05 de Fevereiro de 2013
Lúcia Müzell
Direto de Paris
Poucos temas dividem com tanta clareza os franceses quanto a recente polêmica sobre o direito ao casamento e adoção por casais homossexuais. Os progressistas argumentam que a concepção tradicional da família mudou: a procriação não é mais a principal motivação para o casamento e um casal homossexual pode desempenhar com igual ou até melhor competência o papel da maternidade ou paternidade que os héteros. Em via oposta, os detratores do projeto de lei que começou a tramitar nesta semana no Parlamento francês insistem que uma criança tem direito a um pai e uma mãe, e que ninguém sabe ao certo as consequências de uma família com dois pais ou duas mães para a educação infantil.
A polêmica aumentou há quase um ano, durante a campanha eleitoral do atual presidente, o socialista François Hollande, que colocou o projeto como uma de suas prioridades de governo. E se acentuou em janeiro, com a proximidade da análise, pelos deputados e senadores, do texto que autoriza as duas mudanças no Código Civil. Fazia anos que um tema de cunho social não causava tanta divergência no país ao ponto de levar milhares de pessoas às ruas para manifestar adesão ou oposição à proposta - talvez a última vez tenha sido por uma razão semelhante, quando, há 13 anos, o país abriu as portas da união civil estável aos homossexuais.
Em 1997, explica a socióloga Irène Théry, embora a sociedade já estivesse em plena evolução, a função social do casamento ainda era resultar na procriação. A chamada “presunção de paternidade” unia, portanto, um homem e uma mulher sob a instituição do matrimônio, enquanto que a união estável dava direitos civis semelhantes aos casais homossexuais.
A mudança foi vista como uma vitória revolucionária em um país, um tanto paradoxal, onde a postura de vanguarda de muitos esbarra com frequência na resistência de uma maioria católica conservadora. Não se pode esquecer, lembra Théry, que até 1972 apenas um casal formalmente casado formava uma família, e os filhos feitos fora do casamento eram considerados ilegítimos. Mais impressionante ainda, foi somente a partir de 1965 que as francesas tiveram direito a abrir uma conta em um banco ou a procurar um emprego sem a autorização expressa dos maridos.
IGUALDADE DE DIREITOS
“Em 1997, a presunção de paternidade ainda estava encravada na sociedade. Mas ao longo destes 13 anos, foi justamente a reflexão sobre a permanência deste modelo que fez a mim e muitas pessoas mudarem de ideia: o nosso sistema familiar se alterou profundamente. Ter filhos e ser casado hoje são duas coisas distintas, que não necessariamente caminham juntas, como é caso dos pais divorciados, dos filhos fora do casamento e tantas outras configurações familiares cada vez mais comuns”, afirma a socióloga, especialista em direito familiar da Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais e uma das idealizadoras do Pacs, como é chamado o contrato de união civil estável na França. Naquela época, o que estava em jogo era admitir, aos olhos da lei, que um casal não era somente um homem e uma mulher. Mas como certos direitos ficaram de fora do Pacs - como o de herança em caso de morte –, hoje o desafio é ampliar este direito a um casamento por completo, sob o princípio da igualdade de todos perante a lei, um dos fundamentos da República francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade).
“Hoje, o sentido profundo do casamento não é mais o de dar um pai aos filhos de uma mulher. Ele é a oficialização de um casal, seja ele como for. E por que certos casais teriam menos direitos do que os outros?”, questiona Théry, ressaltando que, ao longo da história, o homossexualismo jamais significou a renúncia dos instintos paternos – antigamente, a solução para este conflito era casar e ter filhos, mas manter uma vida homossexual em paralelo.
Foi esta extensão do direito ao casamento para os homossexuais - ou seja, sobre o direito de ter filhos - que levantou os franceses mais conservadores: enquanto pelo menos 60% da população é favorável ao casamento entre duas pessoas do mesmo sexo, mais de 50% se opõe à adoção. A polêmica não poupa inclusive os simpatizantes da esquerda, que entre 35 e 40% não concordam com a ideia de ver pais e mães gays oficializados.
O perfil típico dos opositores ao projeto é de homens de direita moderada e com mais de 60 anos, apontam pesquisas. E ao contrário do que se possa imaginar, o fator “religião” não é determinante neste posicionamento - 54% dos católicos franceses aprovam o direito ao casamento gay e 41%, a adoção. No centro do debate estão as dúvidas sobre os referenciais masculinos e femininos na formação de um indivíduo e as influências sociais de dois pais ou duas mães na vida de uma criança.
