domingo, 23 de março de 2014

ADOÇÕES FORÇADAS E PRÁTICAS REPRESSIVAS: UMA RETROSPECTIVA


jcesar coimbra in Crítica e Comentário
Em março deste ano o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre o período da ditadura civil-militar no Brasil. Uma dessas matérias abordou o sequestro de pelo menos uma criança que era filha de uma guerrilheiro da região do Araguaia que, posteriormente, foi adotada ilegalmente: http://glo.bo/1lVW7G6

Esse quadro permite que procuremos uma abordagem acerca do entrelaçamento da adoção como prática social e a sua institucionalização nos modos de funcionamento da justiça. Todavia, pelo viés da realização de adoções ilegais ou forçadas e a revelação dos fatos acerca desses procedimentos.
Nesse eixo podemos mencionar como exemplos os casos ocorridos na Argentina durante o período da ditadura militar e na Austrália, este último referente à assimilação forçada de crianças aborígenes ‘mestiças’ (LISSOVSKY, 2008).
Essas duas experiências já foram alvo de muitos filmes, tais como A história oficial (A HISTÓRIA, 1985), filme argentino dirigido por Luiz Puenzo; Condor (2007), documentário brasileiro dirigido por Roberto Mader e O dia em que eu não nasci (O DIA, 2011), filme germano-argentino dirigido por Florian Micoud Cossen.
Quanto ao caso australiano, o Bringing them home oral history Project (NATIONAL LIBRARY of AUSTRALIA, 2011) e o filme Geração Roubada (GERAÇÃO, 2002), dirigido por Phillip Noyce, permitem uma compreensão bastante abrangente sobre o ocorrido e as respectivas tentativas de reparação.
Basicamente, trata-se de uma série de procedimentos e justificativas oficiais que prevaleceram entre 1869 e 1970, com base nos quais o governo australiano, a título de proteger crianças fruto da relação entre brancos e aborígenes, retirou-as do convívio da família natural não se estabelecendo, a partir daí, nenhuma forma de contato da criança com seus parentes ou cultura de origem. Em 2008 o governo australiano publicamente desculpou-se pela implementação unilateral dessa política.
Relações autoritárias envolvendo políticas e práticas adotivas foram relativamente comuns em várias partes do mundo, não sendo a Austrália o único exemplo disso (CARLSON, 2012). Nos EUA, quase no mesmo período citado, crianças indígenas foram retiradas de suas famílias e colocadas em estabelecimentos de internação ou disponibilizadas para adoção (JACOBSON, 2008).
No Brasil, o Código de Menores, em seu artigo 2o, estabelecia que a eventual impossibilidade dos pais em prover a subsistência de seus filhos colocaria estes na categoria da situação irregular, o que, por si, permitiria intervenção estatal que poderia, inclusive, culminar na sua colocação em lar substituto (BRASIL, 1979).
Ainda quanto à Austrália, em 2012 o estado de New South Wales lamentou oficialmente e desculpou-se pelo uso de práticas que culminaram em adoções forçadas, sobretudo relacionadas a mães solteiras (NSW GOVERNMENT, 2012). Na série de eventos que promoveu, o governo de NSW inscreve aquelas práticas na memória coletiva, legitimando os movimentos de reinvindicação que há muito exigiam informações e retratação. Estimativas apontam que entre 1869 e 1970 cerca de 150.000 crianças nascidas na Austrália foram retiradas de suas famílias naturais, sobretudo daquelas caracterizadas por compor-se de jovens mães e solteiras (IARIA, 2012).
A despeito do que foi escrito acima, sabe-se que o tema ‘adoção forçada’ não é algo completamente ultrapassado, inclusive na Austrália (MADIGAN, 2012) ou Irlanda (FÁTHARTA, 2013). No Brasil, passando em revista nossa história recente, não houve uma política que abertamente tivesse a adoção forçada como eixo, embora o Código de Menores, que vigorou de 1979 a 1990, deixasse margens para esse tipo de prática, como indicamos.
