quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A HISTÓRIA DE UMA SUPERFAMÍLIA


Por Lucas Vasques / Fotos: Arquivo Pessoal
Ana Paula Gratão e Ricardo Vieira, casal que mora em São Carlos (SP), encararam a missão de adotar cinco filhos com deficiência e mostram que não há limites para o amor e a solidariedade
Nada é insuperável quando a vocação para exercer a função de pai e mãe é extrema e transborda o coração de amor e solidariedade. A adoção é, sem dúvida, um ato de desprendimento e fé no ser humano. O que dizer, então, de um casal que optou por acolher em sua família nada menos do que cinco filhos? E o mais espantoso e emocionante, ainda, é que todos são crianças com algum tipo de deficiência. Esta é a missão de vida escolhida por Ana Paula Gratão e Ricardo Vieira, que moram em São Carlos, interior de São Paulo, e que, infelizmente, já sofreram com uma perda. “Clarinha, nossa caçula, que era hidranencefálica, desencarnou no dia 12 de fevereiro de 2010. Então, são quatro filhos na Terra e uma no Céu”, conta o pai, resumindo o sentimento familiar.
“Ela chegou com 12 dias, com previsão máxima de viver um mês. Entretanto, ficou conosco quase oito anos. Sua presença foi traduzida em uma gama de gestos amorosos, emoldurados pelo seu sorriso, que só quem viu nunca vai esquecer”, revela Ricardo.
Contudo, não faltam razões para o casal sorrir. E esses motivos atendem pelos seguintes nomes: “Sidney, 13 anos, é Down, com baixa visão, autista autolesivo e severo. Foi adotado com 2 anos e 6 meses. Henrique, 12 anos, tem deficiência visual e intelectual severa. Chegou ao nosso lar com 1 ano e 6 meses. Tainara, 14 anos, é Down e tem deficiência intelectual. Foi adotada com 7 anos. E Guilherme, hoje com 7 anos, tem deficiência visual e intelectual severa. Entrou em nossa vida com 8 meses”, explica Paula. “Para os íntimos, Didi, Kike, Tatá e Gui”, acrescenta Ricardo, revelando como as crianças são chamadas pela família.
“Um dia comentei com o Ricardo que havia assistido, quando era solteira, um filme americano, no qual um casal adotava filhos com síndrome de Down. Pronto! A ideia foi lançada em solo fértil” /Ana Paula Gratão
É inegável que a primeira pergunta que vem à mente é o que levou o casal a tomar essa decisão de adotar cinco crianças com deficiência. Paula reivindica a ideia. “Mas a decisão foi nossa. Sou fisioterapeuta, e há 16 anos trabalhava na unidade da Apae de Dourado (SP). Adorava o serviço, e não demorou para o meu amor pelas crianças especiais contagiar o Ricardo. Um dia comentei com ele que havia assistido, quando era solteira, um filme americano, no qual um casal adotava filhos com síndrome de Down. Pronto! A ideia foi lançada em solo fértil.”
Ricardo lembra que tinha muita dificuldade em entrar na unidade da Apae onde a mulher trabalhava: “Recordo de não saber lidar com os alunos e alunas. Havia estudado o filósofo francês Gilles Deleuze e a filosofia da diferença, no curso de Filosofia, mas a vida é sempre mais exuberante do que nos livros”.
A sintonia foi tamanha em relação às crianças que a fisioterapeuta lembra do que ocorria antes das adoções: “Depois que decidimos, começamos a correr atrás da papelada para nos habilitarmos, na nossa comarca. Também participamos de um grupo de apoio à adoção – APA, de Campinas (SP). Antes de cada adoção, eu e o Ricardo tínhamos um tipo de sinal em relação às crianças que adotaríamos. Às vezes, eram sonhos, inspirações durante as preces e até visões”, ressalta Paula.
Ainda sobre o processo de adoção, eles contam que não encontraram dificuldades, ao contrário do que ocorre na maioria dos casos. “Acho que optar por filhos especiais agilizou todo o processo”, destaca Paula. E Ricardo confirma: “Nós nunca tivemos qualquer restrição quanto à idade, sexo, etnia dos nossos filhos”.
