16.11.2014
Valéria Sinésio
Casais deixam de lado o preconceito e adotam crianças fora dos padrões exigidos pela sociedade para cor da pele, idade e sexo
O primeiro encontro entre Dalva Cintra e as filhas aconteceu quase por acaso. Depois de várias tentativas frustradas para engravidar, ela e o marido, Jorge, decidiram entrar na fila de adoção. A ficha do casal chamou a atenção da Vara da Infância e Juventude de João Pessoa: não havia preferência por sexo, cor ou idade. Sem tabus e preconceito, eles levaram para casa crianças que poucos queriam. Sem intenção, se tornaram exemplo. A história deles – e dos outros casais que serão contadas mais adiante – mostra que a espera na fila de adoção é demorada porque os pretendentes não abrem mão de um perfil que está em falta.
Dalva e Jorge estavam juntos há seis anos e tinham o desejo de adotar antes mesmo do casamento. Quando conheceram Ana Eloísa e Laiane, 9 e 5 anos, ficaram sensibilizados com o olhar perdido delas. A história das meninas chega a ser comovente.
Ana e Laiane guardam traumas. O primeiro pelo abandono sofrido pelos pais biológicos. Depois, quando pensavam ter encontrado uma família, foram novamente devolvidas, como se fossem um objeto que deu defeito ou não conseguiu satisfazer aos desejos de quem o comprou. No Brasil, foram contabilizados 1.694 pedidos formais de desistência de adoção, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Enquanto isso, Dalva e Jorge faziam tentativas frustradas de adoção com outras crianças. Ana e Laiane tinham características que as empurravam para a exclusão: além da idade 'avançada', são irmãs. De acordo com a legislação vigente no país, a preferência é que os irmãos permaneçam juntos, sendo colocados na mesma família substituta. Acontece que, na prática, são poucas as pessoas dispostas a levar para casa mais de uma criança.
As meninas, portanto, estavam na lista das que tinham pouca ou nenhuma chance de ganhar um lar. É aí que entra Dalva e Jorge, que queriam ser pais, apenas isso. Ao declarar que não tinham preferências, o casal dava a oportunidade de devolver o brilho da infância às meninas. Mas o gesto que deveria servir de exemplo, virou alvo de críticas. “Algumas pessoas diziam que nós estavámos loucos, que iríamos nos arrepender”, frisou.
“Outros disseram que a gente iria quebrar a cara, que ninguém levava para casa meninas com essas idades”, declarou. A tolerância de Dalva e Jorge, ambos comerciários, mostra que, quando o preconceito é vencido as histórias podem ser reescritas.
O casal começou a visitar Ana e Laiane como padrinhos. Nesse período perceberam a dificuldade de apego por parte das crianças, ainda machucadas pela experiência anterior. No terceiro final de semana juntos, o casal já tinha a certeza de que queria adotá-las. “Passamos o Natal e Ano Novo juntos e foi maravilhoso. Dias depois entramos com o pedido de guarda”, revelou Dalva.
O processo de adoção ainda está em andamento. Anos antes, o irmão delas foi adotado por outra família.
Na Paraíba o número de pretendentes é cinco vezes maior que o número de crianças disponíveis para a adoção, segundo o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), mas a conta não fecha.
Sobram crianças exatamente porque a maioria dos pretendentes exige uma criança de pele clara, do sexo feminino, e com até dois ou, no máximo, três anos de idade. As crianças que sonham com uma família estão fora desse perfil: são meninos, têm pele parda ou negra, têm irmãos e uma idade que a exclui. Se tiver algum problema de saúde, a chance de ser adotada é ainda menor, segundo a Vara da Infância e Juventude.
SONHO DA ADOÇÃO EXCLUI BARREIRAS
Entre as histórias de pessoas que colocaram o amor acima do preconceito, está a do casal homoafetivo João e Marcos (nomes fictícios para preservar as identidades). Quando decidiram que queriam ter um filho, apareceram várias propostas, uma delas de 'barriga de aluguel'. Eles recusaram. Fizeram questão de ficar na fila de espera. Não queriam problemas futuros com o pai ou a mãe biológica batendo na porta e fazendo chantagem. Fizeram o caminho mais difícil, porém legalizado.
O casal procurou a Vara da Infância e Juventude e fez a inscrição. O desejo era por uma criança, apenas. Depois de 4 anos o sonho se tornou realidade. “Ligaram dizendo que tinha uma menina recém-nascida, abandonada pela mãe na maternidade. A gente pegou a chave do carro e correu para lá”, contou João. Na maternidade, encontraram a criança de 1,5 kg, com apenas 10 dias de vida. A fragilidade da menina tocou o coração do casal, que voltou para casa cheio de esperança.
Tudo parecia tranquilo, quando veio a notícia: a criança tinha um diagnóstico preocupante, uma doença que exigiria cuidados para o resto da vida. Nesse instante, eles receberam o poder de decisão que poderia mudar o destino da frágil menina.
“Tivemos receio, claro. Seria uma experiência nova, mas decidimos dar um sobrenome para ela”, relembrou Marcos.
Segundo o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), 22,62% das crianças disponíveis para adoção no país têm algum problema de saúde. Dentre esse percentual, a maioria tem doença tratável. Outras 476 têm deficiência mental e 115 têm o vírus HIV.
A vida do casal mudou depois da chegada da recém-nascida, que ganhou, além do sobrenome, brinquedos, roupas e um quarto cor de rosa. Em casa, ela divide a atenção dos pais, que se revezam nos cuidados.
Ainda no processo de adoção da primeira filha, João e Marcos já revelam o desejo de adotar outra criança, caso a mãe biológica da menina tenha outra gestação e entregue o bebê para a Vara da Infância e Juventude.
O problema de saúde da criança nunca foi visto como um peso negativo para os pais, nem como justificativa para desistir da adoção. “O amor é o mesmo. Se é para cuidar, nós cuidamos”, declarou Marcos.
DEMONSTRAÇÃO DE AMOR
Os casos de adoção relatados nesta reportagem são vistos como demonstrações de amor, dedicação e desprendimento pelo juiz titular da Vara da Infância e Juventude de João Pessoa, Adhailton Lacet. Segundo ele, ainda há muito preconceito entre os pretendentes à adoção em levar para casa uma criança fora dos padrões exigidos culturamente. A pele branca, os olhos claros, a pouca idade, segundo ele, continuam sendo a preferência não só na Paraíba, como também no país.
Sobre os casos apresentados pelo JORNAL DA PARAÍBA, o juiz afirmou que considera um ato de nobreza a atitude de quem adota uma criança com problemas de saúde, por exemplo.
“Essa pessoa sabe que na rua vai enfrentar obstáculos na criação de um filho com alguma patologia, mas mesmo assim se mantém firme na decisão de adotar”, frisou.
Em relação à adoção de irmãos, Lacet explicou que a maior dificuldade relatada pelos pretendentes à adoção é financeira.
“As condições de quem vai adotar tem um peso muito forte. Um filho pesa no orçamento, imagine dois, três. É isso que observamos”, declarou. Por conta dessa dificuldade, ele disse que irmãos são separados pela conveniência de arranjar uma família. “Se a gente não separar, eles vão se eternizar no acolhimento, terminam atingindo a maioridade sem encontrar um lar, por isso, em alguns casos, precisamos flexibilizar”, argumentou.
Lacet declarou que os casos de devolução da criança, por mais cruel que possam parecer, devem ser encarados como uma nova oportunidade para meninos e meninas encontrarem uma família que os aceite. “A adoção é satisfazer a vontade do adotado. Se a convivência demonstrou que a criança ou adolescente não preenchiam os requisitos da família, a devolução deve ser feita para que outra pessoa consiga adotar”, frisou.
Total de pretendentes no Brasil
32.591 (Na Paraíba são 354)
28% só aceitam crianças brancas
79,7% desejam adotar uma só criança
79,3% não aceitam adotar irmãos
Fonte: CNJ
Elas procuram uma família
Crianças e adolescentes disponíveis para adoção no país
5.668 (são 62 na Paraíba)
67% delas são negras ou pardas
77% têm irmãos
22% têm algum problema de saúde
Fonte: CNJ
http://www.jornaldaparaiba.com.br/…/139244_sem-tabu-e-mais-…
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