domingo, 5 de outubro de 2014

AÇÃO DOS INADOTÁVEIS - Para o Estado, a culpa é da vítima

 
  Dentre as impropriedades e ilegalidades levantadas pelo Estado como defesa de sua atuação ao condenar a criança ao isolamento definitivo, foi igualmente alegada em desfavor do jovem a condição de abalo psicológico na qual este chegou ao abrigamento. Culpou a vítima.
  Explica-se: a criança, ao tempo de seu abrigamento em 2004, possuía convívio familiar com membro de sua família biológica. Entretanto, esta criança era vítima de reiterados e graves abusos, estes de gravidade tal que, finalmente, o levaram ao abrigamento!
  Por óbvio que uma criança que sofra diuturnamente abusos da mais condenável natureza apresentará quadro transitório de grave abalo psicológico, devendo ser submetida a tratamento para que se lhe possa reverter os traumas adquiridos a ponto de a criança poder ter uma vida normal. Entretanto, não é o que entende o Estado.
  
 Para esta entidade, a criança que apresenta quadro de trauma psicológico e condições transitórias de abalo emocional é responsável por sua condição e deve ser punida por isso com o isolamento compulsório e definitivo. É o que declara o ente estatal, afirmando que o jovem:

"(ii) apresenta quadros significativos de depressão, (iii) é criança de difícil convivência, (iv) é agressivo, (v) passa por tratamento psiquiátrico, (vi) tentou o suicídio duas vezes, (vii) não tem condição de sair do abrigamento..."
  Porém, todas estas condições foram apontadas no laudo elaborado em 2004 (!), ou seja, oriundo do momento do abrigamento da criança, quando havia sido recém resgatada da condição de abuso; jamais foi feita a reavaliação da criança nos 10 anos (!) subsequentes. Pior do que isso: o laudo fora confeccionado por assistente social, e não por médico psiquiatra, psicólogo ou outro profissional da área médica apto a lhe imputar as condições de saúde alegadas(!!). A criança foi condenada ao abrigamento por conta de suas (presumível - não provadas) condições psicológicas transitórias que constaram em laudo, causadas pelos traumas do abuso, os quais ocorreram  antes da criança ser abrigada; foi desconsiderada toda e qualquer eventual melhora oriunda dos tratamentos a que foi submetida, do carinho que recebeu na instituição e o comportamento posterior. O que o Estado fez foi utilizar o trauma e a situação de risco a que a criança estava exposta contra ela mesma, impedindo a obtenção de família substitutiva.
  O ato do Estado em assim agir igualmente viola a letra expressa do Estatuto da Criança e do Adolescente, que afirma, de forma isenta de dúvidas, que a criança abrigada deve ter sua situação reavaliada em, no máximo, cada 6 meses:
"Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no máximo, a cada 6 (seis) meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei." (art. 19, §1º, do ECA)
  A situação da criança, no entanto, jamais foi reavaliada (em 10 longos anos) depois de seu abrigamento. Do contrário, a juíza que cuidou do caso decidiu por simplesmente arquivar o processo do jovem, em total desrespeito à garantia da Lei, conforme já visto.
  Assim foi decidido:

  "Observo que o jovem Xxxx Xxxx xx Xxx Xxxx está sendo assistido nos seus direitos fundamentais pela entidade de abrigo. Não havendo outros encaminhamentos para serem aplicados ao presente caso, haja vista a impossibilidade de reintegração familiar, recolham-se os autos no arquivo provisório até o surgimento de novos fatos ou a maioridade civil seja alcançada"
  Novos fatos? E a reavaliação compulsória da situação da criança a cada 6 meses? E a condição provisória e não definitiva do abrigamento definida por lei? E a destituição do poder familiar, igualmente mandamental nos casos de impossibilidade de reinserção da criança no poder familiar?

   Nada disso foi respeitado.

  CONTINUA.
  

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