sexta-feira, 28 de março de 2014

OS PROCESSOS DE ADOÇÃO, NO BRASIL, SÃO COMO UMA CAIXA PRETA


Sávio Bittencourt
Sexta-feira, 28 de Março de 2014
O caderno Direito & Justiça, do jornal O Estado, entrevistou este mês o presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) e procurador de Justiça no Rio de Janeiro, Sávio Bittencourt. Ele traz consigo a luta para que toda criança tenha direito a uma família, destaca-se como um grande defensor da adoção.
Nascido em Niterói, formou-se em Direito em 1989 e faz parte do Ministério Público desde 1993. Além de procurador, é mestre em História Social e doutor em Geografia. Sávio Bittencourt é autor dos livros “Manual do Pai Adotivo”, “A Nova Lei de Adoção” e “Revolução do Afeto”. Sua relação com a adoção começou bem antes de presidir a Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad). Fora dos parâmetros jurídicos, deu início ao ter em seus braços a primeira filha adotiva. Desde então, abraça a causa e desenvolve trabalhos no sentido de contribuir com as famílias adotivas e sensibilizar os operadores do direito especializados nessa área.
Ao Direito & Justiça, afirma que os processos nas Varas da Infância e da Juventude sobre adoção são cercados por segredos de Justiça, “o laudo é absurdo e ninguém controla isso, a sociedade civil não tem acesso”. Ele também comenta do grupo de adoção, Quintal de Ana, e os prejuízos emocionais de uma criança que cresce em abrigos, como as destinadas à adoção internacional.
[DIREITO & JUSTIÇA]: QUANDO E COMO COMEÇOU ESSA SUA RELAÇÃO COM A ADOÇÃO, SENDO O SENHOR UM DEFENSOR DE CORAÇÃO DESSE GESTO?
[Sávio Bittencourt]: Tenho duas filhas por adoção, a Ana Laura, 16 anos, e a Maria Fernanda, de cinco. Tenho outros três filhos. O João Renato, mais velho, tinha três anos quando minha esposa Bárbara Toledo ficou grávida. Ainda na faculdade nós combinamos de adotar uma criança. Quando ela estava grávida do nosso segundo filho, comecei a procurar uma criança para adoção. Eu já era promotor de Justiça, mas de outra área, em Volta Redonda (RJ) havia quatro abrigos, mas as Varas diziam que não haviam ninguém para adoção, e eu sendo promotor não tinha consciência do problema social que é, não culpo ninguém por não saber, porque eu devia saber e não sabia. Falei com um amigo que era juiz na Vara de Infância de Macaé que se ele tivesse uma criança para adoção queria, mas já foi há muito tempo e não tinha essa habilitação prévia como hoje é organizado, era uma outra realidade. Ele me ligou e disse que tinha uma menina de quatro meses, que foi tirada da mãe que não era mãe, que, na verdade, estava vendendo a criança e então ia disponibilizá-la para adoção. Marquei com o advogado e falei para o juiz que ia adotar, mas ele me ligou dizendo que um pastor ficou completamente apaixonado pela menina e queria muito ficar com ela, então eu disse: essa não é minha filha, é dele. E no mesmo dia minha filha nascia e era abandonada no meio da rua, dentro de uma caixa, numa estrada vazia, para morrer na minha cidade. Fui no Fórum, pedi a guarda dela sem vê-la, como estava no hospital o juiz me deu a guarda, não tinha fila de espera na época. Fui na médica e pedi a alta dela, só então a conheci e quando peguei no colo dei o meu DNA, o DNA da minha alma.
[D&J]: COMO FOI PENSAR EM FUNDAR O QUINTAL DA CASA DE ANA?
[SB]: Foi logo após adotar minha primeira filha que se chama Ana Laura. É um grupo de apoio à adoção em Niterói. Queria fundar esse grupo, mas que tivesse um nome afetivo. Quintal de Ana faz muita coisa legal, fez o primeiro mapeamento de crianças desabrigadas de Niterói, tem preparação para adotantes, ajuda preparando-os. O adotante chega querendo criança branca, querendo furar a fila, então o grupo faz a preparação do adotante, amplia o perfil, faz a propaganda legal da adoção, porque todo mundo quer encontrar uma forma de burlar os meios legais, como o exemplo da empregada que não vai querer o filho e vai entregar para quem a está ajudando.
[D&J]: O QUE ACONTECE COM ESSE TIPO DE ADOÇÃO QUE OCORRE POR FORA DOS MEIOS LEGAIS? A JUSTIÇA PODE TOMAR A CRIANÇA?
[SB]: Se for muito pequeno e não tiver vínculo, toma. Mas se já tiver dois, três anos, com vínculo. O que se vai fazer? Fazer a criança sofrer porque a pessoa furou a fila? Se a está tratando bem. Às vezes, tem pessoas que querem fazer a adoção legal, mas quer escolher aquela criança que a mãe quer dar a ele. Tem gente que admite e tem quem não admite. A mãe que quer dar, tem que dar para Vara para que a destine para adoção a uma pessoa habilitada, chama-se adoção direta ou adoção intuitu personae. Depois que gera vínculo, o processo de separação é dilacerante.
[D&J]: QUANTO TEMPO DURA, EM MÉDIA, O PROCESSO DE ADOÇÃO?
[SB]: Quem responder isso em nível nacional estará mentindo. Não é possível ter uma previsão, vai depender da comarca. Se essa comarca tem pessoas que trabalham bem, se tem equipe técnica que faz relatórios, quando forma um time que faz um trabalho bom. Funciona bem, é rápido, tranquilo e transparente, em outros lugares é uma caixa preta. Uma caixa preta sim, inconstitucional, que você não tem acesso às crianças, se o abrigo fica fechado você não sabe quem está lá dentro, não consegue controlar. A sociedade civil não tem nenhum controle.
[D&J]: O SENHOR TAMBÉM É AUTOR DE LIVROS SOBRE ADOÇÃO COMO O “MANUAL DO PAI ADOTIVO” E A “REVOLUÇÃO DO AFETO”. COMO FOI A CONSTRUÇÃO DELES?
[SB]: Sou um escritor cearense. Tinha escrito o “Manual do Pai Adotivo” e, fora as questões jurídicas que escrevi vinculadas ao trabalho e artigos científicos, o que me levou a escrever foi o fato de ser colunista do jornal O Estado. O livro a Revolução do Afeto, que fala da afetividade na vida das pessoas, foram reflexões que fiz como colunista de O Estado. A Nova Lei de Adoção, que é um livro jurídico, tem muitas coisas que O Estado me ajudou a desenvolver, porque me deu a oportunidade de escrever e me deu oportunidade de me exprimir. É uma forma de conhecer a si próprio.
[D&J]: Sobre o impasse dessas crianças que praticamente crescem nos abrigos. Qual seria a melhor alternativa?
[SB]: A única alternativa é a adoção. Existe o processo de apadrinhamento também. Para essas crianças que não têm família nem adotabilidade, de dez ou 11 anos, por exemplo, começa com a pessoa se habilitando como padrinho, que é avaliado e com a criança passa a sair nos finais de semana, vai passear e volta para o abrigo, e normalmente essas pessoas já não querem mais deixar voltarem para o abrigo. Tem várias histórias de amor de adoção que começam pelo projeto de padrinho.
[D&J]: O SENHOR ACHA QUE A ADOÇÃO, NO BRASIL, PRECISA SER MAIS VALORIZADA E QUE AINDA EXISTE PRECONCEITO, PRINCIPALMENTE, PELO PERFIL DA CRIANÇA?
[SB]: Concordo e ainda existe preconceito, sim, na televisão, nas propagandas. Infelizmente ainda tem, muitos chegam aos abrigos e querem aqueles ainda bebês, maioria prefere os brancos. Mas onde há grupos de adoção, isso diminui.
[D&J]: FALTA INTERESSE EM RESOLVER O PROBLEMA DESSAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NOS ABRIGOS?
[SB]: Essas pessoas não fazem rebelião, não queimam colchão, não votam, então não tem quem grite por eles. Se fossem de outro grupo como os presos que têm mais cuidados da magistratura do que uma criança abrigada. Se uma pessoa matar vai ter direito a advogado, a interrogatório, processo legal, se cometeram um erro ela é solta e depois vai ter direito a uma pena limitada. A criança abrigada não tem direito nenhum, não tem entrevista com juiz nem com promotor, se for adolescente infrator eles entrevistam, mas enquanto é só apenas um vulnerável pobre continua sendo esquecido lá.
