real externo, a mãe ou sua representante afetiva, inicialmente representada pelo corpo materno, são as bases para o aprendizado criativo.

Os distúrbios da aprendizagem se manifestam, com frequência, sobre aquelas funções em franco desenvolvimento por estarem recebendo maior investimento afetivo. Distúrbios de orientação têmporo-espacial, por exemplo, pode ser uma decorrência da falta de sincronismo nos ritmos existentes na relação mãe-bebê ao perturbar a capacidade de continência das tensões emocionais.

Para o diagnóstico das dificuldades de aprendizagem não basta uma coleta cuidadosa dos sintomas e da história do paciente. É preciso diagnosticar a qualidade das relações emocionais do presente e do passado-presente, isto é, dos aspectos infantis presentes nas relações. Assim, será possível, levantar hipóteses sobre a existência de fatores psicológicos e emocionais na organização psíquica do sujeito. Não basta conhecer a criança. É fundamental compreender a criança que está na cabeça dos pais e os pais que estão na cabeça da criança: expectativas, papéis, fantasias, condições sócio-culturais e emocionais mesmo antes do nascimento e, principalmente, durante os primeiros anos de vida.

A compreensão da dinâmica familiar interfere na constituição do espaço interno e na formação e desenvolvimento dos objetos representativos dos afetos e do mundo exterior. Tais elementos participam do processo de aprendizagem e da dinâmica na mediação entre o sujeito e o mundo ao seu redor. Ansiedades existentes na relação do casal ou num dos pais é apreendida pela criança interferindo e mobilizando fantasias ou mesmo perturbando o desenvolvimento de funções como dar e receber, unir e separar, dividir e multiplicar, experimentar ou evitar a experiência emocional.

A aquisição do aprendizado e do conhecimento depende da capacidade para suportar tensão e frustração na aquisição do novo. Portanto, é fundamental que se tenha a preocupação de procurar entender a gênese do fenômeno: se as dificuldades apresentadas pela criança são expressão de conflitos emocionais da criança, da família, do meio sócio-cultural ou uma resultante de um conjunto no qual a criança é o emergente, o sintoma de uma rede complexa de relações perturbadoras que interferem no processo de aprendizagem.

Não se pode avaliar as dificuldades de aprendizagem desvinculada dos processos relacionais familiares e sócio-culturais com o risco de se fragmentar o sujeito e favorecer o desenvolvimento de sentimentos de exclusão.

Para ilustrar estas questões complexas que envolvem as primeiras relações afetivas e a aprendizagem apresentarei o caso de um rapaz de 15 anos. As inúmeras dificuldades sociais e de aprendizagem conduziram-no a se submeter à psicoterapia psicanalítica e ao um trabalho psicopedagógico, complementares entre si.

João é muito tímido, aspecto frágil e aparenta um ar deficitário. Envergonha-se ao fazer algo errado. É repetente por duas vezes. Desde o início do primeiro grau necessitou de reforço pedagógico. Suas dificuldades escolares se intensificaram na quinta série, em desenho geométrico, depois em matemática e ciências. Relaciona-se, de preferência, com crianças menores. É motivo de gozação entre os colegas. Primogênito e único homem de uma prole de 3 filhos. Tem pouca iniciativa. Mantém-se distante das irmãs e pouco se relaciona com o pai, mais descontraído quando em companhia da mãe. Queixa-se de pesadelos após filmes de terror, apesar de sentir grande atração. Imagina-se futebolista profissional no futuro, mas não tem tenacidade. Desiste ao ter de enfrentar dificuldades, mesmo as mais comuns. Tem poucos colegas e não se mantém em grupo. Suas qualidades esportivas não correspondem às suas expectativas. É motivo de agressão entre os colegas. Inúmeros medos. Fez várias tentativas de tratamento psicoterápico e psicopedagógico com resultados medíocres. Apresenta-se dependente e com pouca autonomia. Quer sempre agradar e tem pavor de errar. O envolvimento afetivo é superficial e não demonstra grande curiosidade cognitiva. Seu ritmo é extremamente lento, sem energia. O conteúdo adquirido é de forma mecânica. Não apresenta déficits de compreensão, manejos gramaticais ou semânticos; bom vocabulário ativo, denotando dificuldades para a “metalinguagem”, isto é, para explicar o significado das palavras. Acentuada disgrafia. A leitura é adequada quanto a entonação, expressividade, velocidade e pontuação. Sua visão dos fatos é rígida e não reflexiva, com pouca mobilidade do pensamento. A elaboração oral é melhor do que a escrita. Dificuldades de análise e síntese.

