quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O DIREITO AO AFETO


Fevereiro/2014
VITOR FRAGA
Especialistas condenam decisão da Justiça que determina a devolução de criança adotada aos pais biológicos

A partir deste mês de fevereiro, segundo decisão da Justiça de Minas Gerais, a menina M.E., de 5 anos, teria que voltar a morar com sua família biológica, da qual foi separada aos 60 dias de vida, também por decisão judicial, por conta de denúncias de maus tratos. Porém, a decisão foi suspensa, pouco antes do fechamento desta edição da TRIBUNA, por uma liminar concedida pelo desembargador Edilson Fernandes, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça mineiro, que permite aos pais adotivos retomarem a guarda da menina até o fim do processo. Apenas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pode reverter essa decisão.
O caso transformou-se em um dos principais assuntos nas redes sociais desde o fim do ano passado e vem gerando grande debate sobre o processo de adoção no país. O que deve pesar mais, o direito dos pais biológicos de se arrependerem e reverterem a adoção ou o dos pais adotivos de manterem os laços afetivos criados com a menina? Em meio a essa disputa, outra pergunta se impõe: E o direito da criança?

CONHEÇA O CASO
A história começou em 2009, quando, após denúncias de maus tratos, o Ministério Público (MP) mineiro solicitou à Justiça que Robson Assunção e Maria da Penha Nunes fossem destituídos do poder pátrio de M.E. e outros seis filhos mais velhos. Duda, como é chamada hoje pelos pais adotivos, tinha na época dois meses, e foi encaminhada para um abrigo. Com dois anos, a menina foi entregue para Válbio da Silva e Liamar de Almeida, que se tornaram seus guardiões legais enquanto corria o processo de adoção. Moradores de Contagem (MG), eles têm uma filha biológica de 12 anos, e já estavam na fila de adoção há cinco. Há mais de dois anos e meio, Duda vem convivendo e constituindo laços afetivos com seus pais e sua irmã adotivos.
Porém, ao longo do processo, os genitores conseguiram provar que haviam se reabilitado, e em abril de 2013 três desembargadores da 7ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) determinaram, em decisão unânime, que a criança deveria retornar para o convívio da família biológica – os seis filhos mais velhos já voltaram. Após uma batalha de liminares e recursos, em outubro de 2013 foi estabelecido prazo de cinco meses para a reintegração de Duda à família biológica – o que deveria acontecer a partir deste mês, de forma gradual, não fosse a liminar concedida no final de janeiro de 2014.
Como o processo iniciado pelo MP de Minas Gerais transitou em julgado, foi iniciada outra ação judicial, agora tendo os pais adotivos como autores, para destituição do poder familiar dos genitores de Duda – a liminar se refere a este processo. O pai adotivo demonstra esperança de vitória. “O processo de destituição da guarda dos genitores já transitou em julgado, e a decisão judicial é pelo retorno da criança para os pais biológicos. Mas não participamos desse processo, e entramos então com outra ação, negada em primeira instância. Estamos aguardando a apreciação do agravo na segunda instância, esperançosos de que o processo seja aceito”, afirma. O argumento para a não aceitação do segundo processo foi o de que o mérito já teria sido julgado na primeira ação. “Não é verdade, são dois processos diferentes. O primeiro foi movido pelo MP contra os genitores, antes mesmo de conhecermos a Duda. A ação que propusemos é outra coisa, o motivo do processo é outro”, insiste Válbio.

