domingo, 2 de dezembro de 2012

Um jovem criado na Holanda volta ao Brasil para conhecer seus pais biológicos

Vítima de maus-tratos na infância, Welington decidiu retornar ao país onde nasceu em busca de um sonho: conhecer a família biológica

ISABEL CLEMENTE
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REENCONTRO Welington com Vilma  da Silva Cruz, sua mãe biológica. “Eu não tinha como protegê-lo. O pai o ameaçava”  (Foto: Saul Schramm/ÉPOCA)


Capítulo 1
(Trecho de reportagem da revista ÉPOCA desta semana.)
De Campo Grande para Huizen, de Huizen para Campo Grande

Fazia 30 graus no dia 10 de julho de 1997, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. O olhar azul de Paul Willems se alternava entre a cobertura do bolo que derretia em seu colo e a paisagem de casas simples com tijolos aparentes do lado de fora. O carro sacolejava pelas ruas quentes e sem asfalto, a caminho da Casa da Criança de Campo Grande, orfanato onde Paul, então com 42 anos, e a mulher dele, Iemke, de 36, seriam apresentados ao pequeno Welington, que só conheciam por fotos. Quando chegaram, o menino sorridente de 2 anos esticou os braços e balbuciou: “Mamãe, papai”. “É nosso? Já!?”, disse Iemke. Ela esquecia, subitamente, a burocracia que antecedera o encontro. Pegou Welington no colo e abraçou, pela primeira vez, um filho. Não falavam a mesma língua. Não tinham a mesma cor. As vidas de Paul, Iemke e Welington se entrelaçavam naquele instante.

Antes de deixar o abrigo, a família holandesa queria confraternizar com as demais crianças – e com os que haviam cuidado de Welington por um ano e meio. O bolo derretido estava lá para isso. Mas o menino chorou, como quem tinha pressa de ir embora. Era preciso começar logo a vida nova com os novos pais, como outras crianças tinham feito antes dele. “É apenas uma festa de despedida”, disse Iemke na ocasião, num português aprendido para consumo imediato, a fim de facilitar o primeiro contato com o filho. “Foi dilacerante o medo que ele tinha de não sair com a gente”, afirma, hoje, a mãe adotiva. Ela relembra o episódio como se recordasse um acontecimento do dia anterior. Antes de prosseguir com o relato, Iemke comprime o olhar, joga sombras no azul das pupilas e sorri com ternura. “Ele era tão pequeno, tão lindo. Só queria ser amado. Entramos no carro e, de repente, o sonho era real. Tínhamos um filho.”

Paul e Iemke se conheceram em 1980 e se casaram em 1995, quando decidiram adotar uma criança. “Não queria que um tratamento para engravidar se tornasse uma obsessão na minha vida, com tanta criança precisando de um lar”, diz Iemke. O casal foi para a fila da adoção. Fez um curso, conforme era exigido pelas entidades holandesas. Por seis meses, recebeu informações sobre “coisas terríveis” que podem acontecer na relação com uma criança adotada, lembra Iemke e força uma expressão irônica de horror. A espera durou dois anos. “Quando se adota, não se escolhem sexo, idade, cor. A gente diz sim para uma criança.” Quatro semanas depois do primeiro abraço, Paul, Iemke e Welington deixaram o Brasil rumo à Holanda. Morariam numa casa nova em Huizen, cidade de 43 mil habitantes a 20 quilômetros de Amsterdã. O calor ajudou na adaptação. Também fazia 30 graus em Huizen. Na primeira noite, Welington não dormiu. “Ficou de olho em nós”, diz Paul. Para contornar a insegurança, botaram o menino para dormir com os dois. Com o passar do tempo, o filho ganhou a própria cama, mas continuou no mesmo quarto. “O maior medo dele era ficar só”, afirma Paul.

