Out/2013
Natalia Paim
Alguém já descreveu que ter filho é viver com o coração fora do corpo. Envolver-se com uma vida que começou depois da sua e que depende em grande medida de você é algo complexo. São vidas que se encontram e seguem juntas. Só que nem todo filho vem de dentro do corpo. Nem todo pai e nem toda mãe geram e gestam, fisiologicamente falando, assim como nem todos planejam e nem todos esperam da forma padrão.
O espantoso é que essa gama imensa de possibilidades do ser mãe/pai ainda fica escondida por um tapume de normatividade onde tem lá, pregadinha, uma lista de podes e não podes, de deverias, de não deverias, e quem passa por lá e acata e reproduz esses pressupostos fecha os olhos pra vidas e vivências, pra famílias que não estão no outdoor de propaganda do supermercado nem no comercial do banco.
O preconceito, de mãos dadas com a normatividade, borbulha por aí, em todo canto, não necessariamente escondidinho, mas muitas vezes discretamente. O relato da Natália Paim sobre a adoção de seus filhos é uma prova disso e uma mostra de que o olhar feminista deve estar sempre voltado diretamente a essas questões. Que o amor venha sempre em primeiro lugar.
———————————————————
Nunca na minha vida imaginei que seria mãe adotiva. Achei que seria mãe. E ponto. E isso tem alguma diferença? Hummm…
Dois anos de casada e… Bóra lá ter filhos? Tá. Nada. Tratamento pesado para infertilidade por oito anos. Nada. Corpo cansado. Mente cansada. Alma cansada. Chega. Não quero mais. Não queremos mais.
Daí que começamos a conversar sobre adoção. Preconceito número um: a adoção. E aí? Vamos adotar? Sei não… Como será que AS PESSOAS vão receber nosso filho? Entende? AS PESSOAS. A gente sempre pensa no outro, como o outro vai receber aquilo, o que o outro vai pensar. Decidimos. Entramos com toda a papelada e dá-lhe burocracia. Burocracia necessária, ok.
Logo na primeira reunião com a assistente social recebemos “o questionário”. Aquele que serve pra você escolher as qualidades e caracterizar seu filho. Nossa primeira reação ao questionário foi: “Idiotice. Quem realmente quer ter filho não escolhe.” Um tempo depois vimos que esse questionário tem que existir por uma série de razões e concordamos com ele. Enfim… Lá fomos nós escolher. Idade: menor de um ano. Gênero: sem restrições. Raça: ih, ferrou!!! E agora? Preconceito número dois: a raça.
Nosso argumento inicial foi: sei lá. Acho que a gente deve colocar no máximo “pardo”, né? Vai que AS PESSOAS não entendam e nosso filho sofra preconceito por parte delas? E na escola? Como vai ser? Tá bom. Vamos colocar “pardo”.
Um tempinho depois fomos chamados para a segunda entrevista. Das muitas. No caminho para a Vara da Infância dei uma pirada: Amor, por que estamos escolhendo a raça? Ah, sei lá amor. Acho que por causa do preconceito das pessoas.
Pára tudo. Preconceito de quem? Ah, preconceito NOSSO, né amor? Marido freia o carro e quase acontece um acidente com o carro de trás. Como assim preconceito nosso?
É. Preconceito nosso. Desde o início. Desde a decisão pelo método de termos nosso filho: adoção. Nós tínhamos um problemão. Descobrimos que tínhamos esses preconceitos. E agora? O que vamos fazer?
Conversamos muito, atônitos com a descoberta dos nossos preconceitos. Mas aquilo ficou mais organizado na nossa cabeça e mais fácil de acabar com essa porcaria definitivamente. O preconceito.
Chegamos à Vara da Infância e pedimos o tal questionário de volta. A assistente social nos disse que naquele dia nós nem íamos falar do questionário, mas eu insisti. Pegamos o dito cujo e trocamos tudo. Idade: sem restrições. Raça: sem restrições.
Passaram-se seis meses. Recebi a ligação tão esperada da assistente social. Alô? Então, estamos aqui com um menino à espera de adoção imediata. Mas ele tem um irmão. E eles são negros. Vocês gostariam de conhecê-los?
Ah, coração pulando dentro do peito. Claro! Nem pensei na hora em perguntar pro marido sobre o “número de crianças”… Vamos sim. Pode ser hoje?
Fomos. Chegamos ao abrigo e vieram os dois para nos conhecermos. Sonolentos, pezinhos no chão. Tinham acabado de acordar. Dois e três anos. Olhei para eles e para o meu marido. Chorando, muito, muito. Os meninos ficaram assustadíssimos. Também, uma estranha olha pra eles e começa a chorar compulsivamente… Eu, heim…
Não sou mãe do coração. Sou mãe de perna, braço, cérebro, alma… Sou mãe. Ponto.
Essa é minha família. Esses são os dois motivos que me fazem levantar da cama todos os dias e fazem a vida ter algum sentido. Por eles vamos até o fim do mundo. Por eles lutamos todos os dias contra os preconceitos dirigidos a nós e vindos de todos os lados. Por eles e por causa deles amadurecemos e somos pessoas muito melhores. Sem um monte de preconceitos. E se descobrirmos mais alguns deles (os preconceitos) tudo bem. Conversamos, questionamos e definitivamente sumimos com todos.
Porque tem que ser assim. Somos todos diferentes. Ainda bem. Preconceito existe. Não adianta querermos velá-los. Temos que dialogar sobre eles até descobrirmos que não servem pra nada. Definitivamente.
http://femmaterna.com.br/preconceituosa-eu-imagina/
Nenhum comentário:
Postar um comentário