terça-feira, 14 de agosto de 2012

A INSERÇÃO DA ADOÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


Pricila Carla da Silva Ely1 1 Professora Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidad Católica Argentina, Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal de Curitiba; Pesquisadora e Professora de Direito Civil e Internacional da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe, Advogada inscrita na OAB/SC 26249. Dados para contato: e-mail: advpricila@yahoo.com.br; Fone: (049) 3244-0410. RESUMO A adoção consiste em um ato jurídico pelo qual se estabelece independentemente do fato natural da procriação, o vínculo de filiação. Trata-se de um parentesco eletivo que consagra a paternidade e maternidade socioafetiva, baseando-se não em favor biológico, mas em fator sociológico. O instituto da adoção que remota ao período da Idade Antiga apresentou-se em várias culturas com conceitos e finalidades distintas, sendo utilizado tanto para perpetuar o culto familiar, quanto para resolver um problema de esterilidade. Assim como os demais países do globo, o Brasil sentiu necessidade de inserir este instituto em seu ordenamento jurídico, e o fez no primeiro Código Civil Brasileiro. Apesar haverem disposições inerentes à adoção nas ordenações Filipinas, Manuelinas e Afonsinas, somente com o primeiro Código Civil brasileiro é que este instituto passou a fazer parte de uma legislação nacional. Neste contexto, a visão individualista desta legislação que é elaborada em um século e entra em vigor no século posterior, deixa muito a desejar em aspectos jurídicos e sociais, fazendo com que este instituto não alcançasse a finalidade a que se propõe naquela época, até mesmo porque, faltava maturidade e valores para determinar um conceito de adoção como esta é vista nos dias de hoje. Palavras-chave: Adoção; Filiação; Direito de Família. THE INTEGRATION OF ADOPTION LAW IN BRAZIL ABSTRACT Adoption is a legal act by which is established independently of the natural fact of procreation, the bond of filiation. This is an elective kinship which establishes paternity and maternity socioaffective, based not in favor biological, but sociological factor. The institution of adoption that remote period of the Ancient Age presented in various cultures with different concepts and purposes, being used both to perpetuate the family worship, how to solve a problem of infertility. Like other countries around the globe, Brazil felt the need to enter the institute in its legal system, and made him the first Brazilian Civil Code. Despite having provisions inherent in adopting 4 ordinances Philippines, Manueline and Afonsinas, only the first Brazilian Civil Code is that this institute became part of national legislation. In this context, the individualistic view that this legislation is drafted in a century and comes into force later in the century, leaves much to be desired in legal and social aspects, making this institute did not achieve the purpose for which it is proposed that time, even because they lacked maturity and values to determine a concept of adoption as it is seen today. Keywords: Adoption, Affiliation, Family Law. 1 INTRODUÇÃO Estudar o instituto da adoção reveste-se de importância singularíssima. Pode-se dizer que os fatos que a determinam e as necessidades a que responde e para as quais proporciona uma contemplação jurídica, surgem na mais remota antiguidade e perduram no transcurso dos séculos, se mantendo e se reafirmando nos tempos atuais de tão acentuadas desigualdades sociais e econômicas. Neste trabalho firma-se o propósito de traçar um breve apanhado acerca de alguns aspectos jurídicos da adoção, discorrendo, com maior afinco um período clássico do direito brasileiro, onde, pela primeira vez surgiu a codificação da adoção. O instituto em apreço nos dias atuais contempla uma visão jurídico-social voltada para a proteção integral da criança, embasada nas garantias de uma constituição cidadã e, em um Estatuto próprio que engloba a inserção de várias recomendações internacionais. Entretanto, quando do seu surgimento, a adoção era tratada como um meio de se conceder um filho a quem não poderia tê-lo de modo natural, não apresentava qualquer preocupação com a criança e menos ainda com os problemas sociais decorrentes deste panorama. Neste sentido, o presente trabalho tem a finalidade de relatar, de maneira prática e modesta, o desenvolvimento do instituto da adoção e sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro, tendo como marco histórico o primeiro Código Civil Brasileiro de 1916. 