Por falar em preconceito, o pai das crianças é enfático: “Eu uso óculos, não entendo matemática e, na verdade, sou deficiente em muitas virtudes, que sequer posso afirmar que conheço. O preconceito é uma acomodação da alma, do pensamento que pressente a amplitude da vida e quer dela fugir. Bem-aventurados os míopes, que desejam enxergar longe, os gagos, que querem se expressar livremente, os surdos, que sabem dar ouvidos ao próximo de mãos abertas, os cadeirantes, que voam nas quadras e flutuam nas piscinas, os afásicos, que emitem grunhidos de amor e alegria. Se é bom ser diferente, penso que é melhor ainda conviver com os diferentes”.
Questionados sobre se o fato de Paula ser fisioterapeuta despertar nela uma cobrança por não conseguir uma evolução maior no quadro clínico das crianças, eles relevam a tese. “Ser fisioterapeuta facilita algumas percepções e intervenções. Ser mãe propicia a busca do bem-estar e da aceitação de algumas limitações”, sintetiza Paula. “Como filósofo de formação e professor de Filosofia no ensino médio, sempre me questionava se poderia ser um bom pai, presente e colaborativo. Algumas frases, ainda hoje, pacificam minha mente, como por exemplo: ‘Tudo, não dá’; ‘Amanhã é outro dia’; ‘Só por hoje’; ‘Deus acima de tudo’; ‘Vai dar tudo certo’; ‘Se não souber, invento’; ‘Tem melhor e tem pior, mas igual não’; ‘Sempre acima e adiante’”, diz Ricardo.
“Nunca nos adaptamos, completamente, a nada, pois nossos filhos estão sempre nos surpreendendo. Descansamos ‘carregando pedras’, como se diz, fazendo portõezinhos, cerquinhas, inventando brinquedos, adaptando, tentando outra vez, desistindo, momentaneamente”/Ricardo Vieira
ROTINA MOVIMENTADA
A rotina de uma família atípica como a deles é, no mínimo, bem movimentada. “Nunca nos adaptamos, completamente, a nada, pois nossos filhos estão sempre nos surpreendendo. Descansamos ‘carregando pedras’, como se diz, fazendo portõezinhos, cerquinhas, inventando brinquedos, adaptando, tentando outra vez, desistindo, momentaneamente. Todos compartilham do nosso carinho, da nossa atenção, mas também dos nossos desgastes e irritações. Somos uma família normal, nesse sentido. Há diferenças insuperáveis por ora, como a rotina rígida dos horários de alimentação e higiene, as intolerâncias do Didi consigo mesmo e com a vida, o que nos impede de viajar, por exemplo. Mas nada tão diferente assim. Nossos amigos têm filhos que ‘chilicam’ quando atrasam para ir ao shopping ou não podem comprar ‘aquele celular’”, compara o pai dos meninos.
Ele ressalta que, apesar de filósofo, optou por seguir a carreira de escrevente técnico-judiciário, no TJSP, em vez de ser professor. “Isso para me tornar um provedor estável, com tempo hábil para curtir a família. Paula deixou seu trabalho como equoterapeuta para se preservar mais, com o objetivo de ter tempo livre e melhores condições de estar e conviver com os nossos filhos. As tardes da semana são somente dela; as manhãs, as noites e os finais de semana são nossos. Desde o início combinamos fazer de tudo: trocar fraldas, dar banho, preparar os remédios, dar comida. Assim, nosso lar não desmorona quando um de nós não está em casa.”
O casal destaca que o espiritismo é um suporte emocional importante para ambos. “É uma doutrina consoladora, nos inspirou a adotar e nos fortalece no dia a dia”, diz Paula. “Este é o nosso meio; há muitas veredas no universo. Gosto de pensar que um dia, numa vida futura, todos nós nos reencontraremos melhores, mais eficientes perante a vida e suas leis universais. Sem dúvida, estaremos mais próximos de Deus. Então, saberemos e sentiremos melhor o que significa esse amor que, hoje, nos une, nos perpassa e nos dá forças. Para mim, nossos filhos são os pequeninos de quem Jesus falou. Por isso, colocamos o nome de Lar Pequeninos de Jesus em nossa casa”, explica Ricardo.
