Tentarei, hoje, falar em primeira pessoa e tentar fazer com que você,
que lê esse pequeno texto, se coloque também em primeira pessoa. Espero que
você sinta no seu eu o que passo a relatar.
Hoje acordei sem meu filho. Vi as horas passarem no interminável tic-tac
do relógio de cabeceira. Tic-tac, tic-tac, tic-tac... o barulho rítmico parecia
perfurar meu cérebro e aumentar ainda mais o vazio de minha alma.
Penso, repenso, rolo na cama. Do lado, esquerdo, meu marido dorme o sono
dos justos. Mais um dia sem nosso filho.
Levanto, ando pela casa, entro no quarto que se mantém aberto e arejado.
Sento na pequena cama, estico o lençol, coloco o travesseiro no lugar, arrumo
os bichinhos de pelúcia... são tantos. O urso foi presente da vovó Matilde, o
cachorrinho – que late e abana o rabo –do dindo Heitor pelo aniversário de um
ano de J. Ah... o anjinho que recita uma prece: “Santo anjo do senhor, meu
zeloso guardador...”, caí em pratos silenciosos por 15 minutos, talvez um pouco
mais, um pouco menos. O anjinho, azul com lindas asas prateadas, foi presente
do padre que batizou J. Arrumo um a um cada brinquedo: o trenzinho, os
carrinhos, o baldinho de praia... J. gostava muito de ir à praia conosco.
Limpo a tela de sua TV em formato de carrinho, vermelha, linha, há cerca
de 3 meses não é ligada. Será que preciso ligar? Liguei. Passava um programa
infantil, como sempre, pois, os canais que J. gosta são os infantis. Que cabeça
a minha...
Em cima da mesa tem o laptop de J. que foi presente do vovô João. Laptop
de criança também no formato de “carros”. J. ama o barulhinho dos jogos. J. ri,
se diverte, é uma criança feliz. É ou era? Volto a chorar ao lembrar que hoje
acordei sem meu filho.
Fui na cômoda ver como estavam as roupinhas. Será que ainda servem? Será
que ele cresceu nesses quase 3 meses? E os sapatinhos? Penso que não tenho como
vê-lo, saber se cresceu, engordou, se está bem, será que tem ido ao médico
todos os meses? Novas lágrimas vertem dos meus olhos.
Quanto tempo já se passou? Olho o relógio na cabeceira de J.: 10 horas?
Já estou aqui há 5 horas? Não vi o tempo passar!
Ouço um barulho, mínimo, tímido. Olho para porta: João, pai de J., meu
amado marido, está de pé, olhos vermelhos. Há quanto tempo ele está ali? Desde
quando me observa? Não perguntei, não nos falamos, temos nosso código de olhar,
simplesmente nos dirigimos lentamente para um forte abraço de amor e dor. Hoje,
acordamos sem nosso filho.
A HITÓRIA DE J.
J. nasceu em um lindo dia de agosto, forte, bonito, 4 kg 100gr, 52 cm, APGAR
9: perfeito. João, orgulhoso, cortou o cordão umbilical enquanto eu fotografava
tudo enquanto dava a mão a Maria, genitora de J.
Maria tem mais 4 filhos, todos de pais diferentes. Maria me procurou no
colégio onde sou professora, estava grávida pela quinta vez, não sabia quem era
o pai. Implorou para que nós, eu e João, fossemos os pais do filho ou filha
dela, não sabia se era menino ou menina, não tinha feito pré-natal.
Conversei com João, fomos à vara da infância. Nós éramos habilitados há
cerca de 1 ano e os primeiros da fila. Nossa cidade é pequena, menos de 20 mil
habitantes. Eu não era amiga da Maria. Maria conhecia uma aluna minha que sabia
do nosso desejo de sermos pais.
Fomos, João, eu e Maria, até a Vara da Infância para que Maria soubesse
como funciona a tal da adoção consensual, tudo o que foi dito foi devidamente
anotado pelos técnicos da vara. Estávamos, todos, certos de que tudo estava dentro
da Lei e que estávamos atuando “sob os olhos da justiça”.
Seguimos. João nasceu e cuido dele desde que saiu da barriga de Maria.
Ela não olhou nem queria ficar com ele. Registrou no nome que nós escolhemos e
saiu de nossas vidas. Éramos todos tão felizes...
Os estudos foram feitos: psicólogos, assistentes sociais, as guardas iam
se vencendo e sendo renovadas, enquanto isso J. crescia, começava a andar, a
falar. Querem saber qual a primeira palavra? Mama! Imaginam como fiquei feliz?
Chorei, ri, rodei com J. por todo o nosso quintal junto com Félix, nosso
vira-latas. Foi lindo... pena que não filmei aquele momento único, pois, hoje,
acordei sem meu filho.
Soube que Maria casou, cidade pequena, tudo se sabe, todos se conhecem.
Parece que Maria estava bem, homem de idade, rico, com carro importado. Deu um
carro para Maria.