2 ORIGEM HISTÓRICA DA ADOÇÃO: Ao longo da história, a adoção sofreu profundas transformações conforme as mutações do Direito de Família. Ela surge com maior ou menor importância nos ordenamentos jurídicos, de acordo com as características e as expectativas de cada sociedade em um determinado momento. O instituto da adoção tem sua origem mais remota na necessidade de dar continuidade a família, no caso de pessoas sem filhos. Fustel de Coulanges2 mostra a adoção como forma de perpetuar o culto familiar. Aquele cuja a família se extingue não terá quem lhe cultue a memória e a de seus ancestrais. Assim, a mesma religião que obrigava o homem a casar-se para ter filhos que cultuassem a memória dos antepassados comuns, a mesma religião que impunha o divórcio em caso de esterilidade e que substituía o marido impotente, no leito conjugal, por um seu parente capaz de ter filhos, vinha oferecer, por meio da adoção, um último recurso para evitar a desgraça tão temida da extinção pela morte sem descendentes: esse recurso era o direito de adotar. 2 COULANGES. Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Editora das Américas, 1961, p. 10-30. 3 “Hamurabi (2067-2025 a.C., também chamado de Kamu-Rabi (de origem árabe), rei da dinastia amorrita que, vindos do deserto arábico, estabeleceram-se na Média Mesopotâmia, foi o reunificador da Mesopotâmia e fundador do Primeiro Império Babilônico. O Império Babilônico, durante a época de Hamurabi, foi um Estado despótico e centralizado administrativa, religiosa, lingüística e juridicamente. A centralização jurídica – na realidade a maior realização do governo de Hamurabi – foi possível devido à elaboração de código de leis. O Código de Hamurabi é um dos mais antigos documentos jurídicos conhecidos. Baseado em antigas leis semitas e sumerianas (Código de Dungi), foi transcendentalmente importante para a história dos direitos babilônicos, para o direito asiático, e, particularmente, para o direito hebreu. VIEIRA, Jair Lot (Sup. Ed.). Código de Hamurabi: Código de Manu, excertos: livros oitavo e nono: Lei das XII Tábuas. São Paulo: EDIPRO, 1994. (Série Clássicos), p. 9. “Gravado numa pedra, é a mais velha coleção de leis do mundo. Está no Museu doLouvre. Foi achado em Susa, no Irã, pelo arqueólogo francês Jacques Morgan, e exerceu enorme influência na lei mosaica e na legislação de vários povos do Oriente.“ JORGE, Fernando. Pena de morte: sim ou não?: os crimes hediondos e a pena capital. São Paulo: Mercuryo, 1993, p. 52. 4 “Segundo a lenda, Sarasvati foi a primeira mulher, criada por Brahma da sua própria substância. Desposou-a depois e do casamento nasceu Manu, o pai da humanidade, a quem se atribui o mais popular código de leis reguladoras da convivência social. Personagem mítico constantemente citado e altamente honrado não somente como o sumo legislador, mas também excelente em outras obras abrangendo todo o gênero da literatura indiana. É freqüentemente envolvido na lenda, assumindo ora a figura de um antigo sábio, de um rei, de um legislador, ora como o único ser sobrevivente após a catástrofe do dilúvio. Manu, progênie de Brahma, pode ser considerado como o mais antigo legislador do mundo; a data de promulgação de seu Código não é certa, alguns estudiosos calculam que seja aproximadamente entre os anos 1300 e 800 a.C. Lembramos que o Código de Hamurabi, mais antigo que o de Manu em pelo menos 1500 anos, não