Aos 9 anos de idade, José* acumula alguns ex. O primeiro veio quando ele tinha 4, depois de sofrer maus- tratos e ser retirado da família biológica por determinação da Justiça. De um abrigo no Cabo de Santo Agostinho, onde morou poucos meses, foi inserido numa família substituta. “Ele já saiu de lá chamando a requerente de mãe”, lembra a juíza titular da Vara da Infância do Cabo, Hélia Viegas, que acompanhou o caso. Quatro anos mais tarde, José fez o caminho inverso: foi devolvido pela mãe adotiva. Chegou abatido e precisou ser acompanhado de perto pelos psicólogos da instituição de acolhimento que o recebeu. Durante seis meses, a equipe da Vara da Infância tentou uma reaproximação entre a mãe adotiva e o garoto, “mas ela foi inflexível”, diz a juíza. Outra vez destituído, José voltou a esbarrar no prefixo ex.
O artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro: a adoção é irrevogável. “Pais adotivos têm os mesmos deveres que pais biológicos. Devolver é uma forma de abandono e cabe processo judicial e até condenação à prisão”, esclarece o coordenador da infância e juventude do Tribunal de Justiça de Pernambuco, desembargador Luiz Carlos Figueiredo. Se, mesmo assim, a criança é rejeitada pela nova família, é dever das varas da infância averiguar se é caso para ação criminal e, paralelamente, tentar encontrar um outro lar para o menor.
O caso de José chamou a atenção do promotor da infância Allison de Jesus Cavalcanti de Carvalho, que ingressou com uma ação por infração administrativa contra a mãe adotiva do garoto. Ela pode ser condenada a pagar multa no valor de até 20 salários mínimos – destinado ao Fundo da Criança e do Adolescente. “A ação foi baseada no descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar. Também estamos avaliando a possibilidade de entrar com outro processo, por danos morais, que gera indenização direta para a criança”, explica o promotor.
Em Pernambuco a ação é inédita, mas o Poder Judiciário de outros estados também vem lidando com a matéria de maneira rigorosa. Em Minas Gerais, em dezembro de 2011, um casal foi condenado a pagar indenização no valor de R$ 15 mil a um adolescente adotado aos 7 anos de idade e devolvido dois anos depois. Em Santa Catarina, em junho passado, a Justiça puniu um casal que quis devolver um dos dois filhos adotivos (irmãos biológicos): eles acabaram perdendo a guarda das duas crianças e tiveram de pagar R$ 80 mil aos garotos por danos morais.
“O desejo de adotar nem sempre coincide com o desejo de filiar uma criança, que implica em realmente elevá-la à condição de filho”, diz a psicanalista e professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Edilene Queiroz. Ela conta que já esbarrou em situações parecidas como as registradas em Minas Gerais e em Santa Catarina ao longo dos oito anos em que coordena o Serviço de Filiação Adotiva (Sofia), vinculado à clínica de psicologia da Unicap. O núcleo foi criado depois que uma mãe procurou a clínica querendo devolver a filha adotiva após 15 anos de convivência. “Ela chegou desesperada, dizendo que não queria mais ficar com a garota porque ela estava dando problemas”, recorda Edilene. A equipe providenciou acompanhamento psicológico para a mãe por seis meses, para ajudá-la a lidar com as dificuldades de relacionamento. O final foi menos drástico: a jovem continuou com a família.
Foi a mesma constação da pesquisa realizada pela psicanalista Lidia Levy para a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). O levantamento Família é muito sofrimento: um estudo de casos de “devolução” de crianças foi realizado durante o período em Lidia atuou como voluntária da Primeira Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio. “Há realmente essa ideia de que a família pode experimentar a criança e, se não gostar, desistir da adoção. Isso é considerado devolução e marca a criança profundamente”, reforça Lidia. Nessas situações, explica a psicanalista, o sentimento de rejeição após o menor ser abandonado pela família biológica parece ser revivido.
Bruna*, 9 anos, passou por isso duas vezes durante o estágio de convivência. A família biológica perdeu a guarda da garota em 2009, por maus tratos. A mãe chegou a recorrer da decisão judicial, mas nunca apareceu para visitá-la na instituição pública que a abrigava desde 2007. Em 2010, Bruna entrou para o Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Um ano depois, partia do abrigo na companhia de Conceição*, uma aposentada de 57 anos, mãe de um rapaz de 28, que sempre sonhou com uma filha. No 23º dia, a criança foi devolvida. Em 2011, mais uma frustração. Após quatro meses de convivência com um casal que inicialmente pretendia adotá-la, Bruna retornou ao abrigo.