Dois anos se passaram. J. está lindo, anda, fala, come bem, ama a
família, o Félix, os amiguinhos, tem até namorada, uma não, três na creche do
fim da rua aonde vamos a pé todas as manhãs vendo os passarinhos, as flores. Eu
levo e João o traz no pescoço. Quer dizer... eu levava e João o trazia nos
ombros, porque hoje nós acordamos sem o nosso filho.
Recebemos de nosso advogado a informação da audiência e lá fomos no dia
13 de setembro. Conversamos com Maria que estava com sua mãe, D. Elza, entramos
na audiência e lá Maria disse que queria J. de volta, que era direito dela, que
a “lei” dizia isso e que ela sabia que o filho era dela.
Nosso mundo caiu, J. fui buscado, por mim e por alguém da justiça, não
lembro quem nem qual o cargo, se olhar para essa pessoa não saberei
identificá-la. Trouxe J. para o fórum, fiz uma mala, coloquei brinquedos,
roupas, comida, e lá entreguei J. a Maria com um “termo de entrega” ou algo
parecido. Desde então nós acordamos todos os dias sem o nosso filho.
J., dois anos, saudável – pelo menos era -, nunca levou uma palmada
sequer, tinha rotina de alimentação, acordava às 7h, chegava à creche às 8h, voltava
para casa às 13h, dormia até às 17, acordava, jantava com papai e mamãe,
brincava até às 21 horas, mamava e dormia.
J., dois anos com papai, mamãe, dois vovôs, duas vovós, inúmeros tios e
primos, padrinhos, amigos e 3 namoradas, além de Felix, era uma criança feliz e
plenamente atendido em todas as suas necessidades afetivas, emocionais, psicológicas,
materiais e sociais. J. tinha e fazia parte de uma verdadeira família.
Os estudos sociais e psicológicos do processo, todos, foram favoráveis à
adoção de J. por mim e por João. Até agora não entendo onde errei? Você sabe? Sim,
você que está lendo: o que fizemos de errado?
Nós somos habilitados, fizemos tudo certo, sem erro, éramos os primeiros
da fila, não tomamos uma decisão sozinhos, pedimos auxílio da vara, então o que
fizemos de errado? Porque hoje acordamos sem nosso filho?
Saindo, agora, da primeira pessoa: o que eles e tantos outros pais
vitimas do biologismo exacerbado fizeram de errado? Por favor, apontem os erros
com o dedo em riste, precisamos saber para que outras pessoas não os cometam.
Vamos analisar primeiramente o emblemático Caso Duda/MG: o que Valbio e
Liamar fizeram de errado? Habilitados há anos, chamados pela vara, criança
abrigada, colocação com guarda provisória regularmente concedida em processo de
adoção, decurso de tempo de mais de 3 anos, estudos sociais e psicológicos favoráveis
a adoção. Onde está o erro? Caso R./RJ, dois anos de regular exercício da
guarda provisória regularmente concedida em processo de adoção consensual,
estudos sociais e psicológicos favoráveis, desistência da genitora, entrega da
criança à genitora. Onde está o erro? Vários outros casos estão na mesma
situação com uma reversão no Espírito Santo onde a família biológica, ao fim,
desistiu de reaver a criança.
Mais uma vez, onde está o erro?
Podemos nos arriscar numa análise fria da questão sem adentrarmos nas
especificidades de cada caso: a morosidade do judiciário que não imprime a
devida, e constitucional celeridade, aos processos que envolvem crianças e
adolescentes.
Além do Estatuto da Criança e do Adolescente existem leis que versam
sobre essa questão nos seguintes estados, dentre outros:
Então como se justifica dois anos para a realização de uma audiência de
ratificação no caso das adoções intuitu
personae? Ou um ano que seja? A audiência tem que ser realizada com
celeridade, assim como a ela devem preceder os estudos técnicos que convalidem
que o melhor interesse da criança estará sendo atendido através de sua adoção.
Três meses são mais que suficientes para um “suposto” arrependimento e não
poderá configurar abandono. Agora aguardar 9 meses, um, dois anos alem de ser
uma péssima prestação jurisdicional é, acima de tudo, um desrespeito com o
sujeito de direito que merece e tem, constitucionalmente, prioridade absoluta e
a proteção do Estado onde se incluí, por obvio, do judiciário.
Voltamos ao caso Duda: três anos para a família se reestabelecer? O que
é isso? Que fundamento legal é esse?
Vamos retornar aos prazos e desculpem-me, em primeira pessoa, pois, agora
sou eu mesma, se estou sendo ácida, mas a questão merece: o art. 162 do ECA
determina que as ações de destituição do poder familiar devem estar concluídas
em 120 (cento e vinte) dias, 120 dias se não me falha a memória são 4 meses,
nem um dia há mais. Assim, por óbvio, a audiência de ratificação da entrega da
criança em adoção (art. 166, § 1º) poderá e terá que ser realizada
imediatamente com mais celeridade, por óbvio, do que a tramitação de toda uma
ação de destituição do poder familiar. Qual a dificuldade nessa realização? O
que falta a nossos magistrados? Acredito que tenha uma ou duas respostas: (1)
Equipes técnicas; (2) vocação.
Vamos à análise: entendo, smj, que a audiência prevista nos §§ 1º e 3º do
art 166 independe da prévia realização dos estudos técnicos e justifico – a Lei
determina o que segue:
Art.
