SINCERIDADE CONTRA O PRECONCEITO

06/07/2014
Gabriela Perufo
gabriela.perufo@diariosm.com.br
Sociedade dá sinais de abertura ao falar de casais homossexuais e seus filhos
Família
"A gente veio aqui dizer que estou em um novo relacionamento _ diz a mãe.
_ Ele já conhece seu namorado? _ pergunta a professora.
_ Na verdade é namorada. Eu estou me relacionando com uma mulher."
O diálogo acima foi ao ar na última quarta -feira quando os personagens da novela Em Família, Clara e Cadu (Giovana Antonelli e Reynaldo Gianecchini) procuram a escola do filho para contar que a mãe assumiu um relacionamento homossexual. Uma semana antes, o Vaticano divulgou um texto recomendando que Igreja seja mais tolerante com casais do mesmo sexo e acolha seus filhos.
A história de Clara, mostrada em horário nobre na TV, e a postura do Vaticano dão sinais que a sociedade está tratando mais abertamente o tema das famílias homoparentais (formada por pai, mãe ou pais homossexuais). No censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 98 casais de Santa Maria declaram aos recenseadores que tinham uma união homossexual e moravam com o companheiro (a) na mesma casa. Na região, são 199 casais.
_ Quando a Rede Globo começa a abordar a questão da homossexualidade como uma relação normal, o preconceito social costuma diminuir. Os gays são apresentados com um pouco mais de dignidade e normalidade. Antigamente, eram figuras caricatas. A novela ajuda, pois coloca o tema em discussão: muitos vão achar absurdo, mas muitos vão refletir sobre o assunto. A gente pode não concordar, pode achar uma série de coisas, mas não pode discriminar _ defende doutora em antropologia social especialista em famílias homoparentais, Elizabeth Zambrano, ressaltando que o tema é estudado por pesquisadores desde a década de 70, mas avança "a passos lentos" na sociedade.
Assim como na novela Clara teve preocupação com o filho, casais da vida real se preocupam em como estabelecer uma relação saudável com a família (pais, avós, irmãos..) e minimizar situações de preconceito que os filhos possam sofrer. Dois pais homossexuais ouvidos pelo Diário (leia os depoimentos nestas páginas) compartilham suas experiências em relação à família:
_ Tive medo de ser rejeitado. Amor de pai é incondicional e tinha medo que meus filhos pensassem que o pai deles era uma aberração. Lembro do dia que contei. Disse que a gente tinha sido amigos e passamos a nos gostar mais e que éramos namorados _ lembra o pai, de 28 anos, dois meninos.
COMO CONTAR AOS FILHOS?
Psicóloga e professora da pós-graduação Família na Contemporaneidade do Centro Universitário Franciscano (Unifra) Luciane Najar Smeha afirma que é preciso desconstruir a ideia de esperar a criança crescer para explicar a orientação sexual do pai ou mãe. Segundo ela, não há uma receita de como fazer. É necessário explicar de acordo com a idade da criança ou adolescente:
_ Claro que não é necessário esclarecer como funciona toda a vida do pai ou da mãe a uma criança pequena. Mas a clareza e a naturalidade são importantes. Conforme o tipo de pergunta que a criança faz, é sinal que ela já pode compreender um pouco mais. Vale lembrar que as crianças aprendem muito com o que se fala, o que se vê. Então, pais que não têm preconceito não terão filhos preconceituosos.
Elizabeth Zambrano, uma das referências do tema no Estado, lembra que o preconceito das crianças geralmente começa quando ela começa a frequentar a escola. Se os pais mantiverem uma relação em segredo pode ser pior para a aceitação da criança, que vai perceber o que existe, mas não vai saber dar nome para o que acontece.
Para a especialista é preciso desconstruir algumas concepções. Por exemplo: que filhos de casais homossexuais terão mais chances de serem homossexuais e que pode ser perigoso a criança frequentar a casa de uma família homoparental. Elizabeth lembra que dois homens ou duas mulheres podem desempenhar o papel de mãe e de pai:
_ Na psicologia e na psicanálise, fala-se em funções maternas e paternas. Elas não precisam ser realizadas por um homem e por uma mulher. Qualquer casal de homens ou de mulheres pode cumpri-la. São funções que não estão vinculadas à anatomia dos casais.