É possível que as práticas brasileiras desse período tenham sido mais sutis, como aponta Ayres (2005), não se constituindo em uma política de estado propriamente dita, ou, ainda, camufladas por práticas adotivas concorrentes que ocorriam à margem da lei.
No que se refere ao caso argentino, sabemos que as Mães e Avós da Praça de Maio constituíram-se não apenas como uma associação em prol da luta política contra atos da ditadura, sobretudo no que se referem aos assassinatos, sequestros e adoções ilegais, mas também construíram um grande arquivo sobre esses temas.
O trabalho desenvolvido por elas colaborou para que aqueles que foram adotados ilegalmente pudessem ter acesso às informações sobre sua adoção, bem como à possibilidade de restabelecimento de laços com sua família natural.
Um dos casos a chamar atenção quanto a isso foi o de María Eugenia Sampallo que, sendo ao mesmo tempo a denunciante e o objeto da adoção ilegal, colocou seus pais adotivos e o militar que a sequestrou no banco dos réus em 2008, com a colaboração das Avós da Praça de Maio (MARIRRODRIGA, 2008).
Outro é o caso de Macarena Gelman, levada para o Uruguai recém-nascida e cujos pais naturais foram mortos pela repressão argentina (FRANCE PRESSE, 2012; LA NACION, 2008). Um excelente resumo sobre a política conjugada de assassinato de resistentes à ditadura e roubo de seus filhos, com a descrição dos efeitos ainda vívidos dessas práticas na sociedade argentina pode ser vista em Goldman (2012). O testemunho de uma avó que reencontra seu neto 25 anos depois de seu desaparecimento foi registrado pela BBC (2013).
Segundo informações do Grupo Tortura Nunca Mais, não há registro no Brasil de casos como o de sequestro de crianças com o objetivo de adoção, tal como ocorrido na Argentina, durante o período ditatorial. Todavia, talvez resida nesse tema um possível campo de pesquisa posterior, uma vez que começam a surgir alguns indícios de possíveis ocorrências desse gênero durante o período da repressão no Brasil (FRAGA, 2012; HERDY, 2013; TV BRASIL, 2012).
Os relatos de filhos de presos que sofreram direta ou indiretamente os efeitos das práticas de tortura no Brasil também abrem novas vias para os estudos do período e do lugar da memória e do trauma para os sobreviventes (15 FILHOS, 1996). O suicídio de Carlos Alexandre Azevedo, em fevereiro de 2013, aos 39 anos, que teria sofrido torturas quando tinha 1 ano e 8 meses com o objetivo de forçar seus pais a delatar companheiros e planos da resistência, aliado ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, serviu de impulso à visibilidade das questões que marcam essas personagens (HERDY 2013; 2013a).
[…]
REFERÊNCIAS
AYRES, Lygia Santa Maria. De menor a criança, de criança a filho: discursos de adoção. 2005. 255 f. Tese (Doutorado)—Curso de Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Uerj, Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=111178
. Acesso em: 10 set. 2012.
BBC. Argentine grandmother recalls finding stolen grandson. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/news/world-latin-america-22020286
. Acesso em: 4 abr. 2013.
BRASIL. Lei 6697, de 10 de dezembro de 1979. Institui o Código de Menores. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1970-1979/L6697.htm
. Acesso em 8 nov. 2011.
CARLSON, Kathryn Blaze. United Church of Canada to hold mirror to its role in forced adoptions as families push for national inquiry. Disponível em: <http://natpo.st/R7rVqY
>. Acesso em: 11 out. 2012.
FÁTHARTA, Conall Ó. Calls for probe into forced adoptions. Disponível em: http://www.irishexaminer.com/ireland/cwcwgbcwgboj/rss2/
. Acesso em: 23 mar. 2013.
FRAGA, Plínio. Infância banida. Zum: Revista de fotografia, São Paulo, n. 3, p.64-73, out. 2012. Semestral.
FRANCE PRESSE. Uruguai se responsabiliza por crimes da ditadura, mas sem pedir perdão. Disponível em: <http://glo.bo/GGOHFA
>. Acesso em: 22 mar. 2012.