Lidar com essas desistências é um desafio para a equipe do Núcleo de Apoio à Família (Naef), ligado à 2 ª Vara da Infância e Juventude, responsável pela seleção dos adultos que se candidatam à adoção de uma criança e também pela orientação e avaliação do estágio de convivência. “Ajudamos as famílias a enfrentar os conflitos que surgem na relação com as crianças, o que pode demandar, por exemplo, atendimento psicoterápico”, explica Silvana Nicodemos, psicóloga do núcleo. “Mas quando se constata que a relação de filiação não se estabeleceu, não faz sentido que a adoção seja efetivada”.
O desembargador e coordenador da Infância e Juventude do estado de Pernambuco, Luis Carlos Figueiredo, é pragmático: o estágio de convivência é exatamente uma ferramenta para evitar adoções mal sucedidas. “O que é melhor: fazer a ruptura durante esse período ou obrigar o pretendente a ficar com uma criança que não deseja?”, questiona. Ele comenta que devoluções ou desistências são mais comuns em adoções diretas (quando a mãe biológica entrega o filho a uma pessoa sem o aval jurídico) e que a Nova Lei da Adoção, sancionada em 2009, reforçou a necessidade de mais cuidado na avaliação e treinamento dos candidatos a pais e mães.
As chamadas adoções tardias, de crianças com mais de cinco anos, são as mais desafiadoras. “São adoções que costumam ser mais difíceis por que a criança vem com uma bagagem e precisam de um tempo para começar a viver outra história. Os pais devem estar mais preparados, ter maturidade emocional para suportar esse momento de transição, em que podem ocorrer crises de rebeldia, timidez e birras”, pontua Suzana Schettini. A prática mostra, no entanto, que as devoluções se dão em qualquer faixa etária. “A idade da criança, por si só, não determina o sucesso ou o fracasso de uma adoção. Na filiação adotiva, há sempre a perspectiva da criança e a perspectiva da família que a adota”, ressalta Silvana Nicodemos.
o problema são sempre os outros
Luana*, 4 anos, nasceu dentro de uma unidade prisional feminina, onde a mãe cumpria pena por roubo. Um ano e meio depois, foi encaminhada a uma instituição de acolhimento na Região Metropolitana do Recife. A avó materna alegou que não tinha condições de cuidar da menina e indicou uma prima de segundo grau, com mais recursos financeiros. Depois de algumas buscas, a equipe psicossocial conseguiu localizar Patrícia*, que já tinha dois filhos e quis ficar comLuana. A mãe biológica autorizou a guarda provisória e, no final de 2010, aos 2 anos, a garota seguiu para a nova família. Há duas semanas, a equipe do abrigo entrou em contato com Patrícia para informar que ela já poderia pleitear a adoção definitiva da menina. Foi com surpresa que Adriana Carneiro, assistente social da instituição, ouviu que ela não tinha mais interesse em adotar a criança.“Foi um choque pra gente, porque já fazia cerca de um ano e meio que elas conviviam e Luana estava totalmente adaptada”, conta Adriana, que acompanha a menina desde sua chegada ao abrigo. “Ela foi trazida de volta pela avó adotiva, que lamentou e chorou muito no momento da devolução”. Luana chorou mais. Um, dois, três dias. Muitos prefixos para dar conta de uma vez: ex-mãe, ex-irmãos, ex-avó. No terceiro dia, depois de uma briga com uma coleguinha, ela berrou: “Eu não amo ninguém”. “Na verdade era como se ela quisesse dizer: ‘Ninguém me ama’”, conta Adriana. Desde que voltou, Luana cruza os braços para não ser abraçada. As sessões de psicoterapia tentam ajudá-la na recuperação.
Nas justificativas apresentadas pelos candidatos que desistem da adoção, as crianças figuram como responsáveis pelo aborto do processo. “As famílias tendem a responsabilizar o adotando, queixando-se de problemas de comportamento apresentados pela criança ou dificuldades de adaptação. Há situações em que os adotantes alegam que a criança não deseja ser adotada e que não gosta deles, interpretando seus comportamentos hostis como ausência de afeto” , explica Silvana Nicodemos.
A mãe adotiva de José reclamou do comportamento do garoto e alegou que ele era mentiroso. “O que ela falou não bateu com o que foi observado no comportamento da criança após a sua devolução”, afirma o psicólogo Ricardo Matias, do Fórum do Cabo de Santo Agostinho. Conceição*, que ficou com Bruna por 23 dias, esperou cinco anos no cadastro de adoção e diz que abdicou da menina porque ela não correspondeu às suas expectativas: “Eu queria alguém para me fazer companhia, sair comigo, para eu dividir o meu carinho e estar sempre do meu lado”. A aposentada diz que Bruna não a obedecia, se recusava a cumprir as atividades escolares e se identificava mais com a sua comadre, que era branca. À equipe do Naef, Conceição também alegou que a menina tinha atitudes racistas. “Filho de sangue a gente tem que aguentar, né?”. Conceição diz que não desistiu de encontrar uma “menina morena clara ou escura e com idade entre 4 e 8 anos”. “Se eu não fiquei com ela foi porque Deus viu que não era para ser, mas vou continuar na luta”. Também há casos em que os pretendentes nem se dão ao trabalho de tecer explicações. Por telefone, a guardiã de Luana comunicou ao abrigo que não tinha interesse em continuar com a criança. Foi a avó adotiva quem tomou a frente da devolução.
Entre os profissionais que atuam na área, um consenso prevalece: adoção não é caridade, não salva casamento e nem paga promessa. O desejo de adotar tem de estar ligado ao desejo de ser pai ou mãe. As experiências mostram que, em muitos casos, os interessados não estão de fato conscientes dos desafios intrínsecos ao processo de educar um filho e, por vezes, parecem mais desamparados do que os próprios menores. “Algumas pessoas querem acolher uma criança para que ela cumpra outra função na família, como servir de companhia ou dar suporte às suas dificuldades emocionais”, diz Silvana, do Naef. “Isso pode ser prejudicial para a criança, sobretudo porque a relação de cuidado se inverte: a criança, que deveria ser cuidada por um adulto, assume a responsabilidade de cuidar dele”.
No Recife e em outras comarcas do estado, antes de receber a habilitação e integrar o Cadastro Nacional de Adoção o requerente passa por uma avaliação psicossocial feita por uma equipe interdisciplinar. Na capital, quem faz esse trabalho é a equipe do Naef. “Embora o trabalho tenha um caráter preventivo, não é possível ter garantia de que a adoção será bem sucedida, uma vez que é um encontro no qual a criança também se posiciona ativamente. É possível que surjam questões que não haviam sido previstas antes da chegada da criança à família adotante”, aponta a psicóloga Edineide Silva, coordenadora do núcleo. Segundo ela, a idealização é uma das maiores vilãs no processo. Os pais tendem a fantasiar demais e quando se confrontam com questões reais acabam não dando conta. A participação em grupos de apoio podem ajudar a trabalhar alguns desses problemas.
ilusões alquebradas
Amanda*, 13 anos, foi parar no abrigo por abandono e negligência dos pais biológicos em 2005, aos 6 anos, e já passou por diversas instituições. Aos 8 conheceu a primeira família substituta, mas a convivência não durou mais que dois meses. Passou a ser beneficiada pelo projeto de apadrinhamento Estrela Guia e conheceu uma nova pretendente a mãe. Em fevereiro deste ano, ela iniciou o estágio de convivência com a madrinha. Há duas semanas, foi novamente devolvida. Comportamento agressivo e dificuldade de lidar com regras foram os motivos apontados pela ex-futura-mãe. No retorno para a instituição, Amanda passa por um acompanhamento psicológico para amenizar possíveis danos e traumas.A psicanalista Lidia Levy observa que a saída do abrigo é marcada por grandes expectativas e o retorno é vivido como um fracasso. Algumas crianças se sentem culpadas, outras são humilhadas pelos colegas. “Lembro um menino contar, magoado, o reencontro com um colega, que lhe disse: ‘Você é muito burro mesmo! Conseguiu sair e foi devolvido’”.
Depois de tantos ex, José, Luana e Bruna aguardam para vivenciar novas tentativas. O primeiro está em processo de aproximação com uma nova família. Luana ainda não voltou para o cadastro de adoção e aos poucos vai apagando as marcas das relações passadas. Bruna vive momento semelhante. “Ela é uma menina que tem um histórico de privações e abandono, e costuma ser muito agressiva e autoritária. Cada vez que volta, essas características tendem a se potencializar”, conta Daniele Negromonte, uma das psicólogas que atuam na instituição onde a garota vive, a mesma que abriga Amanda.
Com três ex-famílias, a adolescente parece já não se abalar mais com as idas e vindas. “Dessa última vez, Amanda voltou como se nada tivesse acontecido. Está muito adaptada à instituição”, diz Daniele. Durante o período em que permaneceu com a última candidata a mãe, a garota pediu para voltar. “É como se o abrigo fosse o seu maior referencial”. (Texto: Lenne Ferreira / Arte: Kiko, Galego, Juca e Lucas**)
* Nomes trocados para preservar a identidade das crianças e dos candidatos a pais e mães. ** Kiko, Galego e Juca. Assim eram conhecidos o editor de arte do Diario, Mascaro, e os ilustradores Silvino e Jarbas quando crianças. Lucas é filho do ilustrador Greg. http://aurora.diariodepernambuco.com.br/2012/06/o-enquanto-dure-que-se-queria-eterno/
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