MEU DOSSIÊ E UMA ADOÇÃO.
04.11.2013
Machadinho
Campo Grande/MS - Brasil, 56 anos
Esta matéria não tem o fim de desprestigiar a adoção. Tem o fim de
ilustrar uma situação particular que a vida nos reservou (a mim e minha
esposa). Deus deve ter encomendado esse sacrifício. Talvez em outra
encarnação eu tenha ficado devendo esse sofrimento.
A adoção é
um gesto nobre. Não é qualquer pessoa que tem essa coragem. Adotamos
uma criancinha de um dia de vida. Enquanto ela era criancinha e foi
crescendo a gente fez de tudo para dar-lhe o amor que esse segundo lar
poderia lhe oferecer. A gente queria que ela tivesse um futuro
brilhante.
Hoje ela tem 19 anos de idade. Todos hão de
perguntar: - Como ela está? Como foram todos esses anos? Ela já está se
formando? Tem um bom emprego? É feliz?
Pois é. Todas essas respostas caem no vazio.
Somos um casal de adotantes infeliz porque não conseguimos realizar
nossos propósitos. Nada do que almejamos e lutamos foi alcançado.
Achamos que oferecemos uma criação ideal, mas falhamos e não sabemos
qual a razão. Ela estudou nos melhores colégios. Teve a melhor educação.
Frequentou grupo de jovens religiosos. Foi levada aos melhores
psicólogos. Tivemos com ela o cuidado de dar um tratamento igualitário
com relação ao seu irmão, já que depois que ela nasceu veio um filho
natural.
Entretanto, aos poucos ela procurava a degradação
moral. Não queria responsabilidade dentro de casa. Não estudava. Foi
reprovando e diminuindo a qualidade de seu ensino, porque não conseguia
se firmar em escola particular. Passou a procurar amigos pouco
recomendáveis. Incursionava na internet à procura pessoas de mau
caráter, procurando grupos corrompidos ante as regras sociais.
Passou a utilizar de linguagem chula. Os palavrões eram a forma de
comunicação mais comum. Passou a negligenciar sua higiene. Seu quarto
passou ser um reboliço. Não queria organização e nem limpeza. Se alguém
quisesse uma casa totalmente limpa tinha que entrar no seu quarto e
fazê-lo ficar com bom ambiente.
Não queria ajudar em casa.
Nem sequer levava uma louça. Qualquer responsabilidade exigida ela
passava a dizer que iria completar 18 anos e ia sair daquela casa. De
nossa parte sempre a tratamos bem e dando-lhe carinho que era
necessário. Afinal, talvez fosse isso que faltasse. Entretanto, nada
adiantou. Ela continuava arredia e procurando amigos ‘mal encarados’.
Até que encontrou o amor da sua vida. Uma pessoa de índole baixa que
já tinha sido preso por tráfico de droga. Daí pra frente o declínio
moral foi inevitável. Foi morar com tal sujeito, mas as poucas
tentativas de trabalho fracassaram por conta de não querer ficar longe
desse ‘encosto vivo’. Não demorou e passou a ‘curtir’ os mesmos vícios
do companheiro. Droga, companhia de marginais, algazarra,
irresponsabilidades com o local onde morava, incompatibilidade com
vizinhos. Descuido com a aparência. Aversão à lavagem de roupa. Ou seja,
qualquer tipo de higiene pessoal era algo a ser ignorado.
Em
face de sua hipossuficiência para a própria subsistência acabou
retornando para dentro de minha casa e agora com mais uma pessoa
desregrada e sem capacidade laborativa. Não pudemos dizer não porque se
isso ocorresse ela teria de ficar na rua, cujo abandono poderia
desencadear mal maior. Acomodamos os dois num cômodo separado e passamos
a fiscalizar, negociar horários para se chegar em casa, conselhos a
cada crise, sempre procurando levá-la para outra saída. Nunca
desistimos. Mas ela não correspondia. A cada gesto nosso de bondade era
uma ‘cacetada’ contra as nossas aspirações.
Passou a ter
chiliques e crises que pareciam obsessão. Ela tinha brigas intrigáveis
com o tal companheiro. Ela chegava a bater nele. Um dia brigou com
alguém do grupo e na promessa de se vingar nós tivemos que trancafia-la
num quarto. Ela destruiu a porta de tanto açoitá-la com objeto pesado.
Os vizinhos vieram nos dar uma ajuda e conseguimos acalmá-la.
Tentamos de tudo. Nada surtiu efeito. Esta semana soubemos que ela
continua utilizando droga e até comercializando. Já instalei câmeras de
monitoramento em minha residência. Tomo todas as cautelas possíveis para
não ser pego de surpresa, fechando portas pelo interior da casa para
que à noite os demais membros da família não corram nenhum risco. Não
libero chave. Quando chegam vou pessoalmente coloca-los para dentro de
casa.
Conselhos e conversas demoradas são executadas em
momentos e que ela está frágil. O sujeito ao seu lado escuta tudo, mas é
como se fosse um robô. Os dois escutam concordam, mas algumas horas
depois estão fazendo tudo errado de novo. Ou seja, adotei uma pessoa e
agora tenho que cuidar de duas e cada uma mais desgarrada da vida do que
a outra. O rapaz tem até desvio mental tanto que o levou a ser
absolvido no processo que respondia por tráfico.
Fiz ameaça
com relação a ter droga dentro de minha casa. Afirmei que ia entregá-los
para a polícia. Fiscalizei enquanto pude. Mas esta semana tive de
expulsá-los porque descobri que estavam vendendo maconha. Descobri,
também, que ela é testemunha de defesa de um preso, pois o oficial de
justiça esteve em minha casa com o mandado judicial.
Enfim,
todos os nossos esforços foram em vão. Criamos uma pessoa dentro de
todos os critérios normais de educação, mas ela não absorveu nada disso
na sua personalidade. Não sabemos onde ela está dormindo e às vezes
aparece de madrugada pedindo alguma coisa. Aliás, quando precisa de algo
aparece com a ‘carapuça’ de boazinha.
Não sabemos no que isso vai
dar. Mas ainda temos esperanças de um dia ela encontrar com as durezas
da vida e assim repensar sua conduta. Aceitar que precisa de tratamento,
porque ela não admite que esteja precisando de ajuda.
Não
creio que essa sina tenha vindo acompanhada de nosso gesto de adotar. Já
vi muitas pessoas boas que também foram adotadas. Se perguntassem se
adotaria outra vez. Eu diria que sim. Mas não vou fazer isso porque não
tenho mais idade para cuidar de uma criança até o momento em que ela
ficasse adulta. Estaria muito velho e se Deus mandasse outra assim eu
não teria mais forças para ter esperanças.
Esse é o nosso martírio. Esse é o meu dossiê. Sou um pai na esperança de um dia ter recuperado uma pessoa de má índole.
http://www.recantodasletras.com.br/cartas/4598824
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