166. Se os pais forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do
poder familiar, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação em
família substituta, este poderá ser formulado diretamente em cartório, em
petição assinada pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de
advogado
§ 1o
Na hipótese de concordância dos pais, esses serão ouvidos pela autoridade
judiciária e pelo representante do Ministério Público, tomando-se por termo as
declarações.
§ 2o
O consentimento dos titulares do poder familiar será precedido de orientações e
esclarecimentos prestados pela equipe interprofissional da Justiça da Infância
e da Juventude, em especial, no caso de adoção, sobre a irrevogabilidade da
medida.
§ 3o O consentimento dos titulares do
poder familiar será colhido pela autoridade judiciária competente em audiência,
presente o Ministério Público, garantida a livre manifestação de vontade e
esgotados os esforços para manutenção da criança ou do adolescente na família
natural ou extensa.
Ou seja, os genitores (§ 2º) precisam ser orientados acerca da medida
pelas equipes técnicas (psicólogo e assistente social, quando existem na
lotação da vara), não precisam ser submetidos a estudos técnicos antes da
audiência.
No caso, antes da ratificação em audiência com a obrigatória presença do
MP, os genitores podem passar por uma reunião na sala de atendimento da equipe
técnica, ou, na ausência de equipe, da Defensoria Pública ou do Próprio MP para
que tenham a plena convicção do que estão fazendo e de suas reais implicações.
O que há de tão difícil em tal procedimento? Estou sendo simplista? Caso o
magistrado, ou o próprio MP, não se convençam dos reais motivos da entrega aí
então que se proceda com os genitores os respectivos estudos.
Com relação aos adotantes os estudos são obrigatórios, indispensáveis e
necessários à instrução processual que embasará a decisão do Juízo, mas,
também, não podem demorar 6 meses, um ou dois anos, pois, nesse decurso de
tempo a criança pode estar em risco. Querem mais provas além das que já temos?
Então vamos lá: o caso da procuradora que maltratou a criança no RJ e estava
presa até recentemente; inúmeros casos de devolução depois de 1, 2 anos de
convivência – essas devoluções, na minha concepção incabíveis – poderiam ter
ocorrido com 3 meses, 6 meses no máximo reduzindo drasticamente o sofrimento da
criança revitimizada pelo abandono.
Mas, vamos acusar os adotantes, tanto os que adotam consensualmente
quanto os que adotam pelo cadastro como no caso Duda. Em outra ponta vamos
acusar os que devolvem, mesmo que não tenham recebido uma única visita de
acompanhamento pela assistente social, mesmo que nunca tenham sido chamados
para uma mera entrevista com a psicóloga judiciária. A culpa sempre será deles,
adotantes, que passaram 2 anos para se habilitarem, passaram por uma reunião
informativa, por 3 reuniões obrigatórias nos grupos de apoio à adoção –
indispensáveis, por sinal -, uma entrevista social, uma entrevista psicológica,
mais 2, 3 anos na fila e tornaram-se experts, doutores em adoção. Me perdoem,
mas...não existe formação para o que se enfrenta no exercício da parentalidade
seja natural, adotiva ou qualquer outra forma que exista, se é que existe.
Já disse: estou crítica, acida, cansada...cansada por ELA
que acordou sem seu filho, cansadas por ELES que há três meses acordam sem o
filho, cansada por R. que há mais de seis meses acorda sem os pais, cansada por
Valbio e Liamar que acordam todos os dias com medo de perderem Duda, cansada
pelos cinco irmãos de Monte santo que estão desaparecidos, escondidos não se
sabe – ou se sabe até demais – as razões. Simplesmente cansada...
Então volto a ser EU, a mãe que acordou sem seu filho e
pergunto: e se fosse com você? Se fosse a sua carne a sua alma arrancada de
você? Se fosse o sujeito do seu afeto, do seu amor, do seu cuidado arrancado de
sua vida? Se fosse você, pai ou mãe, a cheirar diariamente a roupinha de seu
filho que não mais está lá? E se fosse o seu filho? Ele está acordando todas as
manhãs sem você! Ele tem pesadelos na madrugada e não são os seus olhos que ele
encontra para acalmá-lo, não são os seus braços a aninhá-lo. E SE FOSSE O SEU
FILHO!!!!!! E SE FOSSE VOCÊ!!!!!
Silvana do Monte Moreira
Diretora Jurídica da ANGAAD
Presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM
Coordenadora dos Grupos de Apoio à Adoção Ana Gonzaga I e
II
Principalmente e antes de tudo: mãe que não sabe como não
se colocar no lugar de outra mãe que “hoje, acordou sem seu filho”.
Um comentário:
Perfeito, teu comentário, como Assistente Social, não acrescento e nem retiro nada, pois vejo no Poder Judiciário as falhas que mencionas, essa "burrocrácia" é que faz com que nossas crianças permaneçam tempo desnecessário dentro de Instituições, luto diariamente por essas mudanças e me solidarizo com pessoas como vocês, que Deus abençoe e de a solução logo pra todos esses casos. Kátia Néri
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