segunda-feira, 15 de maio de 2017

Eu, leitora: “Fui adotada adolescente por minha ex-patroa” (Reprodução)

14.05.2017

Nasci em um sítio em Cerquilho, no interior de São Paulo. Meus pais biológicos, Maria Aparecida e Alécio, tinham uma vida simples, mas confortável. Ela cuidava da casa e ele trabalhava em uma multinacional. Três anos antes de eu nascer, ele perdeu o emprego. A miséria foi ficando insustentável e detonou a esquizofrenia da minha mãe. Perdemos tudo o que tínhamos e, em poucos meses, quando nasci, já não tínhamos quase nada. Sou a quarta de cinco irmãos: Domingos, Sandra, Isabel e Vanderlei. Todos com um ano de diferença, uma escadinha. A única que não morava conosco era Isabel, mais velha do que eu, que, sortuda que só, foi adotada ainda bebê por dona Nina, que era nossa vizinha. Notou que minha irmã estava desnutrida e pediu para ficar com ela. Nunca a registrou, mas tinha carinho de sobra com ela e com a gente. Como já tinha seis filhos, não podia ficar com outras quatro crianças, mas sempre dava um jeito de arranjar comida, quando fugíamos do arroz doce de todo dia – a única coisa que havia em casa.

As crises de minha mãe biológica eram frequentes. Já estávamos habituados a sair de casa de madrugada por causa dos surtos e brigas com meu pai. Despertávamos com a gritaria e andávamos cerca de uma hora no escuro, até o centro, para dormir num banco de praça. A cena acabava na delegacia, onde passávamos a noite em uma cela sem cadeado – só entendi que ela era doente muitos anos depois. Minha rotina variou pouco até os 9 anos, quando meus pais sumiram. Assim mesmo, de supetão. Um dia acordamos e eles não estavam mais no sítio.

“Quando eu tinha 9 anos, meus pais sumiram. Simplesmente acordamos e eles não estavam mais no sítio”

Não apareceu ninguém para cuidar de nós. Mas não há muito o que esperar em um cidade do interior, ainda mais naquela época. Meu irmão mais velho, com 12 anos na ocasião, conseguiu um emprego como vendedor de sorvete. Sandra, com 11, foi trabalhar como doméstica. Juntos, alugaram o casebre de um cômodo onde fomos morar. Logo mandaram o caçula da família para a casa de uma tia e eu para um orfanato. Nunca esquecerei do dia em que cheguei. Meu cabelo era meu orgulho: louro, liso, muito cheio e comprido. Assim que entrei, me sentaram em uma cadeira e, antes mesmo de eu entender o que estava acontecendo, começaram a raspar minha cabeça. Máquina zero. Faziam isso em todos para evitar uma epidemia de piolho. Lembro até hoje do barulho do aparelho em contato com meu couro cabeludo, misturado com meu pranto. Naquele momento, entendi que a vida sempre pode piorar.

Éramos cerca de 40 meninas empilhadas em beliches. Acordava às 5 horas da manhã e começava o serviço. Limpava a casa, não falava com ninguém. Minha única amiga era uma boneca de pano, que não largava de jeito nenhum. À noite, já deitada, planejava fugir com ela. Mas bastava me ver diante do muro alto para perceber que não tinha saída. Sabia que não conseguiria subir ali. E, pior, ainda sofreria na mão das assistentes, que batiam com uma varinha em quem desobedecia suas regras.
Meu irmão ia me visitar regularmente, mas o tempo que ficava comigo era curto. Não aguentava me ver chorando  e pedindo que me tirasse dali. Meu desespero deu resultado e, quatro meses depois, ele me levou embora. Lembro de sair de lá com ele e a boneca, que esqueci no ônibus. Duas crianças tocando a vida como se fossem adultos responsáveis. Em casa, minha tarefa era cuidar de tudo enquanto os dois trabalhavam fora. Lavar, passar, cozinhar. Mas, claro, achava tudo muito chato e escapava sempre que podia.