GOLDMAN, Francisco. Filhos da guerra suja: Os órfãos roubados na ditadura argentina. Piauí, Rio de Janeiro, n. 68, p.30-38, maio 2012. Mensal.
HERDY, Thomas. Filhos de presos torturados carregam a dor do passado. O Globo, Rio de Janeiro, p. 6. 24 fev. 2013. Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/filhos-de-presos-torturados-carregam-dor-do-passado-7659201
. Acesso em: 24 fev. 2013.
HERDY, Thomas. Tortura na infância rendeu traumas e documentário sobre a repressão. O Globo, Rio de Janeiro, p. 8. 23 fev. 2013a. Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/tortura-na-infancia-rendeu-traumas-documentario-sobre-repressao-7659310
. Acesso em: 24 fev. 2013.
IARIA, Melissa. Vic adoptions apology welcomed by victims. Disponível em: http://news.smh.com.au/breaking-news-national/vic-adoptions-apology-welcomed-by-victims-20121025-2870n.html
. Acesso em: 25 out. 2012.
JACOBSON, Heather. Culture keeping: White mothers, international adoption and the negotiation of family difference. Nashville: Vanderbilt University Press, 2008.
LA NACION. Macarena Gelman: “Fui un regalo robado”. Disponível em: <http://bit.ly/GGNWfI
>. Acesso em: 22 mar. 2012.
LISSOVSKY, Maurício. O que fazem as fotografias quando não estamos olhando para elas? In: BARRENECHEA, M. (Org.). As dobras da memória. Rio de Janeiro: 7letras, 2008. p. 26-36
MADIGAN, Michael. Child Protection Inquiry told that forced adoption of at-risk children should become ‘an option’. Disponível em: http://bit.ly/PsM1B4
. Acesso em: 26 out. 2012.
MARIRRODRIGA, Jorge. Na Argentina, filha de desaparecidos coloca os pais adotivos no banco dos réus. Revista Forum, São Paulo, 14 mar. 2008. Disponível em: http://bit.ly/Aj28Sz
. Acesso em: 16 março 2012.
NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA. Bringing Them Home Oral History Project. Disponível em: <http://www.nla.gov.au/oh/bth/
>. Acesso em: 20 dez. 2011.
NSW GOVERNMENT. SW Government to apologise for past forced adoption practices. Disponível em: http://www.facs.nsw.gov.au/about_us/news/nsw_government_to_apologise_for_past_forced_adoption_practices
. Acesso em: 09 set. 2012.
TV BRASIL. Crimes da ditadura. Disponível em: http://tvbrasil.ebc.com.br/caminhosdareportagem/episodio/crimes-da-ditadura
. Acesso em: 6 nov. 2012.
REFERÊNCIAS—Filmes
15 Filhos. Direção de Maria Oliveira e Marta Nehring. São Paulo: TV Cultura, 1996. 1 filme (20 minutos): son., color./pb.; vídeo (hi 8). Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=u-Lwh9u7ojI&feature=player_embedded
. Acesso em 24 fev. 2013.
A HISTÓRIA Oficial. Direção de Luis Puenzo. Buenos Aires: Historias Cinematograficas Cinemania, 1985. 1 filme (112 minutos): son., leg, color.; 16mm.
CONDOR. Direção de Roberto Mader. Rio de Janeiro, 2007. 1 filme (110 minutos): son., leg., color.; 16mm.
GERAÇÃO Roubada. Direção de Phillip Noyce. Adelaide: Rumbalara Films, 2002. 1 filme (94 minutos): son., leg., color.; 16mm.
O DIA em que eu não nasci. Direção: Florian Micoud Cossen. Berlim: Bayerischer Rundfunk, 2011. 1 filme (95 minutos): son., leg., color.; 16mm.
Nota
Este texto foi baseado em parte do material elaborado para a tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UniRio) em 2013 ‘O que resta da adoção? O comum e o testemunho sobre a busca das origens’.

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