Atitude adotiva
Publicado em 05.02.2013, às 22h19
A pluralidade familiar, surgida naturalmente dos novos costumes da contemporaneidade, está cada vez mais inserida no ordenamento jurídico
Foto: internet
Por Guilherme Lima Moura
Há alguns dias, Henrique, meu filho de nove anos, participou de um diálogo interessante. Conversava com dois de seus amigos, quando um deles disse ao outro: “Mas seu pai não é seu pai de verdade”. Todos sabiam que o menino em questão havia conhecido seu pai há alguns anos, quando sua mãe casou pela segunda vez. Ao entrar na vida daqueles dois, o novo marido de sua mãe havia ido além da condição de padrasto e conquistado afetivamente a condição de pai. Soube transformar enteado em filho.
Ante aquela afirmação, o menino interpelado explicou ao amigo que ele não era seu pai biológico. Era seu pai de verdade porque eles se amavam e assim haviam decidido que fosse. Henrique, então, acrescentou à conversa o seu depoimento pessoal: “É verdade. Eu também não saí da barriga da minha mãe, mas ela é minha mãe. E eu amo muito minha mãe e meu pai”. O garoto que havia lançado a questão agora ouvia atentamente, enquanto a conversa seguia naturalmente para outros assuntos. Estava claro para eles que o sangue não é necessário para criar pais e filhos de verdade.
Em outra ocasião semelhante, um amigo de minha filha mais velha havia questionado sua condição de irmã de Henrique, em função da diferença na cor da pele. Ele pardo, ela negra. Passado algum tempo, veio até ela para lhe dizer, mostrando atitude de quem havia compreendido algo importante: “Marília, eu agora entendi. Adoção é amor. Você e Henrique não têm o mesmo sangue, mas são irmãos de verdade porque vocês se amam. Vocês se adotaram”. Estava claro para eles que não é o sangue que cria irmãos de verdade.
Essas duas situações têm algo de muito especial em comum: ambas aconteceram na escola. A escola que hoje é, por excelência, o lugar da diversidade. Em particular a diversidade das famílias, que mais do que nunca são estruturadas e reestruturadas com base no afeto. É também e justamente a falta de amor que muitas vezes as desestruturam, abrindo espaço para novas configurações, novas tentativas de compartilhar afeição.
Famílias monoparentais, em que só há pai ou mãe. Famílias ampliadas, em que avós, tios ou tias tornam-se pais ou mães. Famílias homoafetivas, com dois pais ou duas mães. Famílias recasadas ou pluriparentais, onde padrastos ou madrastas transformam-se em pais ou mães. São algumas das possibilidades que se somam às tradicionais famílias formadas pelo conjunto pai, mãe e filhos. Todas elas famílias adotivas; todas elas famílias de verdade.
Tal pluralidade, surgida naturalmente dos novos costumes da contemporaneidade, está cada vez mais inserida no ordenamento jurídico, como pode ser observado no artigo 5º da Lei Federal nº 11.340/2006, segundo o qual a família é “compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.” O parentesco é assim definido a partir de laços naturais, afinidade ou vontade expressa. Ora, nada mais adotivo do que a afinidade e a vontade expressa. E nada mais natural do que os laços de amor. O parentesco é, no fim das contas, pura adoção.
Como afirma a psicóloga Myriam Soler, a adoção transcende as questões legais e sociais, para se revelar num novo ato psíquico de aceitação do outro nas constituições e, mais acentuadamente, nas reconstituições dos vínculos familiares. Ou seja, para além da legalidade, a família precisa ser adotiva na sua essência.
Quando penso na naturalidade com a qual meus filhos e seus amigos se entenderam, percebo que estamos diante de uma geração adotiva. De uma geração que percebe claramente, e desde cedo, que só o amor é capaz de nutrir as especiais relações que formam uma família. Que já entendeu − e sente na pele − que famílias sem atitude adotiva não passam de agregados de gente.
Para falar com a beleza e simplicidade da canção Família, de Rita Rameh e Luiz Waack: “Diga quem mora na sua casa. Quem mora com você. Com quem você divide o que gosta. Quem olha por você... Tantas famílias tão diferentes. Famílias com pouca, com muita gente. Isso não importa. O gostoso é ter sempre uma família bem pertinho de você.”
