VAMOS FALAR DE ADOÇÃO
 Gabriela Schreiner*
 
 O que é a adoção para nós? Porque estamos aqui hoje? Como assimilamos esta forma de assumir e amar um filho? 
 Dedicar um tempo para a reflexão a respeito da adoção é revelá-la para 
nós mesmos, é incorporar uma verdade que está sendo assumida a partir da
 intenção. 
 Adotar é reconhecer no filho gerado por outros, nosso 
filho. Olhar em seus olhos à procura não de uma cor conhecida, um 
formato herdado, mas o brilho do olhar de quem é amado e reconhecido 
como ser único. 
 Adotar é doar seu tempo, doar seu espaço, é pensar 
naquele ser tão indefeso antes de pensarmos em nós mesmos, é uma 
sucessão de atitudes solidárias (atenção: solidárias!), sucessivas e 
infinitas. É ser pai, é ser mãe. 
 A paternidade pode ser 
involuntária, a maternidade pode ser indesejada. A paternagem não. É na 
maternagem que a mulher se torna mãe. É no exercício, assim como um 
médico. Enquanto estuda, é estudante de medicina, só pode ser médico 
após o diploma, no exercício consciente e ético da profissão. Assim é na
 construção da relação mãe-pai-filho, só se é mãe no exercício, só se é 
pai na ação – nunca na omissão. Dentro da preparação (o estudo no caso 
do médico) para o exercício da paternidade/maternidade, ou a 
paternagem/maternagem, não é condição fundamental a gestação biológica, 
mas sim a gestação afetiva. É neste momento que nos perguntamos: 
queremos? Podemos? Podemos abrir mão de espaços, de tempo, de diversão, 
de "liberdade"? Como faremos? Estamos prontos? E mais um milhão e meio 
de perguntas. Muitas delas sem respostas. 
 A adoção não acontece sem
 uma decisão. Isto a torna diferente. Por "diferente" temos que ler 
diferente. Uma outra forma de ser pai, de ser mãe. Só. Só? Não, a adoção
 é rica por isso mesmo! Encontro de histórias, uma caixinha de surpresas
 que temos as chances de moldar, de ajeitar com carinho, de ajudá-la a 
crescer. 
 O que é um casamento afinal? O encontro de duas pessoas 
diferentes, com histórias diversas que identificam coisas em comum, ou 
coisas que os atraem, iniciam um relacionamento e percebem que ele 
poderá durar por toda uma vida. Encontro de histórias, assim como na 
adoção. 
 Em toda história há riqueza, porque há vida, experiência. 
São nossas histórias de vida que nos tornam diferentes, especiais. Nelas
 há sempre um ensinamento, uma lição, merecem respeito. 
 Para haver 
uma adoção, deve ter havido antes um abandono. Sempre, por menos sofrido
 que tenha sido. Nisto há uma história. Um filho adotivo sempre terá um 
história anterior à adoção, que deve ser respeitada por fazer parte 
dele, por tê-lo ajudado a se formar. Ao optar pela adoção, os pais 
adotivos devem levar em conta que estarão sempre ligados aos pais 
biológicos de seus filhos, porque sem eles, estes não estariam no mundo 
hoje. E aqui está um dos pontos mais bonitos da adoção, não se pode 
negar esta realidade, mesmo porque ela reforça a intenção, a ação e o 
desejo por este filho. 
 Negar e negar-lhe este fato, é não aceitar 
parte da história de vida do filho, é não aceitá-lo como é, 
incondicionalmente. É também, negar toda a espera, todo o desejo 
motivador do antes. 
 Claro que pode ser que nada se saiba sobre os 
pais biológicos, ou muito pouco. Ou até mesmo seja algo profundamente 
triste, que não cabe entrar em detalhes. Mas, qualquer que seja esta 
história, ela existe e não pode ser mudada. Não há nada que pais 
adotivos possam fazer para modificar a história anterior de seus filhos.
 Mas podem fazer algo muito mais importante do que isso, podem 
respeitá-la. Podem dizer com isso: "Isso faz parte de ti, se te dói, nos
 dói. Estamos aqui para compartilhar contigo todos os momentos, para que
 possamos construir uma nova história, para sermos felizes juntos". Isto
 não muda o passado, mas faz toda a diferença no futuro e, afinal, não é
 o futuro que nos espera?
 Mas para chegar a isto será preciso contar
 ao filho como chegou à família. Falar sobre adoção pode parecer fácil, 
mas pode não sê-lo. Não demore a fazer isto. O que, em terna idade, pode
 ser dito entre histórias de ninar, livrinhos e musiquinhas, pode vir 
como uma bomba se dito na adolescência durante uma discussão familiar. 
Não perca oportunidades. Seja firme em suas colocações e não conte mais 
do que a curiosidade que a idade pode absorver. Ele voltará a falar, a 
perguntar, se você continuar a criar espaços. E não há razão para não 
criar esses espaços para se falar de algo tão importante e profundo, 
afinal vocês estarão falando do amor que estão construindo a partir do 
momento em que se encontraram. 
 Lembre-se que os bebês nascem da 
barriga e que seu filho vai saber disto em algum momento. Evitar figuras
 de linguagem como "nasceu no meu coração" é recomendado por todos os 
especialistas. Se não, ao saber que os bebês só nascem de barrigas, uma 
criança poderá considerar mentira o que lhe foi dito. E não é. Ela 
nasceu de uma barriga que não pôde criá-la, mas esta barriga existiu. O 
amor de vocês passou a ser construído a partir da decisão de que ele 
seria seu filho para o resto da vida. Porque você podia amá-lo, 
educá-lo, criá-lo, e desejou muito fazer isto. 
 É inevitável que 
surjam, em algum momento, mais perguntas a respeito da família 
biológica, e é fundamental que esta parte da história não seja diminuída
 ou esteriotipada. Mesmo porque, a criança poderá pensar que foi 
abandonada por que não ‘merecia’ ser amada. E nós sabemos que não é 
isso. É importante que ela perceba que ela não é a causa do abandono, é 
objeto dele. O abandono pode ter ocorrido pelas mais diversas razões, 
mas nenhuma delas porque a criança "não merecesse ser amada". 
 
 AO CONVERSAR SOBRE ADOÇÃO, É PRECISO TER EM MENTE QUE O ‘HOJE’, O ‘PRESENTE’ É BOM. 
 Como todo filho, a criança adotiva, irá testar limites em diversos 
momentos de sua infância e adolescência. Podem surgir frases do tipo 
"você nem minha mãe é para me mandar fazer..." ou "não gosto de você, 
minha mãe de verdade deve ser mais boazinha...". Isto não é prerrogativa
 dos filhos adotivos, só que nos casos dos biológicos, eles precisam 
fantasiar que existem outros pais. Os filhos adotivos sabem que estes 
existiram. Pura chantagem que, se levada como uma questão pessoal, será 
um desastre. "Sinto muito meu filho, eu sou a única mãe que você tem à 
mão hoje, portanto vai fazer...". Firmeza, perseverança e muito amor. 
Não há fórmula melhor para lidar com isso. Ele não deixou de amar você, 
nem deixará. Ele está apenas ficando esperto... 
 
 A IDADE 
ESCOLAR É UM FANTASMA PARA MUITOS PAIS POR ADOÇÃO. DEVO CONTAR NA 
ESCOLA? E SE ELES COMEÇAREM A ACHAR QUE MEU FILHO TEM PROBLEMAS POR 
CAUSA DISSO? COMO ELE VAI SER ACEITO PELOS COLEGUINHAS? 
 A super 
valorização - ou a única valorização- da maternidade/paternidade 
biológica e os modelos de família ainda baseados nas tradições cada vez 
menos freqüentes, podem representar um problema na escola. É dia das 
mães, é dia dos pais, e a "tia" pede foto da criança na barriga para 
fazer um trabalho de escola, ou então uma peça de roupa de quando ele 
era bebê (para os adotivos tardiamente isto é complicado). Os livros 
escolares (com algumas exceções) só falam de família como sendo 
pai-mãe-filhos, e nascidos da barriga. Pois a realidade é bem diferente 
dessa. Hoje nem todas as famílias são constituídas assim, muitas tem só 
mãe, ou só pai. Outras crianças vivem com tios ou avós, e muitas são 
filhos adotivos. 
 
 ENTÃO, O QUE FAZER? 
 Novamente, não perca
 a oportunidade. Vá até a escola, fale sobre adoção. Você pode até 
conversar com a "tia" para que ela inclua, na aula, esta outra forma de 
ser filho... Indique a ela um livro infantil que possa ser lido em 
classe. Você pode até ir à escola para contar a sua história, se isto 
for do agrado do seu filho. Não podemos deixar que a escola seja um foco
 de preconceitos ou discriminação, portanto, faça-se ouvir. 
 Cuidado com os mitos! É freqüente ouvirmos ‘opiniões’ a respeito da adoção, é bom estar preparado: 
 
 "SÓ PODIA SER ADOTIVO, VAI SABER QUEM É O PAI..." 
 Existe um tendência ainda comum de ‘classificar’ as atitudes das 
crianças adotivas justificando-as por conta de sua origem. Estudo 
mostram que há muito de herança genética sim, mas nem tanto que não 
possa ser modificado pelo meio, pela educação. E além disso, tende-se a 
ser menos tolerante com estas crianças, já por ter uma ‘justificativa’ 
para certas atitudes. Puro preconceito. Algumas marcas do passado podem 
comprometer certas crianças que, quando ajudadas por especialistas, 
conseguem superar isto com certa facilidade. Mas a maioria delas não tem
 problema algum. São apenas crianças, esteja sempre atento para perceber
 o que é oriundo do fato da infância ser uma etapa de descobertas e de 
teste de limites. Percebendo a injustiça, defenda-o e repreenda-o, 
afinal ele precisa ser orientado na arte do crescer. 
 
 "SÓ NUM BEBÊ PODEMOS IMPRIMIR MARCAS DE NOSSA PERSONALIDADE" 
 Ouvi certa vez o depoimento de uma mãe com filhos biológicos e adotivo.
 O Carlinhos, caçula, adotado já com 5 anos, apresentava problemas de 
desenvolvimento motor. Ela disse: "ver um bebê se desenvolver é 
maravilhoso, ver o Carlinhos se desenvolver, mesmo que lentamente, é 
muito melhor!". Havia emoção e verdade na voz daquela mãe. Ela sabia o 
que estava dizendo. Ela estava influenciando, não só a personalidade, 
mas a vida desta criança, que talvez nunca fosse totalmente perfeita 
(quem o é?), mas, com certeza, ela será o melhor que puder ser, e isto 
para este filho e para esta mãe representa TUDO. 
 Basta olhar para a
 influência que ainda tem sobre nós a nossa família, pai, mãe, tia, 
irmãos. Eles sempre nos influenciam porque nós depositamos neles nosso 
afeto e nosso respeito, e o que eles nos dizem é importante. Claro que 
uma vez adultos, a influência é menor. 
 Tudo depende das 
expectativas. Para a mãe do Carlinhos sua evolução será tudo, ela sabe 
que cada dia é uma vitória e é isto que ela espera dele. Quais são as 
chances dela se frustrar com os resultados? Próximas de zero. Neste 
sentido somos todos adotivos. Biológico ou adotivos, sempre teremos que 
aceitar o filho, ajudá-lo a superar todas as fases de aprendizado da 
vida, orientá-lo para seguir seu caminho e aceitá-lo dentro de suas 
limitações e escolhas. Podemos sonhar com que eles serão médicos, 
professoras, e tantas coisas. Ele podem optar por algo completamente 
diferente. Assim com tudo na vida. 
 
 "OS LAÇOS DE SANGUE SÃO OS MAIS FORTES" 
 É uma velha e cultuada inverdade. Quantas vezes encontramos maior 
afinidade com estranhos do que com nossa própria família. Há pouco menos
 de 3 séculos (França), a vinculação mães-filhos, em especial na 
nobreza, era nula. Os bebês eram entregues a amas de leite até 
completarem 7 anos e, só então, reintegrados ao seio familiar. O estudo 
da história da humanidade nos mostra o quanto o ‘amor materno’ não passa
 de um mito. Amor se constrói e nasce da vontade e do desejo de amar, 
nada tem a ver com o sangue. Portanto: os laços do afeto são os mais 
fortes. 
 
 "TODO FILHO ADOTIVO QUE SABE DE SUA CONDIÇÃO, PROCURA SEUS ‘PAIS VERDADEIROS’"  
 Vamos deixar uma coisa muito clara: pais verdadeiros são os que 
exercem. São os que investem tempo, afeto, enfrentam desafetos, 
protegem, estimulam, orientam, acolhem. Para isto não precisam ser 
exatamente pais oficiais. Muitas vezes, tios, avós, irmãos, assumem 
estas funções e se transformam em ‘pais verdadeiros’, responsáveis. 
 Pode ser que alguns filhos adotivos manifestem o interesse de conhecer 
seus pais biológicos, mesmo porque, em alguns casos a identificação de 
algumas características físicas pode ser importante (a cor do cabelo, 
aquela marca na pele, o formato das mãos). Mas isto não que dizer que 
estes filhos irão viver com seus pais biológicos, mesmo porque seus pais
 não são os biológicos e sim aqueles que o estão criando e amando. Mas 
para uma maioria, isto nem passa pela cabeça. É algo desnecessário. Em 
algum momento, talvez, surja o interesse, ele talvez o manifeste, mas 
pode ser que seja apenas para ‘testar’ sua atitude. Se você concordar em
 acompanhá-lo, em estar com ele em cada momento, ele poderá se contentar
 com isto, se sentir seguro. Mas pode ser que ele decida ir à procura, 
então é fundamental que você esteja ao se lado. Que o acompanhe, o 
respeite, e o ampare. Ele tem que saber que você estará sempre ao seu 
lado, afinal, vocês são uma família. 
 
 "VOCÊS SÃO ESPECIAIS. FIZERAM UMA CARIDADE, LIVRARAM ESTE MENINO DO MUNDO DAS RUAS"  
 Vocês não são especiais, são pais, como quaisquer outros, apenas 
começaram a construir esta relação a partir de uma adoção. Não há 
caridade na adoção. Mesmo porque, caridade é algo pontual, e um filho é 
para toda a vida! E este filho não tem que ser grato por isso. Ele tem 
que ser grato pelo afeto, pelo carinho, pela dedicação (e isto todos os 
pais e mães, adotivos ou não, deveriam dar). E vocês? Vocês devem ser 
gratos porque sem ele, como exerceriam esse afeto, a quem dariam o 
carinho, como saberiam o quão dedicados podem ser? É a presença deste 
filho que permite este exercício, e para isso não tem gratidão 
suficiente que caiba! 
 Não espero que vocês dêem um valor além da 
medida para a adoção. Desejo que dêem o devido valor. Que construam esta
 relação baseada na verdade, no compromisso eterno de crescerem juntos 
pais-mães-filhos, exercitando o que há de melhor dentro de vocês mesmos,
 e esperando pouco, para valorizar o muito que será fruto desta decisão 
consciente, construída dia a dia, a partir da intenção e do desejo de 
ser mãe, de ser pai e de transformar uma criança em filho através do 
amor. 
 
 * Gabriela Schreiner é diretora executiva do CeCIF – 
Centro de Capacitação e Incentivo à Formação de profissionais, 
estudantes e voluntários que desenvolvem trabalhos de apoio à 
convivência familiar
 
 http://www.gaasp.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=351%3Avamos-falar-de-adocao&catid=58%3Areflita&Itemid=73
 
 
 
 
          
      
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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