02/03/2014
Iron Junqueira
Em 1985 chegou ao Lar HC bela jovem, de 20 anos, Francisca da Silva, seguida de um rapaz, Adão Viana, talvez mais moço que ela. Ela pretendia doar sua filha, Selma Rodrigues, em adoção. Contava uma história dramática para justificar sua desistência à criança de uns três anos. A moça tivera essa filha com João Sebastião, paraibano violento,alcoólatra, que espancava Francisca quase todo dia, por ciumeira ou devido à própria natureza ignorante e encrenqueira. Tanto, que tivera passagem pela polícia por homicídio.
— Estou aqui por tê-lo deixado. Cansei de apanhar e sofrer. Disse a moça. Mostrou lesões e riscos de peixeira no corpo. Não quero a filha dele e vou me ajuntar ao Adão, o tal moço que estava ao seu lado. A criança está sem registro. O que devo fazer para entregar essa menina em adoção? Indagou-me.
Expliquei-lhe que, caso de adoção, seria somente com o Juiz de Menores. Que ela, primeiramente, registrasse a filha ou não teria como entregá-la ao juiz. Porque criança sem registro inexistente perante a Lei. Ia saindo com sua pose imponente de jovem convencida de seu encanto e fascínio sobre o novo pretendente, que se derretia, submisso, ao seu lado. Mas chamei a atenção de ambos e expliquei-lhes:
— Aconselho a vocês não entregarem a garotinha em adoção. Sendo muito jovens, pretendendo se juntarem agora, a criança terá um novo pai que é o Adão, e você não ficará no desamparo, Francisca. Assim, a menina não terá problema de onde e com quem ficar. Ela tem a ambos. E se acaso o pai João Sebastião aparecer, poderá ver a filha sem criar casos.
— Não, ele não irá aparecer mais.
— Nunca se sabe. E tem outra: inevitavelmente, daqui, no máximo, trinta anos, você sairá doida pelo mundo procurando sua filha. Isto é inevitável, Francisca! Mesmo em caso de mães desalmadas, este momento ocorrerá. Há moças que chegam aqui desesperadas, querendo se livrar do filho que obteve numa gravidez inesperada. Há mesmo mulheres casadas que, grávidas de outro, sem que o marido o saiba, desesperam-se, antes que a barriga as denuncie, e dão o rebento a quem o quiser.
— Não. Dizia Francisca. Não vou me arrepender! Estou decidida! Pensei muito, refleti, tenho o apoio da minha mãe...
— Entregue sua filha à sua mãe, então! Tentei uma solução. Porque adoção por casal substituto é feita dentro da Lei e não existe “desadoção”. Deu, está dado. Ajoelhou, tem de rezar. Não há retorno!
— Não, foi minha mãe mesma quem sugeriu que eu a desse para outros! Ela reclama estar velha, cansada, não quer saber de criar netos...
— É verdade que a responsabilidade sobre a criança não é dos seus pais! Um motivo a mais pra você pensar. Fez o filho, assuma-o, mesmo que a dificuldade e os problemas apareçam. Dando sua criança em adoção, não adianta arrepender-se depois! Mais tempo, menos tempo, você e o Adão cairão em remorso. Se não vocês, a própria menina, quando estiver adulta, aos vinte e sete/trinta anos, sairá pelo mundo à procura dos pais biológicos. Se não sair, ficará infeliz, entrunfada em casa, lamentando sempre. Vai sonhar que seria, talvez, quem sabe, filha de um Pelé, um Roberto Carlos, um Dedé Santana, um Mussum, da vida, um cara rico, e não desistirá de procurar os pais verdadeiros. Irá aos programas do Gugu, Silvio Santos, Gilberto Gil, Ratinho, promovendo o maior fuzuê, em busca dos pais biológicos. Tudo em razão do abandono a que certa mãe a relegou! Irá sempre culpar a terceiros, jamais à genitora, que se tornará uma “pobrezinha”! Pelo fato de ter visto casos idênticos em novelas, programas sensacionalistas, mas irá. Basta surgirem as primeiras dificuldades da vida, lembrar-se-á dos pais irresponsáveis que a doaram, a abandonaram e a deixaram nos alpendres das residências ou bancos de jardins. Nem os pais desertores vão se lembrar de que toda dificuldade é passageira, e se desesperam depois. E outras, mais levianas e covardes, ainda, jamais assumirão o abandono aos filhos (as). Irão lastimar por todos os cantos do mundo que “foi o Juiz, o homem do orfanato, o casal da casa”, que deram seus filhos, não se sabe para quem! E nunca irão saber, porque, daquele tempo até a pouco, a adoção era feita sob segredo de Justiça. Em algumas comarcas ainda o é. Isto para que a mãe biológica não vá perturbar os pais substitutos, entendendo que “pais são os que criam”, não os que os abandonam.
Depois, mais tarde, encurvadas e vencidas pelo remorso, pela saudade, pelo arrependimento, não são capazes de assumir a fraqueza que as fizeram desistir da maternidade e, constituída nova família com o namorado que tinham em vista, têm quantos filhos puderem, e se acontece de serem largadas pelo então marido (que, na época, não aceitara ela com filho que não fosse seu), e quando os filhos que tiveram se vão, cedo, batendo asas de casa, lembram-se da menininha que um dia abandonaram num portal de uma casa e vão atazanar a vida de quem um dia morou naquela casa. É verdade que um casal que criara com amor um filho deixado na sua porta, muda-se de residência onde lhe deixaram a criança, exatamente para fugir da mãe. Agora, então, acompanhada de um chato, estúpido, achando que o idiota irá resolver sua intrincada questão. Mas não é assim.
— Não, isto não vai acontecer comigo. Disse a jovem Francisca, à época.
— Juro que vai! Explico, com a experiência de quem nunca brincou em serviço.
— Bom... Você quer me ajudar ou não?
— Devo ajudá-la porque, pelo que vejo e sinto, você irá se livrar dessa criança de qualquer jeito e, para que não seja da pior forma, vá ao Cartório e registre seu filho; depois volte e iremos, juntos, ao Juiz de Menores para você assinar o Termo de Renúncia de Pátrio Poder...
— Precisa desse trabalhão todo? Volta a precipitada mãe.
— Acha que essas providências prioritárias são demais? Eu penso que provação de verdade vocês terão quando tiverem seus próprios filhos e se lembrarem -“onde estará aquela filhinha que um dia deixei num orfanato?”
— Ah, você está é querendo me assustar! Fazer-me desistir do meu propósito...
— É isto mesmo! Enfim, vocês me entenderam...
— Então, vou registrar minha filha e voltarei pra você nos levar ao Juiz...
E saíram, reclamando. Queriam, certamente, que fizéssemos as coisas à maneira deles, afoita e irresponsavelmente.
Voltaram algum tempo depois (e eu pensando que os tinha convencido de não darem a filha de Francisca). Levei-os ao Juiz e este tomou as devidas providências, livrando o casal de quem o incomodava tanto: da filhinha da moça.
Trinta e três anos se passaram. Um senhor, ralado de cansaço e doença, trabalhador, humilde, educado, vem nos procurar e nos conta essa história. Mas eu não me lembrava de nada. Pedi-lhe nomes, datas, e terminei por deslindar todo o mistério de trinta anos atrás. Por sorte o Juiz me perguntara àquele tempo “se eu sabia de algum casal substituto e eu, ciente de que mães se arrependem, ofereci aquela criança a um parente”... Foi o que salvou a situação.
— Você se arrependeu Adão, de haver dado a menina de sua esposa em adoção?
— Sim: se fosse apenas eu estaria bom. Suportaria o remorso desde aquele dia até hoje. O pior é que a mãe, depois que tivemos nossos filhos, não quer outra coisa na vida senão, pelo menos, de saber notícias da filhinha Selma... Deve estar hoje com 33 anos...
Por estar em família, para me salvaguardar (e à criança), da leviandade da mãe, que reuni todos e foi aquele encontro festivo de filha e esposo com a mãe dela, Francisca e Adão e irmãos, avós, etc. Mas esse milagre não ocorre com a simplicidade que foi registrada aqui. Tentei resumir para relatar um imenso drama de mães que abandonam filhos(as) e de pais adotivos que, em outros tempos, não aceitaram o reencontro. Mas em se tratando, hoje, de todos serem adultos e cada participante casado e com filhos, resultou apenas em festa e alegria.
— Mas, mãe, por que a senhora me abandonou há trinta anos?
— Eu não a abandonei, filha. Eu assinei um papel no Juiz e na Creche e eles deram você para um casal... – respondeu a mãe biológica, tentando fugir à responsabilidade, ainda hoje. A vida é assim, como uma colcha de retalhos, só que os pedaços de responsabilidades chamam-se ingratidão, fugas, transferência, falsas bondades e mentiras. Mas o tempo se encarrega de tudo esclarecer.
Quando uma mãe quiser se livrar de um filho, vigie-a para que não jogue a criança numa caçamba nem a deixe numa sacola plástica. Ampare a mãe. Ela faz isso apenas naquele momento de insegurança e desespero, falta de apoio e de chão. Ampare-a. Alguns dias após verá que ninguém chega ao mundo aleatoriamente. Todos têm um endereço conhecido por Deus. E Ele não perde o endereço de nenhum de seus filhos. Aconteceu do jeito que eu havia alertado ao casal. Quase toda adoção promove remorso de mãe e drama de filho. É isso.
(Iron Junquira, escritor)
http://www.dm.com.br/texto/167650-abandono-de-incapaz
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