sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Adoção sem fronteiras

ISTO É Comportamento
|  N° Edição:  2256 |  07.Fev.13 - 23:59 |  Atualizado em 08.Fev.13 - 09:41


Os brasileiros começam a superar os preconceitos e aceitar crianças que estavam fadadas a crescer em abrigos: negras, mais velhas e com necessidades especiais

Laura Daudén

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O ano era 1973. O Brasil da ditadura militar ainda nem sonhava com um estatuto que garantisse o direito das crianças e dos adolescentes, que só chegaria em 1990, após a redemocratização. Em Curitiba, no Paraná, Hália Pauliv, hoje com 75 anos, adotava duas meninas, ambas de pele branca, tal como a sua, e ainda bebês, como a sociedade preconizava. “Adotei num tempo em que havia muito preconceito. Só se escolhiam bebês e os maiores iam para reformatórios”, diz Hália, que atualmente coordena um grupo de apoio chamado Adoção Consciente. A transformação ocorrida nessas últimas quatro décadas pode ser ilustrada na experiência de uma de suas filhas, Fernanda, 39 anos. Em 2009, ela adotou as irmãs Maria Vitória, hoje com 8 anos, e Elizabete, de 11. No passado, adoções como essas, envolvendo crianças mais velhas, negras, grupos de irmãos ou com algum tipo de deficiência eram consideradas quase impossíveis. Com isso, essas pessoas fatalmente perdiam a oportunidade de recomeçar suas histórias em uma nova família. Mas números divulgados no fim de janeiro pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável pelo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), mostram que o Brasil está se redimindo desses longos anos de preconceito. Os pretendentes estão cada vez menos exigentes com relação à cor da pele, ao sexo e à idade. Além disso, ainda que de maneira mais lenta, estão mais abertos a adoções especiais, de crianças portadoras de algum tipo de enfermidade ou deficiência. Essa tendência, já bastante consolidada entre os adotantes estrangeiros, começa a diminuir as brutais diferenças entre o perfil requerido pelos pais e a realidade das crianças abrigadas no País.
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Em 2010, 31% dos inscritos no cadastro se diziam indiferentes à cor da pele. Hoje, são 38%.
A mesma variação se vê no caso da idade. Há dois anos, quase 20% dos pretendentes exigiam crianças menores de um ano. No último levantamento do CNA, eles somam apenas 16% (leia quadro). O coordenador de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo, Antonio Carlos Malheiros, explica que a adoção de crianças mais velhas já é uma realidade no caso das adoções internacionais. Segundo um levantamento do TJ feito entre janeiro e junho de 2012, 36 das 49 adotadas por estrangeiros no Estado tinham mais de 6 anos. Para o desembargador, a mudança que estamos vivendo é reflexo da nova lei de adoção, de 2009. Ela obriga que os adotantes passem por uma orientação junto aos grupos de apoio antes de serem habilitados. “Esse trabalho de conscientização fez determinados preconceitos cair por terra”, afirma. A percepção é compartilhada por Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito da Família (Ibdfam). “A gente deve apresentar aos pretendentes a realidade nua e crua. A maior parte das crianças é negra, tem mais de 5 anos e algum tipo de doença”, diz. “Isso tem aberto o coração das pessoas para o fato de que filho a gente não escolhe, filho chega.”