Foi nessa época que uma amiga de dona Nina, a vizinha que adotou Isabel, me chamou para morar em sua casa. Era sozinha, tinha cerca de 60 anos e precisava de companhia. Domingos, meu irmão, que não tinha mais condições de ficar comigo, concordou e, aos 10 anos, lá fui viver com dona Adelaide. Apesar de ser rígida, foi com ela que aprendi regras de etiqueta e educação. Ela dizia que deixaria tudo para mim, me dava pequenas joias de presente, mas me proibia de brincar. Uma de minhas tarefas era ir ao banco. Ângela, uma das caixas, sorria sempre que me via na fila. Eu a adorava, deixava os outros passarem na minha frente só para ser atendida por aquela moça loura, como eu, que me tratava pelo nome, com um carinho que eu não conhecia.

Depois de oito meses, comecei a ‘dar defeito’. Reclamava da forma dura como dona Adelaide me tratava, chorava e pedia para ir embora. Em poucos dias, a paciência dela acabou e meu irmão foi me buscar. Minha despedida não foi nada emocionante. Eu já estava na calçada, quando ela apareceu na porta gritando. Dizia que eu era uma ingrata e não deixaria nada para mim, enquanto arremessava os presentes que havia me dado. Orgulhosa, fui embora sem nem me virar. Mas aquela não seria a última reviravolta de minha vida. Poucos dias depois, de volta ao casebre de meus irmãos, Domingos veio com uma novidade. Ele havia ido ao banco e contou a Ângela, a moça do caixa, sobre minha situação. Grávida de um menino, Vicente, sugeriu que eu fosse brincar com sua filha Thaís, na época com 3 anos. Eu tinha 12 e adorei a ideia. Ângela iria me pagar um bom dinheirinho para ser babá das crianças. Mas o mais legal é que iria ficar perto dela – além, claro, de poder comprar minhas coisinhas. Sempre fui vaidosa.

Passei um ano indo à sua casa todas os dias. Dava banho em Thaís, comia com ela e brincava um bocado. Até que Ângela chamou meu irmão para uma conversa. Disse que todos adoravam a minha companhia (Marco, seu marido, inclusive) e pediu para me adotar. Evidentemente, ele topou. Sabia que eu seria bem tratada. Mas, confesso, não fiquei muito empolgada. Diante de tantas idas e vindas, não acreditava que teria uma vida feliz.

“Assim que entrei no orfanato, me levaram para raspar o cabelo. Lembro do barulho da máquina zero misturado com meu pranto”

Por sorte, estava enganada. A partir daquele dia, ganhei um quarto, roupas novas e tudo a que seus filhos biológicos tinham direito. Finalmente podia contar a todos que tinha pai, mãe e uma casa bonita. Quantas vezes, antes disso, desenhava minha família imaginária na escola e, longe das outras crianças, jogava o papel fora porque não tinha a quem entregar. Por um ano, recebemos visitas de assistentes sociais, até a papelada sair de vez.

Mas minha alegria durou pouco. Aos 14 anos, comecei a me revoltar. Em vez de comemorar o fato de finalmente ter uma família estável, me sentia rejeitada. Passava o dia trancada no quarto me perguntando por que vim ao mundo. Chorava sem parar e praticamente só saía para ir ao colégio. Sentia solidão, abandono, estava cada vez mais triste.

Ângela e Marco, a quem nunca consegui chamar de mãe e pai, lidavam com minha crise adolescente com carinho e paciência. E, conforme crescia e a dor estancava, passei a acompanhar minha mãe adotiva em todos os seus programas. Íamos juntas ao mercado, ao cinema, à casa de amigas. Virei sua companhia constante e, o mais engraçado, todo mundo achava a gente parecida fisicamente. Não queria mais saber da minha mãe biológica – nem ela de mim – e raramente via meus irmãos. Mas nada daquilo me fazia falta.