se trata de um verdadeiro código no sentido técnico da palavra, mas de uma coletânea de normas que abrange vários assuntos e preceitos. Redigido de forma poética e imaginosa, as regras no Código de Manu são expostas em versos. Cada regra consta de dois versos cuja metrificação, segundo os indianos, teria sido inventada por um santo eremita chamado Valmiki, em torno do ano 1500 a.C.” VIEIRA, Jair Lot (Sup. Ed.). Código de Hamurabi: Há notícias, nos Códigos Hamurábi e de Manu, da utilização da adoção entre os povos orientais. No Código de Hamurabi3 há dispositivos que estabelecem sua irrevogabilidade, o que importa em uma integração definitiva e irreversível do adotado à nova família. Também no Código de Manu4, ao dizer que quem não Código de Manu, excertos: livros oitavo e nono: Lei das XII Tábuas. São Paulo: EDIPRO, 1994. (Série Clássicos), p. 45. 5 Instituto de grande expressão na antiguidade teve acolhimento, nos chamados códigos orientais dos povos asiáticos: Código de URNAMU (2.050 AC), Código de ESHNUNNA (séc. XIX AC), e no Código de HAMURABI (1.728 AC), diploma este onde se encontram textos bastante significativos sobre o instituto, contidos em oito dispositivos (185 a 193). 6 Assim, no Canto IX da Ilíada, o ancião ginete Félix , chefe da embaixada de Aquileu , recorda ao filho de Peleu e descendente de Zeus , que quando abandonado pelo pai, o tomou a seu cuidado. 7 Venosa. Direito de Família. 10 ed. São Paula: Saraiva, p. 276 tivesse filhos poderia adotar, para não cessarem as cerimônias fúnebres da família. Visava a integração total do adotado de forma definitiva. Para José Garces Cisneros, em notável ensaio publicado na Revista Cubana de Direito, n.º 34, as raízes mais profundas da adoção estão na Índia. Persas, árabes egípcios, receberam dos hindus, com as crenças religiosas, as práticas e costumes da adoção. Tais crenças impuseram a necessidade de deixar um filho para que, com suas orações, sacrifícios e flagelações, pudessem abrir as portas do céu a seus ascendentes. Não havia outro meio de procurar-se o repouso na tumba e a libertação na outra vida. Isto determinou o costume tão generalizado entre os antigos de proporcionar uma Segunda mulher ao homem que não havia tido descendência com sua esposa legítima5. A Bíblia nos dá notícia de adoções pelos hebreus. Os egípcios e hebreus não regulavam a adoção, havendo somente alguns escritos neste sentido. Sabe-se que Moisés foi adotado por Térmulus, filha do Faraó, pois sua mãe bióloga foi obrigada a abandoná-lo (êxodo). Passagens como esta eram muito comuns na antiguidade6. Também na Grécia o instituto era conhecido, como forma de manutenção do culto familiar pela linha masculina, chegou a desempenhar relevante função social e política. A idéia fundamental já estava presente na civilização grega: se alguém viesse a falecer sem descendente, não haveria pessoa capaz de continuar o culto família, o culto aos deuses-lares. Nessa contingência, o pater famílias, sem herdeiros, contemplava a adoção com essa finalidade. O princípio básico do instituto antigo que passou para o direito civil moderno era no sentido de que a adoção deveria imitar a natureza: adoptio naturam imitatur. O adotado assumia o nome e a posição do adotante e herdava seus bens como conseqüência da assunção do culto. O direito sucessório, permitindo exclusivamente pela linha masculina, também era corolário da continuidade de culto familiar. 7 Foi em Roma, porém, que a adoção difundiu-se se e ganhou contornos precisos. “Adotar é pedir à religião e à lei aquilo que da natureza não pôde obter-se”8. 8 Coulanges, op. cit., p. 10-30. 9 “Pode considerar-se pacífico o reconhecimento de que é com o Código Civil de Napoleão que tem começo a Ciência Jurídica moderna, caracterizada sobretudo pela unidade sistemática e o rigor técnico-formal de seus dispositivos.” SOUZA DINIZ (Dir.). Código de Napoleão ou Código Civil dos franceses. Tradução Souza Diniz. Rio de Janeiro: Record, 1962, p. 85-93. Significação histórica do Código Civil francês. 10 GONÇALVES, Carlos Roberto. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família, p. 379. Durante a Idade Média a adoção entrou em desuso. Com o advento do Cristianismo ergueu-se uma nova base religiosa em detrimento da antiga que sustentava o instituto. Desta forma, a igreja não disciplinou a adoção no direito canônico, pois acreditava ser uma rival do matrimônio, uma forma de suprir o casamento, a família legítima e também meio de fraudar as normas que proibiam o reconhecimento de filhos adulterinos e incestuosos. Ainda, a adoção foi visualizada no Código da Prússia até o atual Código Civil Alemão. Sobreleva registrar que o Código prussiano teve transcendental importância como antecedente histórico, para a legislação posterior, máxime na parte que se refere à adoção. Basta dizer, que o Código Civil de Napoleão tomou-lhe, quase, integralmente, o sistema de disposições que regulamentavam adoção. Entretanto, foi graças ao Código Civil francês9 de 1804 que o instituto ressurgiu mais expressivamente, regulamentando-o em seus artigos 343 a 360 e talvez por inspiração de Napoleão que sabendo que a Imperatriz Josefina era estéril, quis adotar seu sobrinho Eugene de Branharnais para deixá-lo como herdeiro do trono. Assim, pode-se afirmar que o instituto da adoção deste Código influenciou todas as legislações modernas. No Brasil, o direito pré-codificado, embora não tivesse sistematizado o instituto de adoção fazia-lhe, no entanto especialmente as Ordenações Filipinas, numerosas referências, permitindo, assim, a sua utilização. A falta de regulamentação obrigava, porém, os juízes a suprir a lacuna com o direito romano, interpretado e modificado pelo uso moderno.10 Dizem os juristas que sempre existiu adoção no Brasil, porém, ante a falta de legislação própria, na época do Império ela foi regulamentada pelo Direito Português; entretanto, na legislação portuguesa não havia se quer a transferência do pátrio poder ao adotante, salvo nos casos em que o adotado perdesse o pai natural. A sucessão só era permitida se o Príncipe abrisse uma exceção à Lei, fazendo com que a adoção fosse apenas um título de filiação. Como primeira legislação do país a tratar sobre a adoção no Brasil, tem-se a Lei de 22 de setembro de 1828, que transferiu a competência para expedir a carta de perfilhamento da mesa do Desembargo do Paço para os juízes de primeira instância, o artigo 217 declara: “Aos juízes de primeira instancia compete conceder cartas de legitimação aos filhos sacrílegos, adulterinos ou incestuosos e confirmar as adoções, procedendo às necessárias informações e audiências dos interessados, havendo-os”. O instituto da adoção foi incorporado no Brasil, através do Direito Português, aplicável no Período da Monarquia até o advento do Código Civil de 1916. Naqueles tempos, o procedimento era judicializado, uma vez que o artigo 2º, nº 1, da Lei de 22 de setembro de 1828 atribuiu aos juízes de primeira instância a incumbência de confirmar o ânimo dos interessados em audiência. Entre os historiadores brasileiros, Maria Luiza Marcílio destacou que "(...) sem o estatuto da adoção – que surgiu na legislação brasileira apenas no século XX – só se podia adotar uma criança informalmente, como filhos de criação sem direito à sucessão". De maneira semelhante, Renato Venâncio argumentou que a própria legislação desencorajou a adoção ao garantir a manutenção do patrio poder dos pais biológicos em casos de abandono dos filhos impedindo que outros indivíduos pudessem adotá-los. Igualmente, a consagração do instituto no Brasil se deu com o advento do Código Civil (Lei nº 3.071/1916), através dos artigos 368 e seguintes. Neste ordenamento, previu-se como forma de constituição do ato a Escritura Pública. No que diz respeito à evolução da adoção no Brasil, esta adquiriu muitas feições. O Código Civil de 1916 disciplinou a adoção com base nos princípios romanos, como instituição destinada a proporcionar a continuidade da família, dando aos casais estéreis os filhos que a natureza lhe negara. Por essa razão, a adoção só era permitida aos maiores de 50 anos, sem prole legítima ou legitimada, pressupondo-se que, nessa idade, era grande a probabilidade de não virem a tê-la. Com a evolução do instituto da adoção, passou ela a desempenhar papel de inegável importância, transformando-se em instituto filantrópico, de caráter acentuadamente humanitário, destinado não apenas a dar filhos a casais impossibilitados pela natureza de tê-los, mas também a possibilitar que um maior número de menores desamparados, sendo adotado, pudesse ter um novo lar. Essa modificação nos fins e na aplicação do instituto ocorreu com a entrada em vigor da Lei n. 3.133, de 8 de maio de 1957, que permitiu a adoção por pessoas de 30 anos de idade, tivesse ou não prole natural. Mudou-se o enfoque: “O legislador não teve em mente remediar a esterilidade, mas sim facilitar as adoções, possibilitando que um maior número de pessoas, sendo adotado, experimentasse melhoria em sua condição moral e material”. A adoção disciplinar no Código de 1916 não integrava o adotado, totalmente, na nova família. Permanecia ele ligado aos parentes consanguíneos, pois o art. 378 do mencionado diploma dispunha que “os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio poder, que será transferido do natural para o adotivo”.11 11 Gonçalves. op. cit. p. 380. Essa situação pouco satisfatória pelo qual os adotantes se viam frequentemente na contingência de partilharem o filho adotivo com a família biológica deu origem á prática ilegal de casais registrarem filho alheio como próprio, realizando um simulacro de adoção, denominada pela jurisprudência “adoção simulada” ou adoção à brasileira”. 3 A INSERÇÃO DA ADOÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: Neste contexto, é necessário discorrer acerca dos argumentos jurídicos e sociais que levaram o legislador de do século XX a inserir a adoção no primeiro Código Civil brasileiro, e, para tanto, é indispensável se situar no plano temporal da época, onde o mundo vivia o movimento de codificação que teve seu lugar a partir da Idade média, através da gradativa substituição da autoridade papal e do imperador pela soberania dos Estados Nacionais. Foi sustentado por correntes sociais e impulsionado por alguns fatores estratégicos, de cunho político, econômico e intelectual. Neste contexto havia vários fatores que clamavam por uma codificação. O fator econômico, a seu turno, revelava os códigos nacionais como resposta adequada às reivindicações por liberdade e responsabilidade da burguesia, uma classe média que emergia e lutava pela abolição das barreiras discriminatórias do feudalismo. Por sua vez, a influência do fator intelectual se resumia à rejeição de velhos dogmas e tradições religiosas, no intuito de colocar o homem e seu bem estar no centro da filosofia iluminista. Ainda, a segurança jurídica clamava por respostas do Estado e neste panorama as sociedades civis clamavam por uma codificação. Não há que se olvidar que a codificação trouxe inúmeras vantagens, como a de facilitar a visualização dos institutos jurídicos. Mas também trouxe desvantagens, já que muitas vezes, estático que é o código não consegue acompanhar as alterações pelas quais passa a sociedade e nem prever a multiplicidade de relações que dela podem emergir. Diante do mosaico mundial, o Brasil necessitava dar vazão a este clamor social e romper com as antigas normas elaborando um código que atendesse as realidades de um país emergente. Desta forma, quando o primeiro Código Civil brasileiro entrou em vigor, em 1917, refletia o pensamento dominante das elites europeias do século XIX, consubstanciado no individualismo e no liberalismo jurídicos. O indivíduo, considerado sujeito de direito por sua capacidade de ser titular de relações patrimoniais, deveria ter plena liberdade para a apropriação, de tal sorte que o direito civil se estruturava a partir de dois grandes alicerces, o contrato e a propriedade, instrumentos que asseguravam o tráfego jurídico com vistas à aquisição e à manutenção do patrimônio12. 12 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 10- 100 13 FIÚZA, Ricardo (coord.). Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, p.10- 24. O Código de 1916 caracterizava-se pela originalidade ou nacionalidade. Seu mentor soube aproveitar as contribuições das ciências jurídicas de outros povos. Adaptou o que se enquadrava em nossa realidade; rejeitou o que não servia, criando algo, por muitas vezes, genuinamente brasileiro; destacou-se, inclusive por sua forma literária, por pureza de linguagem. Neste diapasão, as instituições de Direito Civil foram tradicionalmente aprisionadas em quatro grandes ramos, quais sejam, o Direito das Obrigações, o Direito das Coisas, o Direito de Família e o Direito das Sucessões. Assim está disposta a matéria das grandes codificações dos séculos XIX e XX, assim é ensinada nos cursos de Direito. Na verdade, procedendo a um corte epistemológico, descobre-se que o sustentáculo desses quatro grandes ramos é, tradicionalmente, a autonomia da vontade, a propriedade e a família13. O diploma possuía inspiração estritamente individualista, por consequência, o direito de propriedade e de liberdade contratual, como frutos do liberalismo econômico dominante, como afirma Fachin, é um “espelho fiel do patrimônio como valor nuclear privado tradicional” 14 RODRIGUES, Renata de Lima. As tendências do Direito Civil brasileiro na pós-modernidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 655, 23abr. 2005. Disponível em: . Acesso em: 2 jul. 2012. 15 Idem. 16 Idem. O Código de Clóvis Bevilácqua proporcionava um Direito de Família que se ajustava em uma estrutura patriarcal e hierarquizado. Era fruto inevitável da sociedade onde se originou, marcada pela monogamia, que nada mais era do que forma de preservar o patrimônio construído: "A preocupação da sociedade do início do século passado era estritamente de caráter patrimonial, e o casamento foi a maneira encontrada para garantir a transmissão de bens a quem é ‘sangue do meu sangue’"15. Por consequência deste panorama social e jurídico, tanto o afeto quanto o amor não eram elementos preponderantes para a caracterização de uma família, eis que doutrina jurídica brasileira herdou a estrutura familiar do Direito Romano "como unidade jurídica, econômica e religiosa, fundada na autoridade de um chefe, tendo essa estrutura perdurado até os nossos tempos"16. A família do Código Bevilácqua era, assim, uma comunidade instaurada pelo matrimônio – seu componente essencial - e unida por laços de sangue. Por esta razão, a lei facilitava o acesso ao casamento, revendo através de uma análise mais aguçada que a propriedade sempre fora a verdadeira pedra angular, sobre a qual o ordenamento jurídico se apoiou. No que tange à adoção propriamente dita, com a introdução do Código Civil de 1916, nos termos dos artigos 368 a 378 do estatuto legal, somente poderiam adotar os maiores de cinquenta anos, e ao menos dezoito anos mais velhos que o adotado, que não possuíssem prole legítima ou legitimada. Desta forma, havia sérios obstáculos impostos àqueles que tivessem a intenção de adotar. Quanto a esse aspecto, é interessante observar a necessidade de o adotante não possuir filhos. Este detalhe importante demonstra como a adoção possuía, à época, a função primordial de dar a oportunidade àquele que não pôde ou não quis ter um filho, adotar uma criança, mantendo-se o caráter que a adoção já possuía desde suas origens. Pode-se facilmente concluir que a adoção civilista de 1916 possuía o cunho de solução dos problemas do adotante, ou seja, de dar filhos ao casal que não os tivesse biologicamente e ainda com o intuito de perpetuar o nome da família; o que certamente diverge dos dias atuais, em que a adoção tem tornou-se estatutária, onde predomina o caráter humanitário e protetor do direito da criança e do adolescente, fazendo da adoção um dos institutos mais nobres em todo o mundo globalizando, permitindo inclusive a adoção de crianças por pais de nacionalidade distinta destas. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao realizar a presente pesquisa observou-se que o instituto de adoção demonstrou estar em constante adaptação ao cenário mundial, ou seja, dependendo do contexto social ao qual foi vinculado apresenta uma fundamentação diversa, correspondente àquela sociedade e aquele momento histórico. A adoção já serviu para resolver um problema relativo à continuação da linhagem familiar, bem como, as aspirações religiosas. Em outra época fundamentou-se na necessidade de dar filhos a pais que por problemas de saúde não os pudessem ter de forma natural. Não é a toa que podemos concluir que não só a adoção, mas a própria família está em transformação, visto que, vem ao longo dos tempos abarcando novos personagens e se embasando nos sentimentos ligados ao afeto, ao amor, mais que o fim exclusivo da geração de filhos, muito diferente da imagem presenciada na época da inserção deste instituto na legislação brasileira. O instituto da adoção abarcado pelo Código Civil de 1916 traçava uma posição positivista no sentido de normatizar uma possível conduta, e nesta acentuada motivação kelsiana não verificava valores ou sentimentos possíveis de agregar melhor interpretação a este instituto, pelo contrário, o que se verificava era uma adoção de forma estritamente limitada e quando essencialmente necessária. Na adaptação de Beviláqua a adoção era mais uma entidade de direito de família sem maior relevância, eis que o caráter do primeiro Código Civil Brasileiro era o patrimonialismo, “as garantias da propriedade”, até mesmo porque, o mundo vivia um momento de individualidade e a nossa legislação acompanhou a “onda” internacional. Não obstante, a adoção conquistou um lugar de extrema relevância no mosaico jurídico brasileiro e consubstanciou o entendimento protecionista listado pela Constituição Federal de 1988. Hoje, além da Constituição Cidadã, este instituto é regulamentado pela Lei Nacional da Adoção (Lei 12.010/2009) e também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Igualmente, a adoção tornou–se a expressão de um “ato máximo de amor”, premiada por leis que a regem e tutelada por normas constitucionais, devendo ter por parte de nosso ordenamento severidade punitiva à atividade clandestina, chamada de adoção à brasileira, onde registra-se a criança em próprio nome, como se fosse seu filho biológico, independentemente de qualquer procedimento e requisito, e ao tráfico de crianças. O instituto deve imprimir seriedade e idoneidade, com atividade procedimental e fiscalizadora imprescindíveis para a segurança da criança ou do adolescente. A criança hoje representa o futuro de uma nação, desta forma, não poder ser tratada como objeto ou mercadoria que pode ser comprada e devolvida quando possui algum problema. O instituto da adoção, como é entendido nos dias atuais, constitui a representação de que o ser humano melhorou em temos de humanidade, de solidariedade e de respeito ao seu igual; pois, trazer para sua família uma criança que não possui laços consanguíneos com esta, demonstra que os valores em questão estão muito além da perspectiva patrimonial, mas sim que existe um interesse intrínseco baseado no afeto, no amor e no comprometimento familiar. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da Família de Fato: de acordo com o novo código civil, Lei nº 10.406, de 10-01-2002. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. BEVILÁQUA, Clóvis. A adoção e suas transformações no Código Civil comentado. 10. ed. São Paulo: s.n., 1954. CHAVES, Antonio. Adoção Internacional. São Paulo: Del Rey, 1994. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Américas, 1961. COSTA, Tarcísio José Martins. Conferência proferida no Instituto dos Advogados de Minas Gerais, em outubro de 1994. 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