Justamente por não se tratar da escolha de um produto em um supermercado, a adoção não está imune a eventuais conflitos e problemas, assim como acontece com a criação de um filho biológico. “Para muita gente, a adoção é um sonho, e não funciona assim”, afirma a administradora pública Cristiane Pinto, 35 anos, mãe de Aline, 16, adotada há quatro anos. “A nossa filha veio com uma bagagem muito pesada e a gente percebia isso nos pesadelos, na saúde, nas reações inconstantes. Tivemos de ter paciência, dialogar e dar muito amor para vencer essas barreiras.” É esse tipo de experiência que vem sendo compartilhada nos 124 grupos de adoção formais e informais espalhados pelo País, segundo a Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção. Eles vêm ajudando a desfazer mitos e a orientar os pais nos momentos mais difíceis. Roberto Beda, presidente do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (Gaasp), afirma que, nos encontros que acontecem mensalmente e reúnem pretendentes e pais que já adotaram, os participantes têm a oportunidade de trocar informações sobre como proceder, por exemplo, em casos de regressão – uma reação bastante comum nas adoções tardias. “As crianças têm comportamentos que não condizem com a sua idade. Chupam chupeta, fazem xixi na cama. É como se eles tivessem que renascer na nova família”, diz. Beda afirma que esse é um indicador positivo de adaptação, mas pode ser mal interpretado se os pais não tiverem conhecimento anterior.
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Foi justamente a participação em um desses grupos que revirou o entendimento que a oficial de justiça Paula Cury, 43 anos, tinha sobre a adoção. “Em 2006, quando dei entrada na minha habilitação, achava que só se adotavam bebês”, diz. Hoje ela é mãe de Rodrigo, 7 anos, diagnosticado com paralisia cerebral, de Maria Luiza, 6 anos, portadora do vírus HIV, dos irmãos biológicos Laura, de 16, e Rodrigo, 14, além de Maria Eduarda, que tem 7 anos e sofre de hidroanencefalia, macrocefalia, paralisia cerebral grave e epilepsia. Ela também coordena um fórum na internet com a intenção de informar as pessoas sobre a adoção de crianças com alguma necessidade especial. “Não pode ser um ato de caridade, porque você logo vai cobrar da criança uma gratidão que não existe. A adoção tem de ser muito consciente”, afirma.
Esse entendimento cuidadoso do processo, que preza pela real capacidade do adotante de satisfazer os interesses da criança, ficou plasmado na nova lei de adoção. Nela, o Estado brasileiro vê os pretendentes como parte da solução para o problema das crianças sem família, e não o contrário. “Não se buscam crianças adequadas às famílias, mas famílias adequadas às crianças”, diz Roberto Beda. É importante, portanto, que pais e mães que desejam adotar tenham plena consciência do que os motiva. Segundo a psicóloga Cintia Liana Reis de Silva, que atua na organização italiana Senza Frontiere Onluz de adoção internacional, é preciso identificar o que desperta o desejo de adotar. “Se a vontade do adotante é legítima e saudável, o sucesso está quase garantido”, afirma.
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A analista de departamento pessoal Andréa Sampaio, 40 anos, carregou essa vontade desde a infância. Quando pequena, pediu que sua mãe lhe comprasse uma boneca negra que vinha com certificado de adoção. A certeza de que seria mãe adotiva foi compartilhada mais tarde com o marido, Eduardo Giraldi, e culminou com a adoção, em 2003, de um menino negro de apenas 3 meses que estava abrigado em Salvador, na Bahia. “As pessoas não queriam fazer uma adoção inter-racial por ter medo de falar sobre adoção”, diz. Diego, hoje com 9 anos, logo pediu uma irmã aos pais. Vitória chegou em 2008, aos 2 anos e meio, depois de ser abandonada em um centro de acolhimento, em São Paulo. Sobre o preconceito, Andréa sentencia: “As mudanças culturais que geraram novas estruturas familiares estão abrindo caminho para a quebra dos velhos estigmas.” Além disso, recentes estudos mostram que a aceitação e a vivência da diversidade pela família são positivas para o desenvolvimento dos adotados. Uma pesquisa publicada em 2010 pela professora Gina Miranda Samuels, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, revela que o aprofundamento da identidade racial é extremamente importante para o filho fruto de uma adoção inter-racial – conclusão que coloca em juízo a prática de não assumir as diferenças na cor da pele. Esse tipo de esclarecimento é fundamental para quem se sente inseguro na hora de delimitar o perfil da criança a ser adotada.