A CRIANÇA COMO “SUJEITO DE DIREITOS”
Segundo a presidente da Comissão de Mediação de Conflitos (CMC) da OAB/RJ, Samantha Pelajo, embora seja difícil opinar sem ter acesso aos autos do processo, é essencial proteger os interesses da criança. “O vínculo afetivo e o sentimento de segurança certamente consolidados não deveriam ser desconsiderados pelos eminentes julgadores”, diz Samantha. Ela ressalta que “a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente são categóricos ao afirmar que o princípio da proteção integral tem prevalência, devendo ser considerado norteador de qualquer decisão estatal”.
Para a diretora jurídica da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad) e presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), Silvana do Monte Moreira, a decisão da Justiça que determinava o retorno da criança aos pais biológicos está na contramão desse novo paradigma. “[A decisão] está baseada no que chamamos de biologismo. Laços de sangue não significam nada, o que gera as relações familiares é o afeto, a convivência. Tenho duas filhas, uma que gerei e outra que adotei. As duas são filhas biológicas, porque os seres humanos são biológicos. Aprendi que precisava adotar as duas, porque é na adoção que a gente se entrega e ama. Precisamos adotar o filho, o pai, o amigo. O sangue é o que tem menos valor na vida, o que importa são os laços de afeto”, argumenta Moreira.
Ela considera que, socioafetivamente, Duda é filha de Liamar e Válbio, não tendo vínculos com os genitores, que só conviveram com a menina por 60 dias. “Eles são completos estranhos para ela. Por que tratar com supremacia os laços de sangue? A criança por caso é objeto desses genitores? É como se agora eles estivessem fazendo uma emissão de posse de um objeto”, critica.
O desembargador Siro Darlan, ex-titular da 1ª Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, afirma que a decisão de devolver a criança aos genitores ignorou “o princípio do interesse superior da criança e do adolescente”. Para ele, o erro inicial foi o do abandono. “Não há perdão possível para o adulto que gera uma criança e a abandona. É como se a tivesse matado, o que ocorre no subconsciente dessa criança. Como você vai reintegrar uma criança abandonada no seio de um grupo familiar que em algum momento de sua história se desfez de sua vida, de sua companhia e de seu afeto e cuidado?”, questiona.
Samantha sublinha que o melhor interesse de Duda deveria prevalecer, seja por meio de sua manutenção junto à sua família socioafetiva, “que lhe proporcionou ao longo dos últimos anos um ambiente profícuo ao desenvolvimento pleno de suas potencialidades, repleto de afeto e com a garantia de educação, saúde e segurança”, ou pela reintegração “ao convívio de sua família biológica, que no passado foi muito pouco acolhedora, mas promete uma postura mais condizente com aquela preceituada pela Carta Magna . Nesse último caso, Duda teria a vantagem de conviver com os irmãos biológicos e ter acesso à sua identidade biológica. “Mas isso é pouco perto do afeto e da segurança que ela tem com os pais adotivos, e são coisas que poderia ter mesmo continuando com a família que a acolheu”, diz.
A diretora jurídica da Angaad ressalta que, nessas condições, apenas a criança seria “um sujeito com prioridade absoluta conferida pela Constituição Federal”, mas que tal prioridade não está sendo observada no caso de Duda. “Está se considerando a supremacia desses malfadados laços sanguíneos. Duda não está sendo considerada pela Justiça como sujeito de direitos. O melhor interesse da criança é ser mantida no lar onde ela tem afeto e é tratada como sujeito de direitos, não como objeto”, declara Moreira.
Em contraposição à noção de proteção integral da criança, o artigo 19 da Lei 12.010/2009 (Lei de Adoções) aponta que a manutenção ou reintegração da criança ou adolescente em sua família biológica tem preferência em relação a qualquer outra providência. Segundo Darlan, a lei não representou mais garantias para o direito da infância. “Foi um retrocesso. O artigo 7º da Convenção das Nações Unidas sobre o direito da criança lhe outorga o direito de ter uma família e não diz que tem que ser dessa ou daquela natureza. O importante é que seja garantido esse direito. Nesse particular, a legislação brasileira não avançou e é preciso mudar essa mentalidade”, sustenta.