[D&J]: E QUAIS PREJUÍZOS ESSA CAIXA PRETA E AS BUROCRACIAS CAUSAM A ESSAS CRIANÇAS?
[SB]: O prejuízo de não ter infância em família, de se tornar um adulto menos amoroso, menos seguro emocionalmente. Digamos que, existe uma expressão que gosto muito do Fernando Freire, que ele é condenado a morte civil, não é uma pessoa que tem direito a uma família como as outras têm.
[D&J]: POR QUE O SENHOR AFIRMA QUE NÃO EXISTE TRANSPARÊNCIA NO PROCESSO DE ADOÇÃO?
[SB]: Esses processos são cercados por segredos de Justiça, que é aquilo que trata da intimidade das pessoas e faz audiências sem testemunhas de fora. Todo processo é público, menos os com segredo de Justiça, e todos os da infância são segredos. As crianças são mantidas lá [nos abrigos] e você não sabe por que elas estão, não sabe se o promotor, juiz ou técnico trabalha em favor dela. O laudo é absurdo e ninguém controla isso, a sociedade civil não tem acesso, e isso é uma mudança importante que é preciso se conquistar.
[D&J]: UMA VARA ESPECIALIZADA PARA CUIDAR DESSE TEMA PODERIA DAR UMA CELERIDADE CONSIDERÁVEL NOS PROCESSOS?
[SB]: Acho ótimo e sou a favor. Ajudaria muito também se o juiz não for besta, porque você colocar uma vara especializada e o juiz for ruim, acabou o mundo. Ajuda. Onde há uma especialização, há uma evolução. Agora, o risco da especialização é colocar uma pessoa pouco vocacionada, mas no Ministério Público o que especializou antes, separou infrator de crianças vulneráveis, deu certo no sentido de a pessoa trabalhar no que é específico, mas a gente sofre pela falta de vocação da pessoa.
[D&J]: COMO ACONTECE A ADOÇÃO INTERNACIONAL?
[SB]: No tráfico de criança, a pessoa tira a criança ilegalmente do Brasil, do Haiti ou da África, por exemplo, onde é mais fácil pegar os meninos. No Brasil hoje é mais difícil. Com a adoção, o sujeito fica vinculado, tem endereço, e é fiscalizado seja na Itália, na Espanha ou na França, de onde ele vem. Faz-se um estudo social dele. No Brasil, é feito outro estudo e casa esse interesse com o da criança, e o juiz vai decidir se vai conceder para adoção. Quando é concedida, o acompanhamento é realizado de dois em dois meses e são pedidas fotos para se certificar da relação afetiva.
[D&J]: COMO É FEITA ESSA DECISÃO?
[SB]: A criança não tem pessoa, no Brasil, interessada nela. Mas o juiz precisa informar, se ele não informar que ninguém tem interesse na criança, provavelmente já com seus oito anos, ela fica lá [no abrigo].
[D&J]: O PROCESSO DE ADOÇÃO INTERNACIONAL É MAIS RÁPIDO?
[SB]: Ele não é rápido, a criança está perdendo tempo desde os dois anos, quando entrou no abrigo e permanece lá com oito ou nove anos, às vezes muda de abrigo. A criança tem uma história de vida dilacerante no processo de adoção internacional. Pega tudo que deu errado, desde a família biológica onde deve ser tentado até a última chance. Que última? Ela é prioridade? É sim, se tem afeto, tem cuidado. Não precisa de dinheiro. Costumo dizer que o cuidado é o corpo de delito do afeto, não adianta dizer que ama. Então, esse é o condimento que tem que ser achado para que a família biológica fique, a gente consegue ver isso com as mães de ruas, não têm casa, mas têm cuidado.
http://www.oestadoce.com.br/noticia/savio-bittencourt-os-processos-de-adocao-no-brasil-sao-como-uma-caixa-preta
— com Barbara Toledo e outras 2 pessoas.

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