PARA UMA AMIGA, OU DE QUANDO A DIFERENÇA BATE À NOSSA PORTA
"Afinal, a gente sempre defendeu no discurso a diferença, agora é hora
de encará-la na prática, no cotidiano, no maior dos amores.”
Tem tempo que fico adiando para escrever sobre uma das etapas mais
difíceis do processo de adoção: o perfil do filho que queremos. Quando
recebi a frase acima em um email de uma grande amiga, achei que já era
hora de enfrentar essa questão.
Muita gente me pergunta sobre o
processo de adoção. Querem saber como é, o que precisa de fazer, como
proceder, enfim, tudo. Eu respondo que alguns momentos são difíceis e
falo desse que é o do tal questionário de perfil do adotado. Todo o
mundo fala que isso não é problema, que já sabem o que querem.
Esse
processo para mim foi doloroso. Eu tinha à minha frente uma folha de
papel onde tinha que marcar qual o sexo dos filhos que eu queria. Essa
foi fácil: marquei que podia ser menino ou menina. Já disse aqui que
muita gente marca apenas menina porque entendem que meninos colocados
para adoção são fruto de relações “tumultuadas, violentas e de abandono”
e que, portanto, já carregam em si a marca da maldade. Não me perguntem
porquê, mas é assim que as pessoas pensam. Elas traduzem isso com a
seguinte afirmativa: “meninas são sempre mais fáceis, né?”. Se eu fosse
discutir essa frase, teria que dedicar a coluna ao tema, mas este não é o
de hoje.
Depois começou a coisa difícil, que era definir qual a
cor, a raça ou a etnia, não me lembro como aparece no questionário.
Quando temos um filho branco, pardo ou negro (essas eram as alternativas
a serem marcadas) com alguém é porque criamos uma relação de algum tipo
com a pessoa que gerou esse filho. Vamos, aqui, contar com a
possibilidade de que essa relação é de amor e que, portanto, o filho
nasce dessa relação e vem ao mundo, para nós, sem cor. Mas para o mundo
ele terá uma cor e com ela terá que conviver e seus pais também. Nessa
hora, comecei a pensar no que seria de uma criança filha de duas
mulheres, adotada e negra. Na Vara de Família, sempre nos disseram que
nossos filhos seriam mais discriminados por serem adotados do que por
serem filhos de duas mulheres. Isso tem se confirmado até agora.
Aí
passamos para a outra parte do questionário, que é a de quais as doenças
a criança pode ter: HIV, câncer, sífilis, diabetes, e algumas mais
coisas leves como alergias, “pequenos defeitos físicos”, deficiências
como cegueira, surdez, mudez... Enfim, uma série de coisas que nos deixa
meio atônita, sem saber como pensar qualquer coisa sobre... e tudo isso
é complementado em entrevistas por: "Podem ser filhos de alcoólatras?
Viciados em maconha, cocaína, crack?"
Nessa hora, eu já estava sem
respiração. Como escolher isso? Como dizer o que pode e o que não pode?
Duas coisas dessa lista me deixaram tranquilas, que são as alergias e a
diabetes, porque, é claro, minha família tem muita gente com as duas
coisas. Portanto, marquei essas opções com tranquilidade. Mas grande
parte de minha família morreu de câncer e eu não tive coragem nem de
pensar em marcar essa alternativa. Não sei se por já ser uma mãe-velha e
achar que, se acontecer com meus filhos, não terei tempo suficiente de
estar com eles. Mas na verdade acho que agimos como mães-grávidas,
desejamos que nossos filhos sejam perfeitos, sem problemas, sem doenças,
sem tristezas, sem medos. Como encontrar filhos assim na fila da
adoção, nos abrigos? Se eles fossem assim, ali não estariam. Não
precisariam estar à espera de pessoas como eu.
Mas essa foi a
experiência mais radical do processo de adoção e penso nisso até hoje.
Como uma folha de papel checou todos os meus princípios, todas as minhas
crenças, todos os meus atos de militância, tudo em que sempre
acreditei.
Depois que passei a ir aos abrigos e conhecer a história
das crianças, tive que acrescentar à lista mais um item: crianças
vítimas de abusos de todos os tipos.
Eu ficava pensando em como era
ter que lidar com a diferença quando podemos escolhê-la ou não, quando
temos o direito de ir “selecionando” em uma folha o que queremos ou não
em nossos filhos. Mas isso não nos livra da vida e de suas
possibilidades de ir inventando diferenças a cada momento. Conheço
tantas pessoas cujos filhos sofreram acidentes, tiveram doenças,
percalços de todos os tipos e, de repente, o que era “perfeito” ficou
“diferente”.
Minha amiga, que escreveu a frase acima, é mãe de um
lindo garotinho que acabou de fazer 2 anos. Ele é um doce de menino,
meus filhos o chamam de Chicão pequeno[1]. Nos conhecemos há bastante
tempo. Temos muitas paixões em comum e muitos trabalhos e militâncias
também. Nossa militância inclui a luta pelo reconhecimento e respeito as
diferenças. Na verdade eu não sou uma militante das diferenças, tenho
amigos que dedicam suas vidas a isso, eu milito em outras áreas e vivo
alguns tipos de diferença. Mas o que eu vivo não é nem de longe a
violência e a discriminação que muitos LGBT que conheço vivem. Então, o
que vivo “na pele” como diferença não é radical, principalmente porque
não entendo minha condição como diferente e sempre fui assim. Não dou
satisfação a quem não merece e, quando extrapolam, uso a lei como
garantia de meus direitos. Aos que ficam incomodados com a forma como
vivo, sempre tenho um bom psicanalista para indicar.
Mas sei muito
bem o que a diferença pode fazer de terrível e perverso. Minha amiga
Lili, uma transexual que trabalha no NUH da FAFICH-UFMG, já deixou muito
claro em muitas palestras o que é o cotidiano de uma travesti nesse
mundo. Vive denunciando a morte de várias amigas que foram assassinadas e
barbaramente torturadas. Essa é a radicalidade da diferença.
Mas
essa não é a questão da minha amiga e seu pequeno filho. Nesta semana,
ela recebeu um diagnóstico que indica que seu filho fará parte da imensa
legião das crianças “diferentes”. E agora? Ela não teve uma folha na
sua frente para marcar o que queria para seu filho. Ela apenas desejou,
como todas as mães quando engravidam, o filho mais perfeito do mundo, o
mais lindo, o mais saudável, o mais... As mães-grávidas são assim,
querem tudo o mais para seus filhos. As mães e os pais depois seguem
querendo sempre isso.
Minha amiga não pode agora deixar de marcar um
X nas linhas do questionário do filho que quer. Seu filho veio ao mundo
como ela queria e agora ela descobre que os desejos não se realizam,
pelo menos da forma como entendemos isso. Mas tenho aprendido que um
filho não é o que desejamos ter e sim o que nos é dado como presente.
São todos um presente da vida porque é com eles que efetivamente
aprendemos quem somos nós. Não sou dessas pessoas “espiritualizadas” que
têm em outro lugar o dom do que construímos na vida. Portanto, não
esperem aqui falas que são muito comuns nesses momentos. Sempre penso
que em tudo o que nos aparece existem possibilidades, opções e escolhas
de caminhos a serem seguidos. Quando marcamos um X em alguma folha de
perguntas, temos pela frente uma série de desafios que vão se
acumulando, uns por sobre os outros, e é isso o que faz tudo valer a
pena.
O pequeno de minha amiga terá muitos desafios pela frente, não
terá uma vida como as nossas, mas terá uma vida diferente das de muitos
e igual a de poucos.
Quando eu estava no processo de resposta do
questionário de adoção, uma amiga psicóloga me contou uma história de
uma mãe adotante que disse que queria uma menina e que podia ser negra. A
menina foi viver com ela e a família não tinha nenhum tipo de
preconceito com relação a criança. Tudo funcionou muito bem até um dia
que foram convidadas para uma festa de crianças que foi num destes
lugares de comer que reservam uma parte para festas infantis. Na festa
tinha essas coisas de cama elástica e piscina de bolinhas. É claro que a
fila era interminável e a menina entrou na fila, minutos depois a mãe
percebeu que a filha sempre estava em ultimo lugar da fila porque quando
chegava lá na frente alguém a empurrava para trás. A mãe pegou a
criança e a levou para casa.
Depois de alguns dias, ela voltou à
Vara de Família e devolveu a criança, dizendo: "Eu não sou racista,
minha família não é, mas entendi que não consigo defender essa criança
do mundo que é racista portanto não posso ficar com ela, não posso ser
mãe se não consigo defender uma filha no mundo".
Então, minha amiga,
foi nisso que fiquei pensando o tempo todo, quando olhei para aquela
longa lista que eu tinha que marcar. Eu podia não marcar nada, mas isso
não me livrava de ter que enfrentar todas aquelas coisas que tanto me
apavoraram, quando vi escritas na minha frente. Não quero um mundo como o
que se anuncia, onde poderemos escolher geneticamente o filho que
teremos porque isso não nos livrará de nossos medos com relação ao que
eles podem vir a ter ou ser.
Nada pode ser previsto nesse sentido,
minha amiga e seu doce pequeno. A única certeza que tenho é de que você o
defenderá de tudo e de todos os que o atacarem por sua diferença.
Porque é disso que você é feita, dessa matéria que nos faz parar a fila,
abrir a porta e colocar nosso filho nos brinquedos da vida, que muitos
vão querer tirar dele.
"Afinal, a gente sempre defendeu no
discurso a diferença, agora é hora de encará-la na prática, no
cotidiano, no maior dos amores.”
[1] Vou preservar seu nome
porque sua mãe não sabe que estou escrevendo este texto e não me
autorizou a tornar sua historia pública.
Regina Helena Alves Silva é
professora da UFMG. Graduada em História e Ciências Sociais, com
mestrado em Ciência Política e doutorado em História Social.
Coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias-UFMG, atua nas
áreas de história social da cultura, comunicação e práticas sociais,
novas tecnologias e cultura digital, culturas urbanas e formas de
participação social. Atualmente, é mãe em tempo quase integral de Pedro e
Maria Eduarda.
http://www.bhdameninada.com.br/#!para-uma-amiga/c1wjn
Nenhum comentário:
Postar um comentário