As duas especialistas alertam para um outro ponto: quando o filho é adolescente, a aceitação pode ser mais difícil por vários motivos. Porque o adolescente está vivendo a sua própria sexualidade, porque ele pode ter vivido em uma família de pais heterossexuais antes, porque perceberem as relações com maior facilidade.
_ Apoio e diálogo, com sinceridade, é o ideal. O mais importante é que o adolescente tenha um local onde possa conversar e contar os problemas. Dizer que nunca vai acontecer uma situação de preconceito, não dá. É importante fortalecer os filhos para que possam encarar as situações e encontrar apoio na família e na escola, que também deve estar preparada _ diz Luciane.
A ESCOLA PRECISA ACOLHER AS CRIANÇAS E VALORIZAR A DIVERSIDADE
No diálogo reproduzido da novela Em Família, lá no começo do texto, a personagem Clara busca a escola para contar sobre a nova situação familiar e saber do colégio (núcleo importante para a criança depois da família) o que pode fazer para que o filho não seja alvo de chacota. Apesar de ser um diálogo ficcional, serve como exemplo de postura adequada para uma escola.
_ Não tem nada mais construtivo para a infância do que uma família franca, que conversa com honestidade com seus filhos. Aqui, a gente acolhe e respeita a diversidade e prepara os alunos para conviver com ela. Em qualquer relacionamento, é fundamental a tolerância _ tranquiliza a professora do filho de Clara.
Autora do livro O Direito à Homoparentalidade _ Cartilha sobre as Famílias Constituídas por Pais Homossexuais, a antropóloga Elizabeth Zambrano ressalta que as escolas devem não só receber os filhos de famílias homoparentais, mas educar contra o preconceito em qualquer modelo de família:
_ Uma boa iniciativa é não comemorar o Dia dos Pais ou o Dia das Mães. As crianças que não têm pai ou mãe vão se sentir excluídas. Seria interessante comemorar o Dia da Família. Luciane lembra que a escola é uma mediadora e que ensinar que existem modelos diferentes de família. Um exemplo ocorreu na Escola Estadual Walter Jobim, de Santa Maria. Em maio passado, os alunos participaram de oficias sobre diversidade e gênero além de tratar o tema em trabalhos de história.
_ A gente não trabalha só o conteúdo de história tradicional. Questões importantes para a comunidade também fazem parte da sociedade _ explica o professor Felipe Rios Pereira.
HOMOFOBIA AINDA NÃO É CRIME
Elizabeth defende a legislação brasileira precisa ser mais rígida:
_ Criminalizar a homofobia é um passo muito importante para que as pessoas parem de fazer piadas de gays, parem de se dar ao direito de bater nos gays nas ruas. A maneira como a gente encara a sexualidade é a maneira que a gente vai encarar a homoparentalidade. Tem que ser tratada pelo Estado como uma questão mais firme, como foi feito na questão da raça.
Atualmente, a legislação brasileira não prevê o crime de homofobia. Um projeto de lei , o PL da homofobia, prevê a sanção de práticas discriminatórias pela orientação sexual. Além do PL 122, outros projetos tramitam no Congresso, mas nenhum aprovado ainda.
_ Casos de violência podem ser enquadrados como lesão corporal ou homicídio. Quando é uma ação de ofensa, como uma injúria, por exemplo. Mas ainda não há um crime específico por motivo de gênero _ explica Débora Dias, titular da Delegacia da Mulher de Santa Maria.
DO TEXTO À PRÁTICA: SERÁ UM SINAL DE ABERTURA DA IGREJA CATÓLICA?
Em 26 de junho, o Vaticano publicou um documento que afirma que a Igreja Católica, apesar de contrária à união de pessoas do mesmo sexo, deve acolher filhos de casais homossexuais. O texto é um preparatório para o Sínodo dos Bispos, em outubro, e deve ser difundido entre as paróquias.
_ É algo histórico. Um sinal de abertura. Não sei se a Igreja vai conseguir porque ela é muito conservadora. Mas falar dos filhos dos casais de homossexuais é um avanço _ opina Elizabeth.
Para o arcebispo de Santa Maria, dom Hélio Adelar Rubert, os filhos de homossexuais devem ser acolhidos como qualquer pessoa. Mas é necessário separar o matrimônio:
_ Não concebemos o casamento (o rito) entre pessoas do mesmo sexo. Claro que o evangelho prega que devemos amar todo mundo, mas sem desvalorizar a família, o matrimônio.
Se a Igreja Católica não aceita casais homossexuais, o mesmo não ocorre com os espíritas. Segundo a coordenadora da 4ª região da Federação Espírita, com sede em Santa Maria, Mary Ângela Amorim, na doutrina espírita há a premissa de igualdade entre todos:
_ A prática do bem, a busca ao amor de Deus e ao próximo é o que a gente espera, sem discriminação. Temos de entender que a doutrina católica é milenar e que mudanças levam tempo.
DECLARADOS AO CENSO
67.445 casais brasileiros do mesmo sexo declararam ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no censo de 2010, que moravam na mesma casa. No Rio Grande do Sul, foram 3.989 casais, e nas 37 cidades da região de cobertura do 'Diário', 199 casais confirmaram que viviam na mesma casa O Rio Grande do Sul é considerado vanguardista em decisões judiciais sobre casais homossexuais. Veja na linha do tempo as conquistas no Brasil:
Santa Maria - 98 casais
Caçapava do Sul -10 casais
Júlio de Castilhos - 10 casais
Restinga Seca - 6 casais
Rosário do Sul - 10 casais
Santiago - 37 casais
São Gabriel - 8 casais
São Vicente do Sul - 8 casais
Tupanciretã - 12 casais
ESTÁ NA LEI
O Rio Grande do Sul é considerado vanguardista em decisões judiciais sobre casais homossexuais. Veja na linha do tempo as conquistas no Brasil:
2001 - O primeiro reconhecimento de união homoafetiva é feito no Rio Grande do Sul
2005 - Supremo Tribunal de Justiça (STJ) concede direito de pensão por morte em uniões homoafetivas
2006 - Tribunal de Justiça (TJ) do Estado admite, de forma pioneira, a adoção por duas pessoas do mesmo sexo. A decisão é confirmada pelo STJ só em 2010
2006 - STJ admite a associação do parceiro como beneficiário em planos de saúde
2008 - A Justiça gaúcha é pioneira na autorização da dupla maternidade (com uso de técnicas de reprodução assistida)
2010 - STJ permite a associação de companheiro(a) na condição de dependente de seguros
2011 - Em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga a legalidade da união estável com todos direitos e deveres da união estável hetero. A constituição prevê a conversão da união estável em casamento
2011 - Em outubro, duas gaúchas conseguem no STJ o direito ao casamento civil. Elas recorreram à Justiça após terem negado o pedido de conversão da união estável em casamento em Porto Alegre. A decisão abriu o precedente do casamento do mesmo sexo
2011 - STF reconhece a união civil entre homossexuais
2013 - CNJ aprova a resolução em que proíbe os cartórios se recusar a converter uma união estável homossexual em casamento civil
FAMÍLIA HOMOPARENTAL
Os avanços na legislação facilitaram a formação de famílias homoparentais. Reconhecidos pelo Estado como casais, as pessoas do mesmo sexo têm direito a adotar filhos. Antes, apenas uma pessoa do casal poderia adotar a criança, que não poderia ter benefícios pelo outro, como o sobrenome, por exemplo.
DEPOIMENTOS
"Eu e o João estamos juntos desde 1978. Na época, eu estudava Filosofia, e ele, Zootecnia. Pouco tempo depois do início do namoro, questão de semanas, já estávamos morando juntos. Anos depois, fomos morar na praia, em Saquarema, no Rio de Janeiro. A gente tinha uma pizzaria e montamos uma associação de moradores. Entre os projetos da associação, surgiu o João Batista, aluno da alfabetização de adultos. Ele e a mulher nos convidaram para batizar um dos filhos deles, o Rafael. Com isso nos aproximamos mais. O menino passava os finais de semana na nossa casa, as férias.
Eu sempre quis adotar. O João ainda não falava em adotar. Com o tempo, a gente viu que a família do Rafael estava passando por dificuldades, e o João que fez a proposta: quem sabe a gente adota o Rafael? Foi o que aconteceu. Ele tinha 9 anos na época.
Três meses depois, veio o Alexandre. Ele era adotado por outra família, mas o pai morreu. Então, voltou a morar com os pais biológicos e também passava dificuldade. A gente o convidou (na época tinha 11 anos) para morar com a gente. Lógico que conversamos com as famílias. Nossa promessa era de que os meninos manteriam vínculo com os pais biológicos.
Em 2000, quando os guris já tinham crescido, voltamos a morar em Santa Maria. Antes de vir, consultei a família e achamos que eles poderiam ter mais oportunidades aqui. A assistente social de Saquarema nos orientou que oficializássemos guarda deles. O Alexandre tinha 16, o Rafael, 14. Hoje, além dos dois filhos, temos uma neta de 4 anos, a Maria Eduarda.
Poucas vezes sofremos preconceito. Quando ainda morávamos na praia, o Rafael chegou em casa e disse que tinha um assunto muito sério para conversar com a gente. Que ele batia em um menino na escola porque o menino dizia que éramos veados e que não prestávamos. O nosso primeiro passo foi conversar com ele e dizer que ele não tivesse vergonha de nós. Depois, soubemos por um vizinho da família biológica que, na época em que nos deram a guarda, outros amigos faziam pressão e diziam que era perigoso ele morar com a gente. Mas os pais nunca tiveram esse pensamento.
Acredito que hoje se discute mais esse tipo de relação. Conheço muitos casais que adotaram e deu certo. Quando a gente adota, faz com muito amor, com muito planejamento. Tanto faz se é um casal homossexual ou não. A gente vê crianças um pouco maiores sem carinho, sem família. E tantos casais querendo adotar..."
Carlos Alberto Flores, 62 anos, casado há 36 anos com João Jerônimo Sodré, 63 anos, e pai adotivo de dois jovens
"Fui casado por mais de sete anos com a mãe dos meus dois filhos, de 3 e 6 anos. Como qualquer casamento, o meu se desgastou e nos separamos. Passado um bom tempo, me envolvi com um homem, que é o meu companheiro. No início, tudo era escondido. Primeiro, escolhi os amigos mais próximos para contar. Depois, contei para minha família. Pensei que com o meu pai seria muito difícil, mais difícil do que foi de fato. Eu tinha de me aceitar e aceitar uma vida nova. Contar para minha ex-mulher também não foi fácil, mas decidi que ela precisava saber por mim. Imagino que deve ter tido muito falatório, mas a gente nunca deixou as fofocas chegarem até a gente. No início ela ficou confusa, com raiva. Vivemos uma turbulência, mas hoje superamos e nos damos bem.
Demorou de sete ou oito meses para "estabilizar" a minha vida social. Antes de contar para família, filhos e amigos, tive medo de ser rejeitado. Amor de pai é incondicional, e eu tinha medo que meus filhos pensassem que o pai deles era uma aberração. Na época, eu fazia terapia, o que me ajudou. Meus filhos conheciam meu companheiro, mas até então ele era um "amigo do papai". Lembro do dia que eu contei. Disse que passamos a nos gostar mais e que éramos namorados.
Hoje, todos vivemos bem. Meus filhos frequentam a nossa casa toda semana, saímos para passear, tiramos fotos, viajamos. A gente (eu, meu companheiro e os meus filhos) vivemos bem socialmente, mas tomamos algumas decisões. Uma delas é que a intimidade é dentro de casa. Ninguém vai nos ver na rua de mãos dadas ou trocando carícias. Também não fizemos isso na frente das crianças. A gente dorme junto, eles posam na nossa casa, é tudo muito tranquilo.
Felizmente nunca passamos por uma situação de preconceito, nem os meus filhos. O mais novo ainda é pequeno e entende de um jeito um pouco diferente. O de 6 anos, que também teve apoio de um psicólogo, já entende. Ele nunca teve problemas, mas depois do divórcio e no início do meu relacionamento costumava dizer que não entendia porque tinha uma família "tão maluca". Ele não conta na escola que o pai dele é casado com outro homem e nós respeitamos. Mas também já conversamos sobre isso. Um dia, os outros vão saber, vão falar e estamos nos preparando para isso. Mas o que mais importa é o apoio da família.
A gente procurou a escola, explicou a situação e pediupara terem cuidado quando forem tratar de temas como família. Me considero um sortudo, nunca sofri preconceito de familiares ou no meu local de trabalho. Pelo contrário, costumo conversar bastante sobre isso. Fico pensando que, se não fosse a terapia, talvez eu nunca tivesse contado, mas poderia ser pior. Acho que todo mundo tem medo da rejeição da família e, principalmente, dos filhos."
Pai biológico de dois meninos, de 28 anos, casado há um ano com um homem
Foto: Claudio Vaz / Agencia RBS
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