Em sua história de vida existem fatos relevantes que permitem suspeitar da importância da qualidade dos vínculos precoces na relação mãe-bebê-família. A sucessão de situações traumáticas resultou na vivência angustiante e catastrófica de sua relação com o mundo, com as novas experiências. O paciente, muito esperado, nasceu num ambiente de alta expectativa intelectual. Os pais, durante o período gestacional, estavam muito preocupados com a mudança para o exterior, dedicando-se pouco à gravidez. Surgiram graves conflitos entre o casal. Por ocasião do seu nascimento a mãe entrou em importante quadro depressivo. O período adaptativo no exterior foi muito difícil, o mesmo ocorrendo no retorno para o país.

Tudo isto para reproduzir o texto de Winnicott intitulado “Tudo começa em casa” no qual aborda a importância das primeiras relações afetivas na constituição do sentimento de ser e das possibilidades para o desenvolvimento das potencialidades psíquicas. Só existe um bebê lá onde existe o outro para lhe dar significado. É através de trocas complexas entre mãe e bebê que se organiza um continente psíquico no qual poderão emergir e evoluir as potencialidades psíquicas construtivas, destrutivas e reparadoras. O uso pelo bebê do objeto afetivo, seguido de frustrações adequadas, permite prazer e desprazer em níveis suportáveis para o bebê possa integrar e modular aspectos contraditórios e sintônicos do self. Esse processo evolutivo depende da capacidade de ilusão e de desilusão, elementos participativos do processo de simbolização. Ele ocorre por ocasião da incorporação e projeção dos objetos do mundo interno (símbolos representativos dos objetos reais e concretos da vida afetiva do bebê). Por meio desses processos iniciais adequados, da continência afetivo acolhedora o bebê desenvolve conhecimento e aprendizado concomitantes ao processo de identificação, imitativos e criativos, re-significados pelos pais e meio ambiente, durante os sucessivos intercâmbios que ocorrem na vida relacional.

Bibliografia
Levisky, D.L.: “ Algumas contribuições da psicanálise à psicopedagogia” In Scoz (org) Psicopedagogia: contextualização, formação e atuação profissional Porto Alegre Artes Médicas 1992
”Ética, psicanálise e responsabilidade social na educação” trabalho apresentado no “El umbral del milenio” Lima-Peru 15 a20 abril de 1998 Sociedad Psicoanalítica del Peru.
Levisky,R.B. “Possíveis relações entre a psicodinâmica familiar e o processo de aprendizagem” Psicopedagogia – Avanços teóricos e práticos –escola-família – aprendizagem. Anais do V Congresso Brasileiro de Psicopedagogia São Paulo Vetor editora psico-pedagógica Ltda. Pag.272-279. 2000.
Segal, H.: “Notes on symbol formation”Int. J. Psychoanal.38, 391-397 1957
Agradeço a colaboração de Tânia Maria Campos Freitas que realizou a avaliação psicopedagógica deste caso.
David Léo Levisky
e-mail: davidlevisky@terra.com.br
Texto de David Léo Levisky



Cintia Liana
Psicóloga. Especialista em família e Adoção.
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Um comentário:

Cintia Liana disse...

Oi, querida Silvana.
Queria te alertar uma coisa. Este texto é assinado por David Léo Levisky.
Como tem minha assinatura eletrônica embaixo, acredito que pelo e-mail que mandei, fica parecendo que fui eu quem o escrevi. rsrs
Um abraço.