Olá, pessoal!!
Gostaria de conversar sobre o perfil e o afeto.
Muito se fala da necessidade de os habilitados ampliarem o seu perfil, perderem inibições e extrapolarem seus preconceitos para então aceitar filhos sem maiores restrições.
Um argumento muito usado é de que se engravidássemos e paríssemos nosso filhos não teríamos como escolher sexo e saúde. Que isso é algo inerente à maternidade/paternidade: a impossibilidade de controle sobre todas as variáveis que resultaria em um filho ser assim ou assado.
Entendo que os grupos de apoio à adoção devam trabalhar com afinco contra as principais limitações que encontramos nos perfis dos habilitados e habilitados a adotar.
Devemos propiciar a chance de, com informações e vivências, demonstrar que o que forja laços familiares é o afeto e não a identidade genética entre pais e filhos. Devemos lutar para dissociar a filiação adotiva da ideia de simulacro de filiação biológica. Encontramos muitos habilitados que preferem crianças que possam passar por filhos biológicos a fim de evitar o sofrimento deles e da criança de serem continuamente lembrados de que não são "pais e filhos de verdade".
Desmistificando a "verdadeira família" da identidade física por origens genéticas, rapidamente os habilitados deixam de temer a atenção social da origem adotiva de sua família. Passa a aceitar o laço afetivo entre pais e filhos como aquele que verdadeiramente faz deles família.
A fixação de perfis de adoção que simulem a maternidade/paternidade biológica tem suas raízes no luto pela perda, para a maioria dos habilitados, fertilidade perdida.
Fertilidade esta associada à reprodução como condição para o investimento afetivo no filho que chega.
Vejam, amamos o filho parido pq ele é resultado de nossa própria carne e sangue. Culturalmente somos educados desde o nascimento a amarmos os filhos paridos pois eles são "parte de nós" no sentido literal do termo. Não amá-lo seria a prova de que não amamos a nós mesmos.
Ora, se o filho parido é sangue do meu sangue, carne da minha carne, não amá-lo é prova de que não somos capazes de amarmos a nós mesmos.
Todavia, todo aquele que pariu um filho sabe que a dedicação afetiva a este filho teve início, não raramente, em um momento muito anterior à sua gestação. Se sonhou com aquele filho, se planejou a sua vinda, se lutou para conseguir a sua gestação, se temeu o parto e, após o nascimento, de regra há o estranhamento daquele ser que, confrontado com o filho desenhado pelos nossos desejos, se apresenta como um verdadeiro estranho no ninho.
Mas somos educados, treinados, obrigados a aceitar que se parimos Mateus teremos de o embalar. O amor é uma obrigação, logo, passada a fase de estranheza e adaptação inicial da família toda, o amor pelo filho nos chega e se desenvolve de uma forma quase que surpreendente.
Assim, se somos inicialmente obrigados a amar o filho parido, de regra acabamos por amá-lo não por ser excrecência de nossos corpos, mas porque na convivência e cuidados do dia a dia é inevitável amarmos estes pequenos seres. O amor vem pois os tornamos filhos de nossos corações, além de nossos corpos.
Quando tentamos extrapolar este processo para a adoção é natural que nos valhamos de nossas vivências e aprendizagens passadas. Buscamos ver na maternidade/paternidade adotiva as bases culturais que nos obrigam ao amor materno pelo filho parido. Não amá-lo seria não amar a nós mesmos.
Mas esta tentativa é vã e fadada ao fracasso, pois a maternidade/paternidade adotiva se funda única e exclusivamente no afeto, não tendo raízes na "obrigação biológica do amor".
A função dos grupos de apoio à adoção é auxiliar os futuros adotantes na compreensão das raízes culturais do amor materno/paterno e, na apropriação deste conhecimento, compreenderem que mesmo o filho biológico deve ser "adotado", tornado filho, de seus pais.
Os grupos de apoio devem permitir que os futuros pais e mães por adoção sejam capazes de compreender intimamente o maravilhoso poema de Luiz Schettini Filho:
"O filho biológico você ama porque é seu. O filho adotivo é seu porque você ama."
Mas o que tudo isso tem com o perfil dos adotantes??
O perfil fixado pelos adotantes, e que é inserido no CNA, é o reflexo dos limites, ao tempo da habilitação, para o afeto que se sentiam capazes de dedicar a um filho que lhes chegasse pela adoção.
Este perfil não é "culpa" dos adotantes. É antes resultado de nossas próprias influências culturais sobre o que seja um filho e de nossa relação com ele.
Por isso o perfil deve ser respeitado, já que datado! Mas somos todos humanos e nossa principal característica é nossa incrível plasticidade. Se hoje temos arraigados preconceitos culturais que não nos permitiriam "adotar" (amar como nosso) um filho negro se formos brancos, amanhã podemos abandoná-los e passarmos a amar o filho que nos chega tenha a cor de pele que tiver.
Não há que se punir ou culpabilizar os habilitados pelas restrições impostar em seus perfis. Deve-se antes de tudo criar-lhes condições para compreenderem as raízes mais profundas de suas opções e então, com o tempo e a convivência com outros habilitados e pais adotivos, livrarem-se natural e voluntariamente dos grilhões de suas bagagens culturais.
Qualquer mudança do perfil que não seja precedida de conscientização, amadurecimento e reflexo da mudança de convicções será em sua esmagadora maioria desastrosa para todos os envolvidos em qualquer adoção que resultar dai.
O perfil só deve ser alterado após uma mudança interna, íntima dos limites pessoais de disponibilidade afetiva. Jamais sem que isso ocorra.
Assim, o perfil deve ser exigido no processo de habilitação. Ele deve ser respeitado, ou no máximo minimamente flexibilizado (se até 3 anos, talvez permitir adoção de uma criança de até 4 - se apenas branco, talvez uma criança parda).
O objetivo da existência do perfil e de seu respeito é apenas entregar em guarda para os adotantes crianças que eles, segundo suas próprias convicções e background, serão capazes de receberem afetivamente como filhos seus.
Atingido este objetivo suas consequências serão diminuir as chances de adoções frustradas e devoluções traumáticas, principalmente para as crianças e adolescentes, que serão duplamente vitimizados pelo abandono reiterado.
O perfil então é necessário, fundamental para que se dê à nova família que se forma as melhores condições possíveis para o estabelecimento de vínculos afetivos positivos e duradouros.
Se as crianças e adolescentes precisam ter garantido o direito à convivência familiar e comunitária, isso deve passar obrigatoriamente pela mudança responsável, real e consciente do perfil padrão do habilitado brasileiro.
Isso somente ocorrerá de maneira concreta se ele for auxiliado, talvez em grupos de apoio à adoção, a compreender suas escolhas e opções e, na conscientização e vivência com outros habilitados, pais e filhos adotivos, amadurecer sua disponibilidade afetiva.
O perfil é instrumento de proteção da formação de famílias adotivas saudáveis e felizes. Deve ser alterado unicamente se ela expressar uma verdadeira mudança na consciência e disponibilidade afetiva dos futuros adotantes.
Abraços a todos.
Rosana Silva
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