Lidia Weber
Psicóloga, pós-doutora em
Desenvolvimento Familiar pela UnB, professora da UFPR
“Muitas coisas que nós precisamos podem esperar. A
criança não pode. Agora é o tempo em que seu ossos estão sendo formados; seu
sangue está sendo feito; sua mente está sendo desenvolvida. Para ela nós não
podemos dizer amanhã. Seu nome é hoje”.
(Gabriela Mistral)
Era
uma vez uma menininha que, aos 60 dias de vida, foi retirada do convívio de sua
família biológica devido a reiteradas denúncias de maus-tratos, abuso de
substâncias e incompetência parental (de acordo com dados veiculados pela
mídia). Foi morar em um abrigo. Um bebê não deveria morar em um abrigo, pois o
que mais ele necessita nesse início de vida são relações com adultos específicos
e amorosos. A família de origem errou e a criança foi punida ao ser colocada em
um abrigo, pois ainda não existem alternativas mais humanas como famílias
acolhedoras para bebês, porém foi uma forma de salvá-la de danos irreparáveis
de um ambiente familiar danoso e perigoso. Ficou lá até a idade de um ano e
oito meses e, nesse tempo, a família de origem, com mais seis filhos, não
mostrou sinais de recuperação. Como nosso tempo atual privilegia sempre “o
melhor interesse da criança”, a menina foi colocada no sistema para ser
adotada, o que ocorreu com um casal que estava, legalmente, há cinco anos
aguardando uma criança que pudesse transformar em filha. O encontro aconteceu e
foi-lhes dada “guarda provisória para fins de adoção”, um procedimento de praxe
que, como o próprio nome indica deve ser curto, pois o objetivo final é a
conclusão da adoção. Pois o “sistema” deixou essa situação indefinida por dois
anos e seis meses e, após esse período em que uma família foi construída - não
uma família “substituta” como diz-se inadequadamente nos escritos jurídicos,
uma família real na qual existe não mais uma criança, mas uma filha com todas as
nuances que o termo contempla -, o “sistema” decide retirar a filha dos únicos
pais que ela conhece e reconhece como pessoas imersas na construção de sua
identidade, personalidade e, especialmente, afetividade. É preciso empatizar
também com a família de origem que teve seus percalços na vida e parece desejar
se recuperar, no entanto, há erros humanos graves cujas conseqüências perduram
o resto da vida. A família de origem errou muito e por longos anos, agora o
“sistema” vai punir a menina que conseguiu ser filha? Onde está essa criança
ideal que deveria ser prioridade absoluta? Como afirma a Associação Nacional de
Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD), “a criança não é objeto de direito de seus
genitores, nem propriedade destes, mas, sim, sujeito de seus próprios direitos
– direitos estes prioritários e exclusivos quando em confronto com quaisquer
outros, inclusive os pertencentes a seus genitores”.
Quais
as conseqüências para a menina Duda? O estágio atual dos estudos nacionais e
internacionais sobre desenvolvimento infantil enfatiza de maneira primordial as
relações familiares, especialmente o afeto (responsividade) e limites (regras e
modelos morais) sobre o mundo que devem ser estabelecidos pelos pais de uma
criança. Transformar uma criança em um adulto competente, autônomo e consciente
de si, reside, em grande parte, nas relações estabelecidas com os seus
cuidadores primários, no caso, a família por adoção de Duda, e no modelo de
comportamento repassado por estes. Portanto, a maneira como uma criança é
cuidada e criada e o estabelecimento de fortes e constantes relações afetivas
com seus pais são determinantes para toda sua vida futura. Atualmente existem
diversos arranjos familiares diferentes (famílias extensas, monoparentais,
biparentais, nucleares etc.), mas os principais determinantes para um ótimo
desenvolvimento infantil não é o tipo de família, mas a qualidade da dinâmica
familiar estabelecida.
Retirar
Duda de sua família atual e a única verdadeira para ela é como promover uma
“orfandade espiritual” assinalando o que o poeta grego da Antiguidade,
Sófocles, diz: “não há nada pior do que não ter mãe
sem ser órfão”. O dano emocional da retirada de um filho de uma família amorosa
e cuidadora não é fácil de ser medido, até porque isso raramente ocorre de
maneira voluntária no mundo civilizado. Retiram-se crianças de famílias que não
apresentam condições de cuidar delas, mas não o contrário. Para entender a necessidade
e importância do vínculo afetivo para o desenvolvimento infantil é preciso
falar do termo técnico utilizado pela ciência psicológica, chamado “apego”. Apego foi uma forma que a natureza
encontrou para proteger crianças humanas, incapazes de sobreviverem sozinhas.
Apego refere-se aos laços emocionais muito próximos entre crianças pequenas e
seus pais, nesse caso de Duda e sua família afetiva.
O desenvolvimento do comportamento de apego depende
da quantidade e da qualidade do tempo passado junto com a criança, bem como da
sensibilidade e responsividade dos pais. Neste caso, a figura de apego torna-se
uma “base segura”, seja para a criança explorar, para se recuperar de alguma
adversidade, seja para buscar apoio e proteção frente a algum perigo e passa a
ser de vital importância para um adequado desenvolvimento psicológico e
emocional das crianças. Diversos autores internacionalmente renomados (Bowlby,
Ainsworth, Viorst, Spitz, Belsky, Rutter, Glaser & Einsenberg) afirmam que
a separação abrupta e inexplicável da criança pequena com seus pais ativos
provoca uma grande ferida e danos emocionais presentes e futuros, tais como sinais
de depressão, insegurança, ansiedade de
separação exagerada, desordem de personalidade evitante, agressividade, dificuldades
no desenvolvimento afetivo, comportamento antissocial, dificuldades de
aprendizagem, entre outros. Pesquisas ainda demonstram que mesmo se a separação
for temporária a criança continua muito vulnerável a ameaças de separações
futuras e isso é chamado de “dano oculto”, ou seja, mesmo que houver
recuperação ela poderá não ser tão completa como parece. É possível impor voluntariamente isso a uma
criança?! Onde está essa condição martelada pela Lei de que a CRIANÇA é que deve
ser a PRIORIDADE ABSOLUTA?
O importante é saber que amor de mãe e de pai
não é instintivo e nem é possível adquiri-lo: é preciso conquistá-lo. É um
sentimento que se constrói. Logo, para amar de fato, é preciso semear, plantar
e investir muito. Ser boa mãe e bom pai é ser alguém que ama seu filho, sem
dúvida, mas é algo mais: é transformar esse amor em ação. Os direitos dos pais
não são inalienáveis; eles devem ser conquistados com sacrifício,
responsabilidade, compreensão, tolerância, doação e amor. Duda encontrou uma
família onde se desenvolve e compreende-se um sujeito de direito e de amor.
Deixem-na ficar com ela.
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