O medo que Welington tinha de ser abandonado é um sentimento comum em crianças que experimentaram algum tipo de rejeição. Às vésperas de completar 1 ano, Welington fora enviado por ordem judicial à Casa da Criança de Campo Grande, um abrigo para menores retirados da família de forma temporária ou definitiva. Ele apresentava marcas de fivelas e queimaduras no corpo, dedos sem unhas, mãos fechadas. “Welington era uma criança sem fala, mas muito brincalhona. Ele era tão cativante que pensei seriamente em adotá-lo”, diz Joelma Lúcia Damasceno Fachini, de 46 anos, 19 dedicados à Casa da Criança e a única personagem do passado de quem Welington nunca se esqueceu. Tudo o mais, incluindo os maus-tratos, se apagou. No abrigo, o menino, a despeito do sofrimento estampado na pele, dormia bem e sorria com facilidade. “Ninguém conseguia brigar com ele”, afirma Joelma, sorriso e olhar perdidos em algum lugar do passado. Chamavam a atenção apenas as mãos crispadas. “Até que um dia...”, diz Joelma, interrompida pela voz embargada, “ele abriu as mãos para mim. Sabe o que é você ver que uma criança voltou a confiar nas pessoas?”
UMA FAMÍLIA HOLANDESA Welington entre Paul e Iemke Willems, seus pais adotivos. Quando  contaram ao filho sobre a vida dele antes da adoção, o choque foi grande  (Foto: Saul Schramm/ÉPOCA)
Com pouco tempo na Holanda, Welington era outra criança. O menino, que nem português falava, aprendeu rapidamente o holandês. Dormia bem. Não tinha pesadelos. “Andava pela casa levando Welington sentado no meu pé”, diz Paul. Levanta a perna e pousa as mãos, como quem simula um garoto agarrado na canela. O casal deu a Welington de tudo: uma vida confortável, educação, lazer e, principalmente, atenção. Receberam, em troca, amor. Paul e Iemke nunca tiveram babá. Graças à legislação holandesa, puderam se revezar no trabalho, cada um cumprindo meia jornada, para que sempre um dos dois ficasse com o menino. Welington só foi para a escola aos 4 anos. A família é tão unida que, nas últimas férias, segundo Iemke, Welington reclamou, em tom de galhofa: “É muito pai e muita mãe 24 horas por dia”.
“Esse casal é incrível, tem muita força interior e é louco pelo Welington”, diz Bertha Haddad Lane, uma simpática paulista criada em Campo Grande que, à época da adoção, representava a Netherlands International Child Welfare Organisation (NICWO) em Mato Grosso do Sul e trabalhava com adoções. Bertha, tradutora juramentada do processo da adoção, foi quem escreveu o relatório enviado a Paul e Iemke sobre a criança que receberiam. “Escrevi que o casal que adotasse Welington ganharia uma joia, um tesouro precioso, algo assim. Paul e Iemke não esquecem isso. Nesse caso, os dois lados ganharam”, afirma Bertha. Ela mora na Holanda com as duas filhas. “De todos os casais com que tenho contato, esse sempre foi especial.”
***
Comecei a trocar e-mails com Paul antes de eles chegarem ao Brasil, no mês passado. Tivemos três longas conversas ao vivo, em Campo Grande, e mais trocas de mensagens depois. Paul e Iemke encarnam a imagem de um casal bem resolvido. Ela é formada em administração. Ele, em economia. Paul trabalha na prefeitura de Huizen. Iemke, numa ONG dedicada a crianças que sofreram abusos. Pelo menos uma vez por ano, saem de carro da Holanda com Welington e rodam dez horas até Serfaus, uma estação de esqui na Áustria, conhecida apenas pelos iniciados no turismo da neve europeia. É nesse resort escondido nos Alpes austríacos que a família Willems pratica um dos hobbies preferidos de Welington, o esqui.
Dizem, com naturalidade, que ele sempre teve um vínculo forte demais com o Brasil. “Vítima de racismo? Não. Os holandeses aceitam bem as diferenças de cor, mas há sempre algo em ser o diferente”, diz Iemke. Foi só no ano passado que Welington soube dos detalhes tristes de sua história. Paul e Iemke lhe entregaram uma tradução para o holandês de parte do processo de destituição da guarda familiar que explicava, afinal, por que os pais de origem não tiveram condições de criá-lo. O choque foi grande. Paul teve de resgatar Welington de um bar, onde fora beber com os amigos. Ofereceu ajuda. Terapia, talvez. Welington disse que resolveria sozinho. E deixaram o tempo passar. Paul e Iemke já davam partida, então, nas providências para atender a um pedido do filho que consideravam inevitável. Em janeiro deste ano, ele tomou uma decisão: queria conhecer os pais biológicos. A volta às origens gera ansiedade, medos, perguntas. Muitas crianças adotadas querem reencontrar os pais verdadeiros, porque buscam uma explicação para a rejeição, anterior à adoção. É quase um impulso. Na Holanda, Paul e Iemke foram aconselhados a só permitir esse retorno aos 18 anos.
Seguros do amor que sentem e recebem do filho, Paul e Iemke consideram indissolúvel o vínculo criado a partir da adoção. Muito educados, cultos e viajados, encaram sem drama a possibilidade de Welington, um dia, vir morar no Brasil. “Filhos de vários amigos nossos foram morar fora da Holanda. Um se casou com uma americana. Outro foi parar na Suécia. É cultural. A chance de seu filho ir morar em outro lugar é grande. Campo Grande é longe, mas Fortaleza está a dez horas de voo, como Nova York”, diz Paul, sob o olhar cúmplice de Iemke. Antes que eu elabore qualquer pergunta, ela se antecipa num comentário, já rindo de si mesma. “É muito comum, o que não quer dizer que eu vá gostar disso.”
No dia 10 de agosto de 2012, Paul, Iemke e Welington voltaram a Campo Grande. O clima, de novo, era quente, mas o carro não sacolejava mais. As ruas estavam asfaltadas. Os três fizeram o caminho de volta da Holanda para realizar o sonho de Welington: conhecer a mãe biológica.

http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2012/12/um-jovem-criado-na-holanda-volta-ao-brasil-para-conhecer-seus-pais-biologicos.html

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