Foi só ao aceitar essa fase nova que a vida deslanchou e consegui ir atrás de minha felicidade. Entrei para a faculdade de ciências, queria ser professora como minha mãe, que, além de trabalhar no banco, dava aulas de história. Depois, fiz especialização em matemática. Foi então que, aos 23 anos, conheci Robert, um rapaz de 26 que jogava tênis com meu pai. Cuidava do haras da família e fazia, em São Paulo, a interface da empresa de contêineres de seus pais, que moravam nos Estados Unidos. Não foi fácil me conquistar. Acho que, por medo de me decepcionar novamente, não respondia às suas investidas. Mas ele insistiu e eu me entreguei. Desde pequena, sonhava em ter um lar de verdade, com marido e filhos. Minha hora havia chegado.

Robert passava a semana em São Paulo e, aos sábados e domingos, íamos para o haras. Foi uma das melhores fases da minha vida. Ele me levou aos Estados Unidos para me apresentar aos pais e logo virei parte da família. Frequentávamos a hípica paulista, jantávamos fora e, juntos, planejávamos o futuro. Queríamos encher a casa de filhos.

Dois anos depois, Robert decidiu morar em Cerquilho e montar um novo negócio. Começou com uma plantação de alface em estufa e rapidamente quis ampliar a produção. Em um fim de semana, decidiu ir a Itatiba comprar novas mudas. Queria que eu fosse com ele, mas precisaria faltar ao trabalho – dava aulas para pré-adolescentes em um colégio – e, como sempre fui muito certinha, optei por não ir junto. Na quinta-feira, saí da escola e fui direto à casa de seus pais, que também estavam de volta à cidade. Como Robert demorava, ligamos a TV para passar o tempo. A programação foi interrompida para noticiar um acidente na estrada. Como ele não atendia o telefone, seu pai ligou para a polícia, que informou que o acidente tinha uma única vítima: Robert, o homem da minha vida.
Meu primeiro sentimento foi de raiva. Como podia ter acreditado que viveria aquele conto de fadas? Passei seis meses na cama pedindo que Deus me levasse também. Para completar, comecei a sentir tonturas fortíssimas. Não conseguia sair e vivia achando que ia cair. Fui ao ginecologista com minha mãe e ele me diagnosticou com síndrome do pânico. Passei a tomar remédios controlados e a fazer terapia.

“O acidente teve uma única vítima fatal: Robert, de 26 anos. Meu futuro marido, o homem da minha vida”

Nem sempre foi fácil deparar com minhas questões, mas, em um ano, estava curada. Percebi que o sofrimento não é privilégio meu e que poderia, com ele, me fortalecer. A fim de mudar de vida, aproveitei que uma amiga estava de mudança para o Canadá e fui junto. Lá, trabalhei como faxineira, garçonete. Imaginava conhecer alguém, fazer família. Mas o país de pessoas e temperaturas geladas me entristeceu horrores. Ângela e eu nos telefonávamos aos prantos, com muita saudade.

Foi assim que, pela primeira vez, entendi o sentido de família e senti a alegria que bloqueei quando fui adotada. Aquela era minha mãe. Ângela, ninguém mais. Nasci da barriga de Maria Aparecida por acaso. Ou talvez para entender a grandiosidade do amor que sentia por Ângela, Marco, Thaís, Vicente e Paula – nascida depois de a minha situação estar regularizada. Só vi minha mãe biológica mais uma vez, no casamento de Isabel, e ela não me reconheceu. Parecia meio louca e mal lembrava que eu havia nascido. Difícil acreditar, mas não senti nada. Meu pai fui ver no asilo pouco antes de ele morrer, três anos atrás. Ele, sim, me despertou algum arrependimento. Quando era adolescente, tentou me visitar algumas vezes, mas jamais o atendi. Coitado.

A maturidade adquirida com tudo isso fez com que, quatro anos depois, eu conhecesse o cara com quem fui casada por oito anos e me deu o filho com quem tanto sonhava – Enzo, de 9. Hoje, vejo que o que passei me deixou firme e com uma compreensão absurda do que é amor. Pudera todo mundo entender a vida assim.”


Reproduzido por: Lucas H.

Nenhum comentário: