A MAIOR AVENTURA DO MUNDO
A MAIOR AVENTURA DO MUNDO
Sávio Renato Bittencourt Soares Silva
Um estava na barriga da mãe, se formando e esperando a
hora certa de nascer. A outra, em algum lugar do mundo, mas ali por perto, numa
outra barriga de uma mulher que eu não conheço, também se preparava para vir à
vida cá fora. Eu, de minha parte, vivia duas expectativas: a de ser pai pela
segunda vez e a de procurar uma criança para adotar e ser pai por uma terceira
vez, tudo ao mesmo tempo.
Talvez isso pareça ao leitor uma coisa estranha. E
realmente é. Mas é a minha história, tal qual a vivi para dar testemunho desta
imensa aventura amorosa. Um sujeito com um filhinho de três anos, uma esposa
grávida e a busca por uma adoção. Não há explicação no campo do senso comum,
das coisas como geralmente são ou como deveriam idealmente ser. Havia apenas
essa vontade – densa, forte, irriquieta – no peito do jovem casal que em
segredo conjurava contra a opressão de sempre ter que tomar decisões lógicas,
prudentes e previsíveis, à luz de um mundo aborrecido e modorrento ao qual não
desejavam pertencer.
E assim começou a grande aventura: uma busca por
crianças disponíveis para adoção. Naquela época as coisas não eram
disciplinadas como hoje. Não havia fila de adotantes em algumas cidades, nem
cadastros unificados. Celular e internet eram novidades ainda em implantação e
de pouca valia para fins de informações e contatos consistentes. Em pensar que
isso aconteceu há apenas 15 anos! Parece que escrevo sobre a idade média. A
procura era pulverizada por comarcas e abrigos.
Foi assim que, enquanto o menino crescia no conforto da
barriga da mãe, acarinhado, chegou a informação sobre uma menina morena,
disponível para adoção em Macaé, com uns quatro meses de vida. Preparei tudo
para a viagem, combinei com meu advogado e avisei ao povo do Fórum local que
estaria lá no dia seguinte para pedir a guarda da criança. Tudo certo, tudo
perfeito, tudo combinado. Até um telefonema que recebi no início da noite: era
um amigo do Fórum de Macaé, avisando que as pessoas que abrigaram provisoriamente
a menina tinham ingressado com o pedido de adoção dela. Fiquei desapontado por
uns instantes, mas pouco depois entendi que ser pai dela não era minha missão.
Deus tinha outro plano para mim. Fui dormir em paz, sem deixar de beijar a
barriga – já bem grande - com meu filhinho dentro. Era a noite do dia 24 de
agosto de 1997.
O plano de Deus, que eu intuía que existia, mas não
entendia, continuou naquele instante. Em alguma parte daquela cidade, a minha
cidade, naquela mesma noite nascia uma menina mulata com olhos amendoados,
deixada no Hospital por alguém não identificado. Minha sogra, que não sabia
concretamente do meu plano ambicioso de paternidade múltipla – mas desconfiava
de alguma coisa – ficou sabendo que o neném nascido em Valença fora deixada no
Hospital e, chegando à minha casa na hora do café da manhã do dia seguinte, deu
com língua nos dentes, sem saber que havia sido escolhida como anjo anunciador.
Peguei o jipe branco e me meti na estrada de terra.
Havia um encontro marcado para mim com uma pessoa que me pertencia – e eu a ela
– sendo imperioso que eu a encontrasse e a trouxesse para minha vida
definitivamente. Com a desenvoltura de um cavalheiro medieval fora de época
mergulhei neste sonho, desperto, vivo, inteiro. Como não havia fila de espera,
nem notícia da família biológica da criança, meu pedido de guarda para fins de
adoção, batido à máquina de escrever nas dependências da OAB por minha esposa
advogada, foi acolhido pelo Juiz da Comarca. Fui então ao encontro da médica
pediatra que recebera a criança em seu plantão, para obter sua alta e receber
informações sobre os cuidados que teria que ter com o neném. Encontrei uma
mulher incrível, competente e amorosa, inspirada pelo seu próprio nome, Maria
da Glória, que me recebeu carinhosamente, prescrevendo remédios, incentivando
meus passos com seu sincero sorriso. Estava eu pronto para o grande encontro.
Veja o querido leitor a cena com os olhos de seu
próprio coração: um casal jovem, a mulher grávida de oito meses com um tremendo
barrigão. Adentram ao hospital e logo são levados ao berçário, donde se
defrontam com alguns bebês em incubadoras, todos prematuros, alguns com soro.
Cheguei a pensar que a minha filha estava por ali. Mas eis que me surge a
enfermeira, vindo do interior do berçário, com um neném enroladinho num pano
com estampas de bichinhos, com tamanho próprio das crianças nascidas no tempo
certo. Era um charutinho enroladinho com gente dentro. Uma mulatinha com olhos
amendoados que veio para o meu colo, recostou-se no meu peito palpitante e
desde aquele dia ali ficou. Não há idioma com palavras suficientes para
descrever o que se sente quando se tem a coragem de viver grandes amores, de
seguir o destino com seu quebra-cabeça intrigante. A cada vez que volto a esta
história encontro uma forma de expressão diferente do mesmo vulcão de energia
que explodiu naquele momento e me transformou em outra pessoa. Ela tinha o DNA
da minha alma.
Saímos dali causando grande estranheza na gente de
Valença: uma mulher grávida carregando um bebê no colo, acompanhada de um pai
com cara de bobo. Será que estariam nascendo crianças a prestação? Estranheza
maior foi a que passamos a viver quando Pedro resolveu nascer vinte dias
depois, branco, com cara de português, risonho e safado. Tínhamos gêmeos bem originais,
da cor do Brasil, uma negra e um branco, uma mulata e um portuga, lado a lado,
nos carrinhos pelas praças, depois nos colégios, lanchonetes e festas. Irmãos
de verdade, que o destino me trouxe.
Pedro veio numa torrente de alegria. Veio como expressão
da generosidade de dividir nossas atenções com sua irmã, acompanhado neste
gesto pelo irmãozinho mais velho João de três anos, que recebeu os gêmeos do
coração em seu próprio coração, fazendo deles um motivo de felicidade. Era como
se tudo fosse previsível e planejado. Entendi com o exercício do amor pacifica
as relações e as coloca em um nível acima dos egoísmos e das competições. Nas
relações familiares sempre podemos recorrer a esta fonte divina de soluções, o
amor em exercício, o amor que se escolhe sentir e efetivamente se sente. Pedro,
com suas risadas intermináveis e sua evidente molequice acabou por me mostrar
um lado divertido da vida que eu por natureza relegava a segundo plano, me
tornando um sujeito que se leva a sério demais. Pedro gosta de rir e fazer rir.
As pessoas divertidas são as mais necessárias para enfrentar os desafios do
mundo, porque têm o poder de transcender as formalidades excessivas, às amarras
da sisudez poseur, e buscar as soluções mais criativas para a felicidade. Pedro
risada-abençoada. Pedro tem o DNA da minha alma, além de uma cara engraçada
parecida com a minha.
Pois isso se deu há exatos quinze anos. Nesta exata
hora que teclo estas palavras estava eu indo para o Hospital pegar Ana e fazer
dela o meu destino. Daqui a uns dias, completa também quinze anos do momento em
que fui para hospital para Pedro nascer e me mostrar como o mundo era bem
melhor do que eu acreditava. Uma epopéia pessoal, que pode parecer simples a
quem lê, mas que foi de uma intensidade anímica avassaladora para este simples
mortal. Meus gêmeos, meus filhos queridos, estrelas de minha constelação
afetiva que ilumina todos os meus dias, agora mocinhos de quinze anos.
Obrigado, Deus, Obrigado
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