Publicado em 01.11.2012
Por Guilherme Lima Moura
Enquanto eu servia o jantar aos meus filhos, minha caçula entre as meninas, na época com quatro anos, dirigiu-me uma pergunta. Respondi sem paciência: “Filha, se você já sabe a resposta, por que está perguntando de novo?”. Essa minha indagação, por sua vez, cumpria mera função retórica porque eu não tinha a menor intenção de levar adiante aquele diálogo. Era mais uma espécie de reclamação.
Ela então me olhou com firmeza e voltou à carga, usando uma entonação típica de quem está a falar o óbvio: “Pai, eu sei a resposta. Mas eu gosto de ouvir você dizer!”. Talheres à mão, parei o que fazia como uma estátua e engoli seco. Dei-me conta, naquele momento, de que havia uma tarefa de pai a ser feita ali mais importante do que servir a comida: ouvir minha filha.
Quanta sabedoria a dela. Minha menina não me pedia uma informação. Não me perguntava sobre o significado das coisas. Ela queria, simplesmente, que eu lhe dissesse de novo o que já havia lhe dito antes, porque ela já havia percebido, na sua intuição de criança, a profundidade filosófica proposta por um sujeito brilhante, chamado John Austin: todo dizer é um fazer.
Por isso, a repetição da pergunta era absolutamente cabível. Era mesmo natural e necessária, do mesmo modo que ocorre com o afago que marca as relações amorosas: tem que ser cotidiano, tem que ser sempre. Não basta abraçar, beijar e cheirar uma vez quem a gente ama. Não basta que seja de vez em quando. O abraço, o beijo, o cheiro não são maneiras de informarmos que amamos. São maneiras de amarmos.
O mesmo ocorre na linguagem. Vivemos na linguagem, especialmente nessa experiência fantástica e tão humana que é a conversa. É na conversa que acolhemos o outro porque quando o escutamos dizemos a ele que ele é importante. Que toda história que ele nos conta é especial porque, sendo parte dele, é também parte nossa.
Portanto, ouvir as histórias (e as estórias) de quem a gente ama é uma das formas mais especiais de amá-lo ou amá-la. Especialmente quando se trata de nossos filhos. Mas não é apenas fazer uma cara de paisagem e balançar a cabeça. Não é apenas dizer “Sei, sei...”. É escutar de verdade. Rir das besteiras, perguntar, valorizar a narrativa. Interessar-se! E, quem sabe, orientá-los, aconselhá-los, educá-los. Quem sabe, conhecê-los.
E só ouvindo-os de verdade faremos do nosso dizer um fazer verdadeiro porque é também no ouvir e no falar que cuidamos deles. É preciso apreciar suas conquistas, dizer-lhes o quão são especiais, ajudá-los a refletir ante os seus dilemas, apoiá-los nos seus enfrentamentos, informá-los de que tudo está ao alcance de suas mãos. É preciso estarmos abertos sempre para ouvi-los porque, se não estivermos disponíveis para as “besteiras” do dia a dia, como estaremos para as grandes questões?
O fazer-se pai/mãe, então, ocorre cotidianamente na conversação. Não há convivência sem conversa, de tal modo que é só “conversando que a gente se entende”. É só conversando que a gente (com)partilha. Não conversar com nossos filhos é uma forma de negá-los. É uma forma de excluí-los das nossas vidas sutilmente, um pouco a cada dia. É uma forma de, parafraseando Luiz Schettini, fazer pior do que matar: é deixar morrer devagar todo dia por inanição. No nosso caso, não matamos a criança, mas matamos o filho. Porque, sem a atitude adotiva que se expressa na conversação amorosa, não há filhos... nem pais.
Naquele jantar, quando eu parei num susto, só deu tempo de respirar fundo e de pensar: “Quatro anos!”. Olhei nos olhos dela. “Diga, filha. Você tem razão. Pergunte de novo. Papai vai responder”. Entre o ouvir e o dizer, naquele instante eu pude mais uma vez reconhecê-la como alguém que existe individualmente, mas que só se realiza no encontro afetivo com o outro. Alguém que existe como filha na medida em que tem o pai e a mãe pra conversar.
Foi então que, em volta da grande mesa, enquanto comíamos todos na bagunça sorridente de sempre, eu disse à minha filha − de novo! − tudo aquilo que ela queria e precisava ouvir de mim naquela noite.
http://ne10.uol.com.br/coluna/atitude-adotiva/noticia/2012/11/01/diz-de-novo-378235.php
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