O amigo do meu filho tem um pai. Henrique e Marília são irmãos. Criança aprende com criança. E a escola, meus caros, é o lugar da geração adotiva e de suas famílias de verdade.
*As colunas assinadas não refletem, necessariamente, a opinião do NE10
http://ne10.uol.com.br/coluna/atitude-adotiva/noticia/2013/02/05/geracao-adotiva-397647.php
Ante aquela afirmação, o menino interpelado explicou ao amigo que ele não era seu pai biológico. Era seu pai de verdade porque eles se amavam e assim haviam decidido que fosse. Henrique, então, acrescentou à conversa o seu depoimento pessoal: “É verdade. Eu também não saí da barriga da minha mãe, mas ela é minha mãe. E eu amo muito minha mãe e meu pai”. O garoto que havia lançado a questão agora ouvia atentamente, enquanto a conversa seguia naturalmente para outros assuntos. Estava claro para eles que o sangue não é necessário para criar pais e filhos de verdade.
Em outra ocasião semelhante, um amigo de minha filha mais velha havia questionado sua condição de irmã de Henrique, em função da diferença na cor da pele. Ele pardo, ela negra. Passado algum tempo, veio até ela para lhe dizer, mostrando atitude de quem havia compreendido algo importante: “Marília, eu agora entendi. Adoção é amor. Você e Henrique não têm o mesmo sangue, mas são irmãos de verdade porque vocês se amam. Vocês se adotaram”. Estava claro para eles que não é o sangue que cria irmãos de verdade.
Essas duas situações têm algo de muito especial em comum: ambas aconteceram na escola. A escola que hoje é, por excelência, o lugar da diversidade. Em particular a diversidade das famílias, que mais do que nunca são estruturadas e reestruturadas com base no afeto. É também e justamente a falta de amor que muitas vezes as desestruturam, abrindo espaço para novas configurações, novas tentativas de compartilhar afeição.
Famílias monoparentais, em que só há pai ou mãe. Famílias ampliadas, em que avós, tios ou tias tornam-se pais ou mães. Famílias homoafetivas, com dois pais ou duas mães. Famílias recasadas ou pluriparentais, onde padrastos ou madrastas transformam-se em pais ou mães. São algumas das possibilidades que se somam às tradicionais famílias formadas pelo conjunto pai, mãe e filhos. Todas elas famílias adotivas; todas elas famílias de verdade.
Tal pluralidade, surgida naturalmente dos novos costumes da contemporaneidade, está cada vez mais inserida no ordenamento jurídico, como pode ser observado no artigo 5º da Lei Federal nº 11.340/2006, segundo o qual a família é “compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.” O parentesco é assim definido a partir de laços naturais, afinidade ou vontade expressa. Ora, nada mais adotivo do que a afinidade e a vontade expressa. E nada mais natural do que os laços de amor. O parentesco é, no fim das contas, pura adoção.
Como afirma a psicóloga Myriam Soler, a adoção transcende as questões legais e sociais, para se revelar num novo ato psíquico de aceitação do outro nas constituições e, mais acentuadamente, nas reconstituições dos vínculos familiares. Ou seja, para além da legalidade, a família precisa ser adotiva na sua essência.
Quando penso na naturalidade com a qual meus filhos e seus amigos se entenderam, percebo que estamos diante de uma geração adotiva. De uma geração que percebe claramente, e desde cedo, que só o amor é capaz de nutrir as especiais relações que formam uma família. Que já entendeu − e sente na pele − que famílias sem atitude adotiva não passam de agregados de gente.
Para falar com a beleza e simplicidade da canção Família, de Rita Rameh e Luiz Waack: “Diga quem mora na sua casa. Quem mora com você. Com quem você divide o que gosta. Quem olha por você... Tantas famílias tão diferentes. Famílias com pouca, com muita gente. Isso não importa. O gostoso é ter sempre uma família bem pertinho de você.”
O amigo do meu filho tem um pai. Henrique e Marília são irmãos. Criança aprende com criança. E a escola, meus caros, é o lugar da geração adotiva e de suas famílias de verdade.
*As colunas assinadas não refletem, necessariamente, a opinião do NE10
http://ne10.uol.com.br/coluna/atitude-adotiva/noticia/2013/02/05/geracao-adotiva-397647.php
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