RUPTURA DE VÍNCULOS AFETIVOS
No caso de Duda, em relação às sucessivas rupturas afetivas, a psicóloga Maíra Dourado diz que a primeira delas, quando a criança foi retirada dos genitores e levada a um abrigo, estabeleceria uma marca menos profunda já que “sob o ponto de vista cognitivo, com dois meses a criança interage, mas não estabelece relação socioafetiva significante”. No entanto, as rupturas seguintes tenderiam a ser mais importantes, pelo tempo de convivência. “Ao longo de um ano e oito meses no abrigo, a criança criou vínculos. A partir do momento em que ela olha e sorri, interage ainda que através das linguagens não-verbais. Ao sair do abrigo houve outra ruptura, e ela foi entregue aos guardiões, com quem conviveu até agora, quando se apresenta o risco de mais uma separação. Se você pedir a uma criança de quatro anos para desenhar a família, ela desenhará todos e dará nomes”, explica a psicóloga, que criticou o fato de a decisão judicial não priorizar o bem-estar da criança. “Não se trata de uma almofada. Todo esse movimento feito com a Duda pode ter gerado nela uma sensação de insegurança e desamparo muito grande, uma marca. Ela não é minha paciente, mas posso afirmar que os desembargadores [que decidiram pelo retorno para a família biológica] não olharam para a Duda”, completa.
Como o caso se tornou emblemático, a Angaad ingressou com pedido para admissão como amicus curiae na ação, por entender que se trata de “um processo de repercussão geral para a adoção em todo o Brasil”. O pedido foi negado por duas vezes, e a entidade entrou com um agravo regimental, que está em processo de análise – dependendo do resultado, a associação poderá fazer o pedido diretamente ao STJ. “A Angaad continuará insistindo nesse e em todos os casos em que o direito da infância estiver sendo suprimido em prol de laços sanguíneos desprovidos de afeto”, diz Silvana Moreira.
Segundo o último levantamento feito pelo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), criado há cinco anos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em maio de 2013 havia 5.426 crianças e adolescentes aptos para adoção em todo o país, para 29.440 pretendentes cadastrados. Há mais de 44 mil crianças acolhidas que não estão no cadastro nacional, em função da lentidão na destituição do poder familiar e da regularização da adoção.
A gestora do Módulo Criança e Adolescente (MCA) e promotora de Justiça do Rio de Janeiro Daniela Vasconcellos afirma que existem atualmente no estado “249 crianças e adolescentes aptos à adoção”, considerando “apenas aqueles para quem ainda não se encontraram adotantes”. Sobre o caso de Duda, ela é contundente: “Criança não é objeto e a desestruturação da realidade em que está inserida em seu melhor interesse com certeza é sempre prejudicial”.

UMA FAMÍLIA PARA QUEM PRECISA
Para Silvana Moreira, o caso de Duda pode desestimular a busca por adoção. “Essa família amou e cuidou da Duda por quase três anos, e de repente a mesma Justiça que a entregou para adoção está ameaçando tirar a criança da família adotiva. Isso coloca em total descrédito o instituto da adoção”, critica. “Temo que esse processo venha a desestimular as adoções no Brasil inteiro, o que já vem acontecendo. Há muita gente com guarda provisória apavorada porque acha que perderá o filho a qualquer momento. Há crianças mais velhas que têm medo de perder os pais que conseguiram”, alerta.
A psicóloga Maíra Dourado corrobora a argumentação. “Ouvi relatos de pais que estão muito inseguros com essa situação. A pessoa está em um processo de adoção, que já é burocrático, extenuante, e de repente pode perder a guarda da criança com a qual já está construindo laços? Como lidar com processos de adoção que duram anos, sem conclusão?”.
Diante de toda a discussão, a noção de família como grupo social composto apenas por pessoas ligadas por laços de sangue parece ultrapassada. “Ainda existe na nossa sociedade quem pense em manter a linhagem sanguínea, mas na contemporaneidade isso já não cabe mais. Existem diversos tipos de famílias, homoafetivas por exemplo. A família de sangue não se escolhe, mas a família que a pessoa irá construir, os amigos que terá, sim. Há irmãos de sangue que não têm um vinculo afetivo tão forte quanto dois grandes amigos”, pondera Dourado. Para Siro Darlan, esse problema resulta do fato de que alguns juízes “não se modernizaram e não acompanharam o desenvolvimento das novas modalidades de famílias que a sociedade criou”. Ele diz que “o instituto do afeto, hoje elevado à categoria de bem juridicamente protegido, é o único que justifica a união entre pessoas”. E que, na verdade, “faltam critérios na escolha dos juízes vocacionados para as varas da Infância e da Juventude pelos tribunais, que têm adotado critérios políticos de favorecimento em detrimento daqueles mais vocacionados”. Na avaliação de Silvana, o Judiciário precisa respeitar a prioridade absoluta das crianças, inclusive acima de seus próprios dogmas. “Por isso tentamos mudar esse paradigma tradicional de adoção que existia antes, de dar um filho para o casal que não pode gerar. O que usamos hoje é dar uma família para a criança que dela precisa”, conclui.
http://www.oabrj.org.br/materia-tribuna-do-advogado/18017-O-direito--ao-afeto

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