Por Cintia Liana
Como psicóloga, especialista em psicologia de casal, família e adoção e atuante na causa da criança e do adolescende há mais de 11 anos venho me manifestar TOTALMENTE CONTRA O RETORNO DA CRIANÇA M.E. AOS PAIS DE ORIGEM e dar a minha opinião técnica.
A alguns dias, daqui da Itália, onde moro e trabalho, através dos Grupos de Apoio a Adoção do Brasil, tomei conhecimento do caso. A menor M.E. foi institucionalizada com apenas 2 meses de vida por ter sido vítima de maus tratos cometidos pelos pais biológicos. Após 1 ano e 5 meses foi encaminhada para estágio de convivência a um casal habilitado a adoção há 5 anos e com ele conviveu como filha, tendo todos os seus direitos atendidos por mais de 2 anos. Sabemos que foi tempo suficiente para se criar uma relação de apego, pertencimento, ou seja, de criar fortes laços afetivos, num ambiente saudável e pleno de amor, e na adoção existe a substituição completa da família de origem, exceto em nível biológico. Não existe diferença entre o vínculo biológico e o vínculo adotivo. Todas as crianças só se tornam filhos se, de fato, acolhidos, considerados, ou seja, adotados.
Elizabeth Banditer, a maior estudiosa do mundo do mito do amor materno, afirma que o fenômeno do amor nasce da intenção, do desejo de acolher e é conquistado e construído na convivência e não nascido da herança biológica e dos laços consanguíneos. O amor é um sentimento que deve ser alimentado. M.E., em quase 3 anos construiu amor de filha junto aos pais que a acolheram, que esperavam por sua adoção durante todo esse tempo. De qualquer modo, aqui quero salientar o que já preconiza o ECA, que nós devemos atender os direitos do menor, que é o ser indefeso na questão, ele é que deve estar acima de todo e qualquer interesse, ele é que deve ser defendido física e psicologicamente.
Mesmo ainda estando na “pré-história da mente humana”, sabemos que sucessivos cortes de vínculos são acontecimentos suficientemente fortes para causar sérios danos à estrutura psíquica de uma criança, podendo gerar até quadros psicóticos. M.E. já sofreu com o corte do vínculo e maus tratos quando tinha apenas dois meses de vida. Depois deixou os pais sociais e os amigos do abrigo com 1 ano e oito meses e, após quase 3 anos, devidamente inserida e adaptada a toda uma família substituta mediante guarda provisória, com pais, avós, tios, primos, amigos, deverá novamente romper vínculos com aqueles que lhe deram um lar digno e pleno de afeto, com quem criou uma verdadeira relação de filha, neta, sobrinha, prima, amiga.
O grande pediatra e psicanalista inglês Winnicott, disse que quando a criação de um bebê não é “suficientemente boa” – e principalmente quando é abusiva e punitiva – tem como resultado o distanciamento, o desligamento e literal afastamento do contato social. M.E., a este ponto, já superou algumas de suas dores depois de ser retirada do seio adoecido da família de origem. Mas voltar para esse ambiente aversivo, se ele for frio, hostil e ameaçador, sobretudo quando for comparado ao lar que tem com os pais afetivos, a resposta será o terror e a raiva. E o terror crônico, a raiva crônica é uma posição insustentável para se levar à vida. Tal raiva convida à retaliação, que é experienciada como aterrorizante e ameaçadora da vida, desta forma, a criança volta-se contra ela mesma, como explico em meu primeiro livro, publicado em 2011, “Filhos da Esperança, os caminhos da adoção e da família e seus aspectos psicológicos”.
Se M.E. for retirada da família afetiva só terá a perder, sofrerá uma espécie de morte psíquica. Se a família de origem não obtiver novamente o seu pátrio poder não sofrerá tanto quanto ela, que já tem idade e tempo de convivência suficiente para nutrir pelo casal adotante verdadeiro amor de filha. Então, deveremos defender o direito da criança ou dos pais de origem? Quem deve ter prioridade nessa questão? Quem deve ser defendido?
Para nós psicólogos de família e que tratamos da infância fica claro que uma sentença em favor da família biológica nesse caso, será contra os interesses da menor, o que se caracterizará um grave erro, um grave abuso à sua integridade psíquica. Para se ter uma ideia, não será para ela como a guilhotina, mas sim como uma morte agonizante. Mas nós não estamos mais no século XVII, porque dar essa pena a uma criança? Se a decisão for a favor dos pais biológicos, nos levará a ter a certeza de que o conhecimento acerca da mente infantil ainda corresponde ao século XVII.
A possibilidade da criança voltar para uma família “estranha”, mesmo que exista um período de adaptação, só traz insegurança a todas as famílias em relação à Justiça no Brasil, que demonstra não fazer nenhuma ideia da importância do respeito e da manutenção do apego e da proximidade desenvolvidos por seus pais afetivos para a construção de uma vida feliz e sadia. De qualquer modo, restamos com a esperança de que a verdadeira justiça seja feita, protegendo a vida psicológica de quem deve ser de fato um ser de direitos.
Cintia Liana Reis de Silva, psicóloga e psicoterapeuta, especialista em psicologia de casal, família e adoção. É autora do livro "Filhos da Esperança" e trabalha para a Senza Frontiere ONLUS na Itália.
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