sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O FIO DE CABELO

Luiz Schettini Filho

Os seres humanos sempre tropeçam em pedras,
nunca em montanhas.
Emilie Cady

A convivência se processa na trama de pequenas (ou grandes) coisas que, ao longo do tempo, vão tomando contornos e construindo configurações estranhas. Por vezes, complicadas a tal ponto que passam a ser obstáculo à permanência das relações entre as pessoas.
Em cada história repetem-se ações e reações semelhantes, embora com tonalidades pessoais. O dia-a-dia da convivência aponta para um sem-número de acontecimentos que, individualmente, são vistos como irrelevantes, quando não, sem qualquer significação e que respondem por desgastes e barreiras à vida em comunidade. Para usar uma imagem simples – simplória até --, são como fios de cabelo a quem ninguém dá importância maior. Chama-nos a atenção um fenômeno ocorrente na experiência de quase todos nós: pias e lavatórios que, sem mais nem menos, nos surpreendem simplesmente entupidos; de tempos em tempos nos irritamos com a água que, a cada dia, escoa com mais lentidão. Constatamos o inevitável entupimento.
Tomadas a providências de praxe, descobrimos o surpreendente: a razão de tão incômodo transtorno é simplesmente um amontoado de fios de cabelo. Jamais um fio de cabelo sozinho provocaria tamanho problema. Nem dois, nem três ou quatro... A questão torna-se evidente: o problema é a conjunção dos finíssimos e ignorados fios que vão tecendo uma teia de intervalos tão pequenos que não mais permitem a passagem da água.
Não estaríamos tão longe da realidade se comparássemos boa parte das dificuldades da convivência com o processo de obstrução das pias que deveriam ser um meio de coletar o que nos é útil e deixar escoar o que não mais nos serve para o uso.
No cotidiano das relações é, sem dúvida, o acúmulo de atitudes e ações, aparentemente inofensivas, o responsável pelo entrave da convivência amadurecida e propícia à consecução de projetos comuns das pessoas dos vários grupos a que pertencem: seja na família, no exercício da profissão ou na escola.
Que “fios de cabelos” tão incômodos seriam esses? Vale refletir sobre alguns exemplos.
As palavras apressadas da crítica, movida pela raiva ou por uma interpretação errônea ou, ainda, respostas intempestivas a perguntas que nem sequer foram convenientemente compreendidas.
Comentários maldosos que expõem o outro à crítica de seu grupo de convivência.
Suspeição sobre a conduta do outro sem nenhuma intenção de chegar à verdade para estabelecer uma forma de ajuda.
Negação de oportunidade para que o outro tente reformular comportamentos desorganizados e inadequados.
Idéias pré-formadas sobre o comportamento alheio que dificultem ou impeçam a análise e a disponibilidade de deixar o outro se expressar para podermos assumir atitudes de ajuda.
Dificuldade de ouvir o que o outro diz naquilo que ele tem a dizer, sem nos deixarmos contaminar com o que queremos ou preferimos ouvir. Somos seres da palavra, o que nos faz, por conseqüência, seres da audição.
Criar expectativas distantes ou incompatíveis com a realidade do outro, isto é, exigir dele que se comporte em consonância com o que é bom, adequado ou esperado, sem levar em conta suas limitações e seu ritmo pessoal. Não será muito difícil agirmos de uma maneira justa e amorosa com aqueles em quem reconhecemos limitações decorrentes de patologias ou dificuldades genéticas ou congênitas. Difícil para alguns é agir com justiça e amor quando não enxergam as peculiaridades que não têm a cor da doença entendida como disfunção orgânica.
Interpretar como defeito o que faz parte do conjunto de características pessoais. Há pessoas lentas na compreensão do que se lhes diz, confusas na expressão de suas idéias ou com baixos limiares de irritabilidade, sem que isso tenha que ser visto como um defeito de personalidade. É verdade, que nem sempre, estamos munidos de paciência para esperar do outro um resultado ao qual já chegamos há muito tempo. A boa convivência, entretanto, pede que busquemos usar os recursos que temos em favor dos que não os têm. Afinal, se quisermos alimentar, ao mesmo tempo e no mesmo local, uma girafa e uma ovelha, não seria justo e eficiente colocar o alimento apenas ao alcance da girafa, com seu gigantesco pescoço. Com certeza, a ovelha morreria de fome. A convivência se deteriora quando disponibilizamos seus nutrientes apenas ao alcance dos mais “ágeis” e “habilidosos”.
O silêncio continuado poderá enfraquecer as relações de convivência, sendo interpretado de forma distorcida e injusta. O “não-dito” dá margem a fantasias por vezes incontroláveis. O recolhimento demasiado para dentro de si contribui para distanciamentos no conviver, em que, ao invés de possibilitar compartilhamentos, poderá romper o tecido do aconchego.
Talvez não possamos evitar todos os “fios de cabelo” que se interpõem nas relações de convivência. Todavia poderemos, com certeza, evitar que formem redes e trançados que inviabilizem sentirmo-nos bem nos grupos a que pertencemos.

(Texto de Luiz Schettini Filho, do livro A coragem de conviver, Editora Vozes)

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