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“Nós nunca sofremos nenhum tipo de preconceito, mas eu vivo me preparando para isso”, afirma a gerente de marketing Maria Aparecida Vasconcelos, mãe de Catarina, 4 anos, que foi adotada há um ano e meio, em São Paulo. A sua estratégia para trabalhar as diferenças é a transparência. “Ainda que ela veja tudo de maneira lúdica, explico que ela não nasceu da minha barriga, apesar de eu ser sua mãe.” A mesma filosofia foi aplicada por Alessandra Marangoni, mãe da menina N.L., que hoje tem 2 anos e cuja mãe biológica era portadora de HIV. “N.L. não nasceu de mim, mas para mim. Ela tem uma história que precisa ser respeitada e eu não vou tirar esse direito dela”, afirma. Sobre a decisão de adotar uma criança com possibilidade de ter Aids – recentes exames constataram que ela era negativa para o vírus –, Alessandra afirma que tinha mais medo de que um de seus dois filhos biológicos morresse de asma. “É uma doença? É. Tem chance de morte? Tem. Mas não é um bicho de sete cabeças.” Dados do CNJ de 2012 mostram que 1107 crianças aptas à adoção têm problemas de saúde. Dessas, 144 têm o HIV.
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A Associação Paranaense Alegria de Viver (Apav), de Curitiba, é um dos centros de acolhimento que recebem apenas portadores do vírus. Ao longo de duas décadas, a organização já atendeu mais de 120 crianças e jovens. A fundadora Maria Rita Teixeira, 60 anos, que tem três filhos biológicos e um adotado, ressalta que, uma vez superado o preconceito, o mais difícil é transpor os obstáculos da Justiça. “As crianças que recebemos são encaminhadas pelo juiz e logo esquecidas. As destituições familiares, essenciais para as adoções, simplesmente não acontecem.” Uma situação similar impediu que, em 2010, Aristéia Rau, 48 anos, e seu marido Alberto, 55, adotassem quatro crianças portadoras de HIV em Curitiba. Mesmo depois de conseguir a guarda de duas crianças do Rio de Janeiro, Mateus, 15 anos, e Daniele, 11, o casal resolveu se manifestar contra a falta de justificativas da Vara da Infância e fundou o Movimento Nacional das Crianças Inadotáveis (Monaci). O objetivo é chamar a atenção para os abrigados que ainda não estão na lista do CNA por conta da demora nos processos. “A situação das crianças em abrigos é uma verdadeira caixa-preta”, afirma Aristéia. O CNJ estima que 43.915 crianças estejam em centros de acolhimento em todo o País. Dessas, apenas 5.499 estão aptas à adoção.
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Gabriel Matos, juiz auxiliar do conselho, afirma que “existe um preconceito de que a criança destituída ficará sem família durante o período de acolhimento, o que gera certa letargia do Judiciário na hora de julgar esses casos”. Para resolver esse problema, o Conselho promete adotar um sistema integrado de informações com o Ministério Público e o Ministério de Desenvolvimento Social e fazer um levantamento do número de crianças abrigadas que ainda precisam passar pelo processo. Segundo a juíza Maria Lucia de Paula Espíndola, da 2ª Vara da Infância e Juventude de Curitiba, a destituição deveria durar até 120 dias, mas a dificuldade de encontrar todos os familiares e conseguir todas as negativas necessárias para entregar a criança à adoção atrasa o processo. “Entendemos que os trâmites não podem ser rápidos porque temos de ter responsabilidade. Mas é fato que nosso Judiciário não está bem estruturado”, afirma Antonio Carlos Malheiros. “As nossas varas ainda não são especializadas e precisamos quadruplicar o número de técnicos.” Considerando que, apesar da paulatina mudança de comportamento dos brasileiros, o passar do tempo ainda reduz substancialmente as chances de essas crianças serem adotadas, a mudança é urgente.
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Foto: Frederic Jean/Ag. Istoé; Guilherme Pupo; Pedro Dias, Gabriel Chiarastelli - Ag. Istoé

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