Mesmo quando atravessa momentos de dificuldades – que contam com a grande colaboração da ajudante Luciana –, o casal jamais se arrepende da iniciativa: “Eu acredito que é comum os pais terem momentos difíceis com os filhos. Acho até que muitos, no auge da crise, pensam: ‘por que eu fui ter filhos?’. Na verdade, creio que nós, pais, somos bem amparados para superar as dificuldades”. Ricardo reconhece que sente muito por suas “quedas morais”, como ele define. “Mas nunca desisto. A capacidade de reação é muito importante e, na maioria das vezes, basta um pedido de perdão e o sincero desejo de recomeçar.” Ambos já pensaram em criar uma espécie de abrigo para meninos e meninas com deficiência. “Antes de concretizar o sonho de sermos pais, pensamos em fundar uma entidade de acolhimento a crianças especiais órfãs. Porém, nossos filhos foram chegando e percebemos que adotar seis ou sete crianças descaracterizaria a família. Enfim, não conseguiríamos dar a atenção individual para cada uma delas e, por isso, resolvemos parar no quinto filho”, diz Paula.
“Recebemos inúmeras doações: fraldas, plano de saúde, leite, verduras, roupas, cesta básica, brinquedos, dinheiro, mudinhas de flor, abraços, encorajamentos, preces, elogios, carinhos, amor, oportunidades de ajudar outras crianças especiais de famílias muito mais necessitadas do que a nossa” /Ricardo Vieira
A questão financeira é importante, afinal, filhos proporcionam um gasto bem alto. Ainda mais crianças com deficiência, que, na maioria dos casos, precisam de cuidados específicos que geram muitas despesas. “Temos casa própria, dois carros (um bem novo e outro meio velhinho). Nunca gastamos mais do que recebemos. Não fazemos empréstimos, não ostentamos e não esbanjamos. Usamos o lema ‘primeiro as primeiras coisas’. Nunca faltou nada, mas também nunca sobrou muito. Recebemos inúmeras doações: fraldas, plano de saúde, leite, verduras, roupas, cesta básica, brinquedos, dinheiro, mudinhas de flor, abraços, encorajamentos, preces, elogios, carinhos, amor, oportunidades de ajudar outras crianças especiais de famílias muito mais necessitadas do que a nossa”, revela Ricardo. Ele continua: “Para se ter uma ideia, no último mês de maio investimos mil reais em placas e tapetes de EVA para proteger o Didi das ‘paredes autistas’ e do ‘chão lesivo’, que teimavam em bater na sua testa. Graças a Deus, não afetou o orçamento, pela gestão segura do nosso patrimônio e por esses pequenos e constantes gestos de fraternidade, que nos envolvem desde sempre”.
Paula e Ricardo, em épocas passadas, desenvolveram trabalhos sociais como família de apoio, abrigando crianças de forma temporária. “Tentamos visitar o Chico Xavier, em Uberaba (MG), para confirmar o rumo das nossas ideias. Lá chegando, soubemos que, devido a sua idade e seu estado de saúde, o generoso médium não poderia nos receber. Ainda assim, pudemos vê-lo e lhe dar um beijo inesquecível. Para não perder a viagem, conversamos com outro médium ali residente, igualmente de nossa confiança, o Carlos Baccelli. Ele nos disse uma frase marcante: ‘Primeiro, as crianças!’. Como não sabíamos, exatamente, o que era isso, intensificamos o apoio à Apae de Dourado, engrossamos a fileira da evangelização infantil na casa espírita que frequentávamos e, como eu era conselheiro tutelar, nos aproximamos das assistentes sociais do fórum de nossa comarca (esse é o caminho). Nesse período, nos tornamos família de apoio. O curioso é que acolhemos, provisoriamente, oito crianças e, ao mesmo tempo, adotamos alguns dos nossos filhos. Quando estes nos reclamaram mais atenção, deixamos de ser ‘família substituta’”, explica Ricardo.
Ano XIII - Edição 85 - Novembro/Dezembro 2014
http://revistasentidos.uol.com.br/incl…/…/artigo326291-1.asp

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