CONFUSÃO SOBRE A PRÓPRIA ORIGEM
“Dizer para uma criança que ela nasceu do amor de duas pessoas do mesmo sexo equivale a introduzir uma mentira na sua filiação, na sua origem. Toda criança sabe que nasceu da união entre um homem e uma mulher, seja ela efêmera ou perene, natural ou com auxílio médico”, afirma o psiquiatra infantil Christian Flavigny, responsável pelo departamento de Pscicanálise infantil do prestigiado Hospital Salpêtrière, em Paris. O tema provoca divergências entre os psicólogos e psiquiatras – enquanto uns analisam que as crianças buscam suas referências femininas e masculinas no mundo, e não apenas nos pais, outros evocam com frequência, na mídia francesa, as “angústias” que esta mudança nos padrões familiares poderá causar nas crianças.
Na visão Flavigny, o fato de um casal formado por duas pessoas do mesmo sexo ser capaz de desenvolver as mesmas tarefas parentais que um casal heterossexual não significa que os dois tipos de pais sejam idênticos, em relação à criança. Por isso, de acordo com o especialista, o caso de um casal hétero infértil que recorre à adoção não pode ser comparado à adoção feita por um casal gay.
“Na realidade, o projeto de lei favorece os pais, não as crianças. Ele é fundado em um discurso de adultos, segundo o qual a criança poderá compreender a sua verdadeira origem mais tarde, quando for maior”, analisa. “Porém este nível de explicação não será acessível para ela enquanto ela constrói a sua filiação, que é também a sua identidade.”
Com ou sem lei, o fato é que entre 24 e 40 mil crianças crescem ou cresceram em uma família homoparental na França. Mais do que ninguém, elas aguardam com impaciência o dia 12 de fevereiro, data prevista para a votação do projeto de lei na Assembleia Nacional francesa.
Manifestações contra (como a da foto) e a favor do casamento e da adoção por homossexuais têm sido frequentes no país Foto: AFP
http://noticias.terra.com.br/mundo/europa/franca-mais-do-que-o-casamento-adocao-por-gays-divide-analistas,0f8087b2f86ac310VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html
Lúcia Müzell
Direto de Paris
Poucos temas dividem com tanta clareza os franceses quanto a recente polêmica sobre o direito ao casamento e adoção por casais homossexuais. Os progressistas argumentam que a concepção tradicional da família mudou: a procriação não é mais a principal motivação para o casamento e um casal homossexual pode desempenhar com igual ou até melhor competência o papel da maternidade ou paternidade que os héteros. Em via oposta, os detratores do projeto de lei que começou a tramitar nesta semana no Parlamento francês insistem que uma criança tem direito a um pai e uma mãe, e que ninguém sabe ao certo as consequências de uma família com dois pais ou duas mães para a educação infantil.
A polêmica aumentou há quase um ano, durante a campanha eleitoral do atual presidente, o socialista François Hollande, que colocou o projeto como uma de suas prioridades de governo. E se acentuou em janeiro, com a proximidade da análise, pelos deputados e senadores, do texto que autoriza as duas mudanças no Código Civil. Fazia anos que um tema de cunho social não causava tanta divergência no país ao ponto de levar milhares de pessoas às ruas para manifestar adesão ou oposição à proposta - talvez a última vez tenha sido por uma razão semelhante, quando, há 13 anos, o país abriu as portas da união civil estável aos homossexuais.
Em 1997, explica a socióloga Irène Théry, embora a sociedade já estivesse em plena evolução, a função social do casamento ainda era resultar na procriação. A chamada “presunção de paternidade” unia, portanto, um homem e uma mulher sob a instituição do matrimônio, enquanto que a união estável dava direitos civis semelhantes aos casais homossexuais.
A mudança foi vista como uma vitória revolucionária em um país, um tanto paradoxal, onde a postura de vanguarda de muitos esbarra com frequência na resistência de uma maioria católica conservadora. Não se pode esquecer, lembra Théry, que até 1972 apenas um casal formalmente casado formava uma família, e os filhos feitos fora do casamento eram considerados ilegítimos. Mais impressionante ainda, foi somente a partir de 1965 que as francesas tiveram direito a abrir uma conta em um banco ou a procurar um emprego sem a autorização expressa dos maridos.
IGUALDADE DE DIREITOS
“Em 1997, a presunção de paternidade ainda estava encravada na sociedade. Mas ao longo destes 13 anos, foi justamente a reflexão sobre a permanência deste modelo que fez a mim e muitas pessoas mudarem de ideia: o nosso sistema familiar se alterou profundamente. Ter filhos e ser casado hoje são duas coisas distintas, que não necessariamente caminham juntas, como é caso dos pais divorciados, dos filhos fora do casamento e tantas outras configurações familiares cada vez mais comuns”, afirma a socióloga, especialista em direito familiar da Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais e uma das idealizadoras do Pacs, como é chamado o contrato de união civil estável na França. Naquela época, o que estava em jogo era admitir, aos olhos da lei, que um casal não era somente um homem e uma mulher. Mas como certos direitos ficaram de fora do Pacs - como o de herança em caso de morte –, hoje o desafio é ampliar este direito a um casamento por completo, sob o princípio da igualdade de todos perante a lei, um dos fundamentos da República francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade).
“Hoje, o sentido profundo do casamento não é mais o de dar um pai aos filhos de uma mulher. Ele é a oficialização de um casal, seja ele como for. E por que certos casais teriam menos direitos do que os outros?”, questiona Théry, ressaltando que, ao longo da história, o homossexualismo jamais significou a renúncia dos instintos paternos – antigamente, a solução para este conflito era casar e ter filhos, mas manter uma vida homossexual em paralelo.
Foi esta extensão do direito ao casamento para os homossexuais - ou seja, sobre o direito de ter filhos - que levantou os franceses mais conservadores: enquanto pelo menos 60% da população é favorável ao casamento entre duas pessoas do mesmo sexo, mais de 50% se opõe à adoção. A polêmica não poupa inclusive os simpatizantes da esquerda, que entre 35 e 40% não concordam com a ideia de ver pais e mães gays oficializados.
O perfil típico dos opositores ao projeto é de homens de direita moderada e com mais de 60 anos, apontam pesquisas. E ao contrário do que se possa imaginar, o fator “religião” não é determinante neste posicionamento - 54% dos católicos franceses aprovam o direito ao casamento gay e 41%, a adoção. No centro do debate estão as dúvidas sobre os referenciais masculinos e femininos na formação de um indivíduo e as influências sociais de dois pais ou duas mães na vida de uma criança.
CONFUSÃO SOBRE A PRÓPRIA ORIGEM
“Dizer para uma criança que ela nasceu do amor de duas pessoas do mesmo sexo equivale a introduzir uma mentira na sua filiação, na sua origem. Toda criança sabe que nasceu da união entre um homem e uma mulher, seja ela efêmera ou perene, natural ou com auxílio médico”, afirma o psiquiatra infantil Christian Flavigny, responsável pelo departamento de Pscicanálise infantil do prestigiado Hospital Salpêtrière, em Paris. O tema provoca divergências entre os psicólogos e psiquiatras – enquanto uns analisam que as crianças buscam suas referências femininas e masculinas no mundo, e não apenas nos pais, outros evocam com frequência, na mídia francesa, as “angústias” que esta mudança nos padrões familiares poderá causar nas crianças.
Na visão Flavigny, o fato de um casal formado por duas pessoas do mesmo sexo ser capaz de desenvolver as mesmas tarefas parentais que um casal heterossexual não significa que os dois tipos de pais sejam idênticos, em relação à criança. Por isso, de acordo com o especialista, o caso de um casal hétero infértil que recorre à adoção não pode ser comparado à adoção feita por um casal gay.
“Na realidade, o projeto de lei favorece os pais, não as crianças. Ele é fundado em um discurso de adultos, segundo o qual a criança poderá compreender a sua verdadeira origem mais tarde, quando for maior”, analisa. “Porém este nível de explicação não será acessível para ela enquanto ela constrói a sua filiação, que é também a sua identidade.”
Com ou sem lei, o fato é que entre 24 e 40 mil crianças crescem ou cresceram em uma família homoparental na França. Mais do que ninguém, elas aguardam com impaciência o dia 12 de fevereiro, data prevista para a votação do projeto de lei na Assembleia Nacional francesa.
Manifestações contra (como a da foto) e a favor do casamento e da adoção por homossexuais têm sido frequentes no país Foto: AFP
http://noticias.terra.com.br/mundo/europa/franca-mais-do-que-o-casamento-adocao-por-gays-divide-analistas,0f8087b2f86ac310VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário