terça-feira, 1 de outubro de 2013

PARA UMA AMIGA, OU DE QUANDO A DIFERENÇA BATE À NOSSA PORTA


"Afinal, a gente sempre defendeu no discurso a diferença, agora é hora de encará-la na prática, no cotidiano, no maior dos amores.”

Tem tempo que fico adiando para escrever sobre uma das etapas mais difíceis do processo de adoção: o perfil do filho que queremos. Quando recebi a frase acima em um email de uma grande amiga, achei que já era hora de enfrentar essa questão.
Muita gente me pergunta sobre o processo de adoção. Querem saber como é, o que precisa de fazer, como proceder, enfim, tudo. Eu respondo que alguns momentos são difíceis e falo desse que é o do tal questionário de perfil do adotado. Todo o mundo fala que isso não é problema, que já sabem o que querem.
Esse processo para mim foi doloroso. Eu tinha à minha frente uma folha de papel onde tinha que marcar qual o sexo dos filhos que eu queria. Essa foi fácil: marquei que podia ser menino ou menina. Já disse aqui que muita gente marca apenas menina porque entendem que meninos colocados para adoção são fruto de relações “tumultuadas, violentas e de abandono” e que, portanto, já carregam em si a marca da maldade. Não me perguntem porquê, mas é assim que as pessoas pensam. Elas traduzem isso com a seguinte afirmativa: “meninas são sempre mais fáceis, né?”. Se eu fosse discutir essa frase, teria que dedicar a coluna ao tema, mas este não é o de hoje.
Depois começou a coisa difícil, que era definir qual a cor, a raça ou a etnia, não me lembro como aparece no questionário. Quando temos um filho branco, pardo ou negro (essas eram as alternativas a serem marcadas) com alguém é porque criamos uma relação de algum tipo com a pessoa que gerou esse filho. Vamos, aqui, contar com a possibilidade de que essa relação é de amor e que, portanto, o filho nasce dessa relação e vem ao mundo, para nós, sem cor. Mas para o mundo ele terá uma cor e com ela terá que conviver e seus pais também. Nessa hora, comecei a pensar no que seria de uma criança filha de duas mulheres, adotada e negra. Na Vara de Família, sempre nos disseram que nossos filhos seriam mais discriminados por serem adotados do que por serem filhos de duas mulheres. Isso tem se confirmado até agora.
Aí passamos para a outra parte do questionário, que é a de quais as doenças a criança pode ter: HIV, câncer, sífilis, diabetes, e algumas mais coisas leves como alergias, “pequenos defeitos físicos”, deficiências como cegueira, surdez, mudez... Enfim, uma série de coisas que nos deixa meio atônita, sem saber como pensar qualquer coisa sobre... e tudo isso é complementado em entrevistas por: "Podem ser filhos de alcoólatras? Viciados em maconha, cocaína, crack?"
Nessa hora, eu já estava sem respiração. Como escolher isso? Como dizer o que pode e o que não pode? Duas coisas dessa lista me deixaram tranquilas, que são as alergias e a diabetes, porque, é claro, minha família tem muita gente com as duas coisas. Portanto, marquei essas opções com tranquilidade. Mas grande parte de minha família morreu de câncer e eu não tive coragem nem de pensar em marcar essa alternativa. Não sei se por já ser uma mãe-velha e achar que, se acontecer com meus filhos, não terei tempo suficiente de estar com eles. Mas na verdade acho que agimos como mães-grávidas, desejamos que nossos filhos sejam perfeitos, sem problemas, sem doenças, sem tristezas, sem medos. Como encontrar filhos assim na fila da adoção, nos abrigos? Se eles fossem assim, ali não estariam. Não precisariam estar à espera de pessoas como eu.
Mas essa foi a experiência mais radical do processo de adoção e penso nisso até hoje. Como uma folha de papel checou todos os meus princípios, todas as minhas crenças, todos os meus atos de militância, tudo em que sempre acreditei.
Depois que passei a ir aos abrigos e conhecer a história das crianças, tive que acrescentar à lista mais um item: crianças vítimas de abusos de todos os tipos.
Eu ficava pensando em como era ter que lidar com a diferença quando podemos escolhê-la ou não, quando temos o direito de ir “selecionando” em uma folha o que queremos ou não em nossos filhos. Mas isso não nos livra da vida e de suas possibilidades de ir inventando diferenças a cada momento. Conheço tantas pessoas cujos filhos sofreram acidentes, tiveram doenças, percalços de todos os tipos e, de repente, o que era “perfeito” ficou “diferente”.
Minha amiga, que escreveu a frase acima, é mãe de um lindo garotinho que acabou de fazer 2 anos. Ele é um doce de menino, meus filhos o chamam de Chicão pequeno[1]. Nos conhecemos há bastante tempo. Temos muitas paixões em comum e muitos trabalhos e militâncias também. Nossa militância inclui a luta pelo reconhecimento e respeito as diferenças. Na verdade eu não sou uma militante das diferenças, tenho amigos que dedicam suas vidas a isso, eu milito em outras áreas e vivo alguns tipos de diferença. Mas o que eu vivo não é nem de longe a violência e a discriminação que muitos LGBT que conheço vivem. Então, o que vivo “na pele” como diferença não é radical, principalmente porque não entendo minha condição como diferente e sempre fui assim. Não dou satisfação a quem não merece e, quando extrapolam, uso a lei como garantia de meus direitos. Aos que ficam incomodados com a forma como vivo, sempre tenho um bom psicanalista para indicar.
Mas sei muito bem o que a diferença pode fazer de terrível e perverso. Minha amiga Lili, uma transexual que trabalha no NUH da FAFICH-UFMG, já deixou muito claro em muitas palestras o que é o cotidiano de uma travesti nesse mundo. Vive denunciando a morte de várias amigas que foram assassinadas e barbaramente torturadas. Essa é a radicalidade da diferença.
Mas essa não é a questão da minha amiga e seu pequeno filho. Nesta semana, ela recebeu um diagnóstico que indica que seu filho fará parte da imensa legião das crianças “diferentes”. E agora? Ela não teve uma folha na sua frente para marcar o que queria para seu filho. Ela apenas desejou, como todas as mães quando engravidam, o filho mais perfeito do mundo, o mais lindo, o mais saudável, o mais... As mães-grávidas são assim, querem tudo o mais para seus filhos. As mães e os pais depois seguem querendo sempre isso.
Minha amiga não pode agora deixar de marcar um X nas linhas do questionário do filho que quer. Seu filho veio ao mundo como ela queria e agora ela descobre que os desejos não se realizam, pelo menos da forma como entendemos isso. Mas tenho aprendido que um filho não é o que desejamos ter e sim o que nos é dado como presente.
São todos um presente da vida porque é com eles que efetivamente aprendemos quem somos nós. Não sou dessas pessoas “espiritualizadas” que têm em outro lugar o dom do que construímos na vida. Portanto, não esperem aqui falas que são muito comuns nesses momentos. Sempre penso que em tudo o que nos aparece existem possibilidades, opções e escolhas de caminhos a serem seguidos. Quando marcamos um X em alguma folha de perguntas, temos pela frente uma série de desafios que vão se acumulando, uns por sobre os outros, e é isso o que faz tudo valer a pena.
O pequeno de minha amiga terá muitos desafios pela frente, não terá uma vida como as nossas, mas terá uma vida diferente das de muitos e igual a de poucos.
Quando eu estava no processo de resposta do questionário de adoção, uma amiga psicóloga me contou uma história de uma mãe adotante que disse que queria uma menina e que podia ser negra. A menina foi viver com ela e a família não tinha nenhum tipo de preconceito com relação a criança. Tudo funcionou muito bem até um dia que foram convidadas para uma festa de crianças que foi num destes lugares de comer que reservam uma parte para festas infantis. Na festa tinha essas coisas de cama elástica e piscina de bolinhas. É claro que a fila era interminável e a menina entrou na fila, minutos depois a mãe percebeu que a filha sempre estava em ultimo lugar da fila porque quando chegava lá na frente alguém a empurrava para trás. A mãe pegou a criança e a levou para casa.
Depois de alguns dias, ela voltou à Vara de Família e devolveu a criança, dizendo: "Eu não sou racista, minha família não é, mas entendi que não consigo defender essa criança do mundo que é racista portanto não posso ficar com ela, não posso ser mãe se não consigo defender uma filha no mundo".
Então, minha amiga, foi nisso que fiquei pensando o tempo todo, quando olhei para aquela longa lista que eu tinha que marcar. Eu podia não marcar nada, mas isso não me livrava de ter que enfrentar todas aquelas coisas que tanto me apavoraram, quando vi escritas na minha frente. Não quero um mundo como o que se anuncia, onde poderemos escolher geneticamente o filho que teremos porque isso não nos livrará de nossos medos com relação ao que eles podem vir a ter ou ser.
Nada pode ser previsto nesse sentido, minha amiga e seu doce pequeno. A única certeza que tenho é de que você o defenderá de tudo e de todos os que o atacarem por sua diferença. Porque é disso que você é feita, dessa matéria que nos faz parar a fila, abrir a porta e colocar nosso filho nos brinquedos da vida, que muitos vão querer tirar dele.

"Afinal, a gente sempre defendeu no discurso a diferença, agora é hora de encará-la na prática, no cotidiano, no maior dos amores.”

[1] Vou preservar seu nome porque sua mãe não sabe que estou escrevendo este texto e não me autorizou a tornar sua historia pública.
Regina Helena Alves Silva é professora da UFMG. Graduada em História e Ciências Sociais, com mestrado em Ciência Política e doutorado em História Social. Coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias-UFMG, atua nas áreas de história social da cultura, comunicação e práticas sociais, novas tecnologias e cultura digital, culturas urbanas e formas de participação social. Atualmente, é mãe em tempo quase integral de Pedro e Maria Eduarda.
http://www.bhdameninada.com.br/#!para-uma-amiga/c1wjn

Nenhum comentário: